Psiquiatria e Filosofia

Henrique Schützer Del Nero

 

Filosofia é disciplina ou conjunto delas que pode varrer desde a Estética até a Filosofia da Ciência de um gene da memória, NR2B, descoberto recentemente e capa da Time de 13 de setembro de 1999. (Existe versão portuguesa da revista, publicada pela Folha de S. Paulo, e o artigo em questão, de autoria do biólogo molecular da Universidade de Princeton, Joe Tsien e colaboradores, veio a público na revista Nature de final de agosto.)

Seguindo a tradição de matiz anglo-saxônio, minha compreensão sobre a importância da Filosofia para a Psiquiatria baseia-se na capacidade da primeira de organizar, sistematizar, verificar, refutar e, se possível, axiomatizar os fundamentos e perspectivas da segunda. Nesse sentido, o que se segue, não pretende de maneira alguma revisitar autores, mas sobretudo propor debate extenso sobre os fundamentos da Psiquiatria e seu futuro.

Em livro de minha autoria, datado de 1997 (O Sítio da Mente), procurei atingir público leigo cultivado, que pudesse perambular pelas complicadas relações que governam a emergência do significado mental a partir da sintaxe cerebral. Baseando minha argumentação na função de sincronização e acoplamento de neurônios e populações deles, defendi que a sintaxe cerebral é mais bem entendida pela descrição morfofisiológica das oscilações que se utilizam do tempo como vetor auxiliar no processo de codificação e que a mente, interpretada pela linguagem e moldada pela experiência e cultura, fornece elementos de máquina virtual (níveis abstratos que tornam a máquina, telefone ou computador, parecidos com o mundo mental e contextual que nos rodeia) com linguagem própria, objeto e sujeito da forja do indivíduo.

Psicanalistas me disseram flertar com uma forma de organicismo-funcionalista; psiquiatras me segredaram ser declarada minha queda pela Psicanálise; bacharéis me convidaram a falar do sujeito de direito, público e privado, civil e penal; economistas me convidaram para falar de estabilidade, cooperação e altruísmo biológico; administradores de empresas me convidaram para falar de vendas e consumidores, como também escolas me pediram para auxiliá-las em novas formas de educar o cérebro e a mente. Depois há quem diga que Psiquiatria é coisa de loucos. Na Biologia, o século XX foi o século da Genética e o XXI será o da mente - vale lembrar, a afirmação é do Prêmio Nobel François Jacob em seu último livro.

A análise matemática das oscilações cerebrais nos fornece campo para compreender fenômenos de ação farmacológica – por exemplo, a mudança de padrão de freqüência entre conexões neuronais – bem como nos auxilia na revisão de cânones biológicos errôneos, que supõem que a mente material e física é necessariamente cerebral. Enquanto máquina virtual, programa num sentido estrito – porém estreito – é também ela, a mente, codificação e enteléquia que perpassa a cultura e o lugar.

A sociedade humana, erigida de acordo com os limites e possibilidades da manipulação do cérebro sapiental, pode e deve entender a mente na sua função e disfunção, não devendo porém limitar-se ao indivíduo doente, mas estender-se até a patologia social. Engana-se, e isso é mister na manipulação filosófico-conceitual da Psiquiatria, quem não entende existirem diferentes doenças e diferentes níveis delas. A social, antes de objeto alheio à Psiquiatria, deve ser discutida em fórum científico, visto que o altruísmo da visão estreita da genética é somente parte da herança que nos cabe, genética também, que, graças à mente, também se faz cooperante (ainda que no final seja tudo vaidade e interesse, pelo menos esse, coletivo e mediato, não é mesquinho e imediato, vale dizer – individual).

A visão filosófica da Psiquiatria pode e deve se debruçar sobre temas novos, que adentram nosso cotidiano, procurando compatibilizá-los, sem reduzi-los – no sentido vulgar e geralmente mal-informado do termo redução.

Primeiramente, não há mente sem linguagem e essa linguagem de que falamos, com a qual falamos e sobre a qual nos debruçamos a escrever e chorar nossos sintomas, é, por definição, não-projetável – i.e. não-traduzível radicalmente – em linguagem de qualquer Neurociência. Vence então a visão dinâmica baseada no significado? Não, vence a visão de que, além do treinamento atual dos psiquiatras e psicoterapeutas, é necessário dotá-los de conhecimentos de Biologia Molecular, Neurociência, Psicofarmacologia, Biologia Evolutiva e Ciência Cognitiva, além de fazê-los entender um pouco de Matemática, Física e Computação (e não Informática, como erroneamente se entende), necessárias para a compreensão de modelos de complexidade inter e intraneuronal, bem como de interação entre subsistemas cerebrais e seus diversos tipos e subtipos de neurotransmissores e neuromoduladores.

