Consciência e Cultura

Henrique Schützer Del Nero

 

 

Os sentidos de cultura são vários; os de consciência também. De maneira breve, entenderemos a consciência como a soma dos fatos – idéias e sensações – que povoam nossa mente imediata ou explícita. Por cultura, um conjunto de fatos que povoam nossa consciência de maneira mediata ou implícita.

O cérebro é um fato da cultura e a consciência é o mais natural de seus fenômenos; não há cérebros sem teorias e nem teorias sem cultura. Culturas, porém, são várias, varrendo o espectro desde a primitiva à sofisticada, da mítica à científica. A relação entre consciência e cultura, além de intrincada e algo redundante, pode esclarecer alguns equívocos do ser mental.

Uma edificação possui um conjunto de pilares e vigas que lhe dão sustentação; depois são os tijolos, a argamassa e o acabamento. Antes de tudo, é o projeto e o conceito – da estrutura e da função – e o detalhamento das etapas de execução, cada uma com sua lógica própria.

O cérebro é como que pilar e viga que sustenta a consciência que se investe de tijolos, blocos, argamassa e ladrilhos mentais. Acabada a obra, revestidas as paredes com os elementos da linguagem, não se parece mais, a mente, com o ferro e o cimento das vigas e pilares. Nem se parece com o projeto que, do prédio concreto, somente abarcava uma perspectiva-conceito (desenho). A viga é o cérebro; o espaço interior do prédio é a mente; o espaço exterior é a personalidade que fornece os elementos para a constituição de uma paisagem cultural; o desenho-projeto é o conjunto de leis que definem como construir e, também, os arranjos culturais que definem os materiais escolhidos e a divisão dos ambientes, atendendo a determinados usos e transmitindo certas mensagens. Nesse sentido, o projeto é o ponto de encontro da cultura – no detalhamento – e da natureza – nos meios de relacionar as partes de modo científico (cálculo estrutural).

A consciência de quem vive dentro do prédio presencia cenas e ambientes, não tendo noção que é a estrutura de concreto que lhe dá suporte, nem tendo idéia precisa da mensagem que conota na cidade.

Entre um neurônio e um indivíduo há um salto mediado pela complexidade natural; entre um indivíduo e uma sociedade há um salto mediado pela complexidade cultural. Esses dois saltos só são possíveis porque há uma complexidade anterior a todo indivíduo – cérebro e sociedade – que permite que haja replicação, memória e representação. Também que haja vontade e coação; sentimento e despudor; ciência e magia.

A mente é rica porque sobrevive ou se replica pela fusão da natureza cerebral e da variedade cultural; ou pela fusão dos diferentes modos de arrumar uma estrutura e os diferentes modos de adornar e utilizar a edificação resultante. Discutir o cérebro, nessa alegoria – a da construção – é coisa para engenheiros; discutir a mente, é coisa para arquitetos; discutir a consciência mediata – cultura –, é coisa para urbanistas.

Engenheiros entendem de vigas e pilares; arquitetos de espaço, função e mensagem. Ou, engenheiros conhecem os impasses da complexidade natural e arquitetos os impasses da complexidade comunicativa. O cérebro é coisa para engenheiros; a mente é coisa para arquitetos. E a cultura? E a consciência?

A consciência é um fenômeno-função que surge da complexidade neuronal, erguendo-se graças à sustentação dos pilares da biologia que criou nosso cérebro. Adornam-lhe, porém, as paredes e os ambientes, elementos de linguagem e cultura, tal que a edificação final pareça pouco com a estrutura cerebral que está por trás e por baixo das paredes e não se perceba cópia, revisitação, agora pós-moderna, de movimentos culturais cíclicos que definem padrões e mensagens.

Todo prédio tem a pretensão de ser único, embora o detalhe não consiga retirar de cada um deles uma marca de época, contestação inclusa. Todos elas, as edificações, são a cara de sua época. Não poderia ser diferente: a cultura é definida depois que passaram os prédios, constituíndo-se pelo conjunto que reúne a soma de todos os que passaram, dos belos e feios, dos eficientes e dos derrotados, dos clássicos e dos modismos.

Todo prédio, bizantino ou minimalista, mágico ou cognoscente, está fadado a ser datado. Toda cultura é fruto de época, bem como toda edificação é cultura, embora carregue nas entranhas a classe das vigas e pilares possíveis, coisa de engenheiros que olham, no projeto, a viabilidade de conjugar a forma e a necessidade dos materiais, a intenção do desenho e o acaso do futuro.

