1st. Audio Engineering Society Conference in Brasil


Preliminares

A exuberância musical já existia neste solo antes mesmo que Cabral descesse às nossas praias, palcos de uma complexa estrutura musical naturalmente viva, inspiração que se propaga como herança.

Fato internacionalmente reconhecido é a produção musical deste país, fonte de criatividade e malemolência sônica, e sorvedouro ávido de tecnologias musicais. De certo que a história sociológica e cultural do povo que aqui se firmou não baseia-se no background técnico e no engajamento histórico-musical tão intenso das sociedades européias entre os séculos XV e XVIII. Ali a música embalava o poder, e resplandecia como arte suprema, estimulando o desenvolvimento de instrumentos sofisticados, fazendo uso dos melhores materiais e técnicas disponíveis, forçando a criatividade física dos artesões, lutiers, músicos e compositores, e com isso elevando a apuração do gosto musical e a perícia das técnicas de composição a um patamar de arte tecnológica jamais alcançado anteriormente.

Ao Brasil, cenário novo, caldeirão étnico incipiente, o status de colônia conferiu prioridades maiores que a formação de uma sociedade baseada no desenvolvimento tecnológico. A exploração foi a ordem geral. O resultado desta política de desenvolvimento exploratório moldou os princípios evolucionistas de nossa cultura, e contra a inércia destes princípios até hoje lutamos para projetar o país num mundo onde quem ilumina o futuro são as superpotências tecnológicas, indubitavelmente mais preparadas e engajadas há mais tempo na corrida tecnológica.

O áudio, a música e a acústica, vetores que formam o espaço da produção sonora, mesmo relegados a planos posteriores em vista do mapa de prioridades, dividem espaço na mesma barca em que estão a computação, a engenharia de materiais, a química, a eletrônica, e a indústria tecnológica neste país. Ttodos lutam por um lugar ao sol, e sonham em garantir participações relevantes no mundo contemporâneo.

Historicamente, entretanto, o áudio tem gozado de papel secundário no ramo de entretenimento deste século. O cinema começou mudo. A trilha sonora só era necessária para conferir mais brilho e realidade às imagens. Nas recepções, recaiam as atenções sobre os cineastas, aqueles que montam a progressão das imagens, a trama visual. O compositor sempre era alvo embaçado da parca capacidade de crítica dos transeuntes: é muito mais fácil julgar uma cena escabrosa do que uma passagem musical retumbante. A genialidade do cineasta com frequência é mais digerível e apreciada, ao passo que ao trabalho sonoro frequentemente cabe uma balbuciante dúvida sobre o gosto e o preparo do músico, ou então bastava somente coroar a trilha sonora com um "ah, eu adorei aquela parte em que os pianos ficavam graves, acompanhando o desespero de Mary Ellen..." ou "só não gostei daquele ritmo repetitivo quando o cozinheiro comia e gritava com o povo no restaurante..."

E o cachê? O cachê da stripper frequentemente corre mais alto que o do músico, piloto das ondas que lhe inspiram requebros... Há mais coisas entre o cineasta e o compositor do que julga nossa vã filosofia. Em verdade, estas são manifestações da importância superior que se dá ao sentido visual comparativamente a dada ao sentido auditivo. A audição, relegada a sentido-muleta, somente para corroborar os fatos visuais que vemos, ou para reforçar o sentido de presença física, não passa de um sentido pouco desenvolvido pela maioria da população, e, por conseguinte, subutilizado.

Neste final de século porém, com o boom das tecnologias inspiradas na biologia, muito se tem aprendido da beleza, da complexidade e das sofisticadas funções que são realizadas pelo sistema auditivo, tanto o fisiológico quanto o cerebral. No primeiro, muito tem se desvendado acerca dos processos associados a análise das ondas sonoras e seu processamento pelos órgãos auditivos. No segundo, há ainda muito a se modelar para compreender o papel neurológico induzido pelos atributos sonoros a que estamos expostos.

A música não tem somente o papel de entretenimento. Os sons naturais e fisiológicos não são somente maquiagem do dia a dia. Uma sequência complexa de ondas sônicas variantes no tempo é capaz de induzir muitos estados psicológicos nos seres vivos, influenciando seu equilíbrio, sua reação aos estímulos externos, e sua conduta e padrão comportamental. Já notaram como motoristas de ônibus ficam extremamente estressados ao lado daqueles motores barulhentos e quentes? A incidência de enfartos do miocárdio nesta profissão é altíssima no Brasil. Um outro exemplo do poder da música sobre o equilíbrio fisiológico das pessoas está na própria musicoterapia, uma terapia alternativa extremamente útil em casos onde falham os procedimentos médicos convencionais frente a patologias psico-somáticas: casos de autismo, doenças degenerativas do sistema nervoso, acidentes traumáticos, etc. Uma das condutas se baseia na busca do padrão rítmico do indivíduo de forma a sintonizar o canal por onde o terapeuta vai comunicar-se com o paciente. Procedimentos de avaliação sonora também já eram de conhecimento dos chineses há muitas dinastias imperiais atrás. Os imperadores chineses faziam viagens de reconhecimento pelo reino, e em cada lugar que pousavam ordenavam que os músicos locais lhes tocassem números musicais. Pela avaliação da afinação e do embasamento rítmico das peças, eles aferiam se seus súditos não estavam sob a influência de padrões musicais estrangeiros, e portanto sob risco de invasões ou mesmo de se rebelarem contra o Império.

Esses, e mais uma infinidade de exemplos na nossa vida, mostram a importância em desenvolver o sentido auditivo, de forma a melhor compreender os fenômenos intra e extra-corporais. Vivemos continuamente expostos a sons e músicas, na maioria das vezes sem o preparo para filtrar adequadamente aquilo que pode nos fazer crescer como seres humanos. Ao final, o objeto de aplicaçao dos fenômenos estudados na psicoacústica, da sofisticada tecnologia digital de áudio, e dos múltiplos estilos musicais contemporâneos está na busca de engrandecer o ser humano, como Bach e Beethoven objetivaram também uma vez.

Servido o aperitivo, que remete-nos a um apetite maior sobre o assunto, deixo entrar o prato principal. A engenharia de áudio passa a ter uma conotação mais distinta neste contexto, e num país de proporções musicais como o Brasil ela invade desde os menores radinhos de pilha até os maiores trios elétricos da Bahia.


Confira o I AES Brasil no Rio de Janeiro


Created: 09/10/96, updated: 29/11/96
by R. Rossi Faria