Arranjar todas essas disciplinas, de tal sorte que não se perca o viés humanista da Psiquiatria – melhor fora dizer, da Medicina como um todo – soa acaciano. O que se faz necessário, pelo menos do ponto de vista da formação, pesquisa e embasamento do profissional, do pesquisador e do professor, é dotar a Psiquiatria de uma tessitura conceitual axiomática, que permita o diálogo entre todas as disciplinas e o avanço na direção do melhor diagnóstico, caracterização e tratamento da doença mental.

Espero, também, que possamos, nessa rede conceitual, forjar um desenho biológico e científico de uma sociedade mais equilibrada, fator de agravamento, quando injusta e insensata como a nossa, de muita patologia mental leve e moderada, somente para excluir as grandes síndromes de curso atemporal e a-histórico.

É grande a distância entre o verbo e a carne, entre a mente e o cérebro. Se nos entrincheirarmos, entretanto, numa visão burra do processo mental, normal e patológico, individual e coletivo, vamos acabar simplesmente nas nossas "igrejinhas" de sempre, sem fazer o que é dever da Filosofia: a unificação do saber e o mapeamento dos seus limites, que permitem vislumbrar os umbrais de seu abismo. Do contrário, não é a Academia; nem sequer é o Inferno de Dante (pelo menos belo literariamente). É a mediocridade intelectual que campeia e vende ciência cerebral, cura mental e Neurociência de mesa de bar.

Estou farto do debate entre semanticistas-dinamicistas e biologistas-comportamentalistas-farmacoterapeutas. A Filosofia séria, no arranjo do emaranhado das disciplinas acima, poderá, no futuro, auxiliar a estruturar os dados e as raízes de cada saber, "internacionalizando e globalizando" a revolução que começou no século XIX e no final do XX ainda não acabou.

Somos átomos e bits. Cérebros não trafegam por linhas telefônicas mas bits e mentes, sim. Psicanalistas que se recusam a entender isso deveriam saber que além da prosa – máquina virtual – há o meio físico. Psiquiatras que entendem o aparelho, estão cada dia mais sem assunto, tão pouco sabem de significado, hermenêutica e Psicopatologia (DSM IV e CID 10 são glossários, não são Psicopatologia de embasamento cognitivo e neurobiológico).

Para não dizer porém que não falei das flores, leiam os interessados, psiquiatras, psicólogos e outros profissionais de áreas afins, os artigos de Kandel e o número especial da Science sobre Sistemas Complexos. Isso já vai dar para entender o que se avizinha no futuro. Acho que ninguém vai querer dar uma de Cardeal do Vaticano, se recusando a olhar pela luneta que Galileu (leia-se a ciência atual e não o Dr. Henrique) teima em mostrar.

Leituras sugeridas:

Kandel, Eric: "A New Intellectual Framework for Psychiatry" in Am. J. Psychiatry, 1998, 155:457-469

Kandel, Eric: "Biology and the Future of Psychoanalysis: a New Intellectual Framework for Psychiatry Revisited" in Am. J. Psychiatry, 1999, 156:505-524

Gallagher, R. and Appenzeller (ed.): "Complex Systems: Beyond Reductionism" in Science, vol. 284, 2 April 1999, pp. 79-109

Del Nero, Henrique: O Sítio da Mente: pensamento, emoção e vontade no cérebro humano, São Paulo, 1997, Collegium Cognitio

Del Nero, H. e Piqueira, J.: "Consciousness and Controllability: Looking for a legitimate temporal code in the brain" in Ciência e Cultura Journal of the SBPC, vol. 50, 1998, pp. 159-164

Henrique Schützer Del Nero é médico psiquiatra, formado pela Universidade de São Paulo, Bacharel e Mestre em Filosofia pela USP e Doutor em Engenharia Eletrônica pela Escola Politécnica da mesma Universidade. Tendo fundado e coordenado de 1990 a 1997 o Grupo de Ciência Cognitiva do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, atualmente é professor colaborador de pós-graduação da Escola Politécnica da USP (Grupo de Biomatemática e Neurociência Computacional), além de autor de diversos trabalhos científicos sobre cérebro e mente e dos livros O Sítio da Mente: pensamento, emoção e vontade no cérebro humano e O Equilíbrio Necessário (ambos pela Editora Collegium Cognitio tel./fax 0xx11-211.4005). Endereço para correspondência: Av. Brig. Faria Lima, 1811, conj. 911/912 São Paulo, SP, BRASIL, CEP 01476-tel./fax 0xx11 813.5701 E-mail: cognitio@uol.com.br