Arquitetos, desde que bons, são treinados para desenhar o que pode ser feito; arquitetos, quando maus, desenham cenários e efeitos especiais. O arquiteto que projeta a mente científica, projeta um clássico; o que projeta a mente mística, projeta uma trucagem com retorno garantido, em que pese seu extremo mau gosto.

A mente mística é um ambiente cheio de cartas, tarôs, milagres e crendice. É barroca e pode resvalar no cafona. A mente científica, discurso possível viabilizado pela cultura, é clássica e comedida, deixando espaços vazios, mas recusando-se a poluir e a prometer. Seu desejo é a proporção, razão oculta que alicerça o equilíbrio.

A mente artística é o resultado da fusão entre o ideal da ciência e o medo da fé. Tenta tornar viável o ambiente científico e a mensagem atemporal. Peca, quando não entende que a mensagem universal está no projeto e não no ambiente; na função e não na fachada. A arte flerta com os ricos, permitindo-se o ecletismo dos múltiplos saberes e legitimando-se, às vezes, pelo místico que imita o eterno e pelo gosto que imita o valor.

Eterno é o projeto, bem como é misteriosa e mística a propriedade de equilíbrio que invade a estrutura e pode se recriar na fachada e na função. Há parcimônia e razão em cada etapa do processo, como também há no projeto evolutivo, que criou os cérebros e no feitio lingüístico, que permitiu que fôssemos imagem e semelhança da cultura, ainda que sustentados pela biologia.

O projeto, naquilo que se pode prever, excluídas as variáveis aleatórias, é algo que delineia três diferentes etapas – estrutura, paredes e função.

Na estrutura, somos complexidade cerebral, mediada por impulsos elétricos e sujeitos aos desvios dos caos e da indeterminação. Nas paredes, estamos sujeitos à complexidade da linguagem, capacidade de falar de coisas impossíveis, comunicando ainda assim; capacidade de distinguir o falso, que comunica, e o verdadeiro, que apenas confirma. Na função, somos apenas mais uma espécie desenhada ou casualmente eleita para competir e cooperar.

A linguagem nos fez rápidos, mas também nos fez interligados. A rapidez é da ordem das coisas da raposa; a interligação é da ordem das coisas das formigas que se associam no trabalho. Se a cultura privilegiar o discurso do falso que significa, então vamos exaltar na mente sua capacidade de competir, roubando da linguagem a função de comunicar e exaltando a de omitir. Vamos povoar o cenário da cidade de mentes místicas e barrocas que sofrem na paisagem deserta e cinza. Não há função que congregue, não há cooperação que diga respeito ao projeto inicial.

Mas essa mente que nasce do cérebro de fim-de-século, essa mente que se enfeita com a proposição falsa dos misticismos baratos e se jacta da vitória liberal, embora use e abuse dos materiais de alta tecnologia para se enfeitar, é uma mente perversa no panorama mediato público, na paisagem da cidade social. Essa mente namora com o eterno para não morrer. Não vê a eternidade no projeto, nem a solidariedade como dever. Essa mente será a cultura da nossa época, teimando tornar padrão o defeito egoísta.

Essa mente se desinveste do projeto inicial que prescrevia que o cérebro daria a sustentação e que a mente daria o equilíbrio entre a competição criativa e a cooperação distributiva.

A mente não pode, nem no seu interior – consciência e segredo –, nem no seu exterior – personalidade e propaganda –, deixar de atentar para o fato de que um prédio não se ergue no deserto e que há um espaço de convívio e uma função de decoro na paisagem da cidade exigindo que a mente não seja somente de um, mas de uma época toda. Não época medida pelo tempo da cultura, mas medida pelo surgimento e extinção da espécie humana.

 

 

 

 

HENRIQUE SCHÜTZER DEL NERO é médico psiquiatra formado pela USP. Pesquisador Associado da Escola Politécnica da USP (Laboratório de Biomatemática e Neurociência Computacional), coordenou o Grupo de Ciência Cognitiva do Instituto de Estudos Avançados da USP de 1990 a 1997. Bacharel e mestre em Filosofia pela USP, é doutor em Engenharia Eletrônica pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo. É autor de diversos trabalhos técnicos sobre cérebro e mente e dos livros "O Sítio da Mente: pensamento, emoção e vontade no cérebro humano" e "O Equilíbrio Necessário", ambos pela Editora Collegium Cognitio (011-211.4005).

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