Sincronização e consciência:

fundamentos naturais da cultura ou fundamentos culturais da natureza?

Henrique Schützer Del Nero (IEA-USP)

RESUMO

A consciência é o principal elemento de uma teoria robusta da vida mental. Entendida como artifício evolutivo, pode ter sido a sede de processos de redescrição valorada de atos e percepções presumidos. A consciência que surge da sincronização de módulos neuronais seria, na hipótese desse artigo, algo que emerge de quatro condições necessárias da evolução: o aumento de tecido cerebral (particularmente neocórtex), o surgimento da linguagem, a possibilidade de recombinação de módulos de processamento neuronal através de sincronismos e a necessidade de estabelecimento de um discurso valorado da ação, condição para o surgimento de uma postura ética perante o semelhante.

Descritores: consciência, ciência cognitiva, ética biológica, sincronização e oscilações neuronais.

Consciência: sincronização e compreensão

Quando o sertão virar mar e o mar virar sertão, o que será da consciência se, reduzida ao cérebro, deixar de ser prudência? O que será da justiça, se a vontade deixar de ser livre e se tornar disparo neuronal? Reflexões gerais sobre a consciência tenderão sempre a esbarrar em dicotomias. Não é, a consciência, conhecimento? Ou vontade, ou imagem de si? Ou ainda, qualidade que qualifica: o gosto das “madeleines” evocando um passado para um determinado sujeito? Não haveria teoria do passado que explicasse a vinculação entre o gosto e a memória, não fosse a união experiencial das duas séries num amálgama único e indivisível.

O discurso científico sobre a consciência rouba-lhe a grandeza. O discurso cultural rouba-lhe o fundamento. Ensaiemos, portanto, ousar uma unificação utópica: a consciência é o mais cultural dos fenômenos naturais; também é o mais natural dos fenômenos da cultura.

Interpenetram-se duas ordens, antes distintas: cultura, ou mundo do dever, e natureza, ou mundo do ser. Os discursos são rivais, estanques, longínquos. A reconciliação é quase impossível; ou vácua; ou genérica demais.

Os estudantes, clivados pela esquizofrenia de nossa incapacidade de dirimir impasses e dicotomias conceituais, quer optam por estudar a mente, quer o cérebro. Pobre da consciência, liame entre os mundos natural e cultural, entre o cérebro e a mente, tramita em julgado, dois departamentos distintos: às vezes é natureza, às vezes é cultura. A consciência, representante legal da mente, faz papel duplo: às vezes é oscilação neural, outras é a sede da pessoa, artifício da constituição da identidade mental e social.

Os oponentes se perfilam e debatem. Odeiam e expiam seus ódios sob a forma de argumento. O pobre doente no leito psiquiátrico sofre, enquanto não resolvemos a querela. Coitado, vítima de duas defesas, de duas acusações, faz a marionete epistêmica. Culpa do pai ou culpa do receptor sináptico? Pendularmente, se acusam os dois: o passado e a herança. Medica-se e fala-se. Duas ordens que não se fundem: a palavra vai para a mente; a droga, para o receptor.

O indivíduo, cindido entre a natureza e a cultura, chora por um paradigma uno. Mas, o atrevido que ousar tentá-lo será execrado e chamado de tolo. “Homem de pouca ciência, por que duvidaste da ordem dual do mundo? Da árvore da natureza e da cultura, ninguém provará o fruto”. O fruto é a consciência, a seiva é o impulso elétrico, a terra é a história, os galhos somos nós, estranha combinação e contorção, visitando espaço e tempo sem que se possa prever.

Taxonomia do mental

Há uma tendência natural na história do pensamento que recorta, classifica e ordena objetos. A mente não é exceção.

-Divide-se em pensamento, emoção e vontade - sentencia o expositor.

-Consciência - diz a velha senhora.

-Memória e aprendizado- retrucam outros.

Na batalha dos nomes não há vencedores. Perdem todos.

Dizia-me, um amigo:

- Na verdade trabalho com memória e aprendizado, mas a ortodoxia me obriga a declarar que sou um neurofisiologista do sistema sensorial. Pobre cientista: censurado, antes nos bancos escolares pelo regime de então, depois pela ignorância dos pares, e agora pela ortodoxia dos nomes.

Consciência é nome. Designa um estado, uma função e um processo. O estado é sensação. O processo é memória recrutada e atualizada num fluxo uno. A função, essa cabe aqui pensar.

A ordem das coisas impõe que o organismo se adapte. Surgem os cérebros, amontoados de células, que atravessam a informação sensorial convertendo-a em ação. Cérebros atravessadores encarecem o produto, empobrecendo a ciência.

Quiseram os behavioristas eliminá-lo; também a mente; também a profusão dos nomes que não se vêem, sentem ou cheiram. O cérebro e a mente, atravessadores, deixam, para a ordem do sensório e da ação, o elo confiável. Reforços e comportamentos substituem o antes interno, escondido e nebuloso.

-Se são atravessadores, elimine-os, e a ordem causal garantirá a objetividade - proclama o reformista apressado.

Mas o cérebro não é somente atravessador. Se no organismo mais simples liga o estímulo ao impulso, ato reflexo, no organismo complexo pluraliza a ordem das ações possíveis. À cada entrada corresponde mais de uma saída. Inicia-se a lenta gênese de pesar decisões, nem sempre boas ou facilmente julgáveis.

A história do cérebro humano é uma saga de decisões em ambiente complexo. Mato ou morro? Para um dos dois eu fujo, diz piada antiga. Mas, agora o cérebro não só mata ou morre: alia-se; trai; subjuga; tortura; comete crime por motivo vão; namora o seqüestrador; sente-se compelido pelo mal; resigna-se e reprime.

O cérebro definitivamente se tornou complexo. A ação possível é não-explicável na totalidade pelo exame do estímulo na entrada. Mais ainda, de atravessador, passou a gerente; a presidente; a rei; a pontífice de uma visão das coisas. O rei sol se tornou rei cérebro: “O comportamento sou eu”. Está declarada a morte da objetividade asséptica dos behavioristas. A ordem do poder e da opinião, de quem antes atravessava reflexos, torna-se agora ponto de inflexão e de sustentação do mundo.

O cérebro agente

Na longa jornada da seleção, vemos uma ordem de estruturas que se superpõem. Antes era o reflexo, depois a complexidade decisória e finalmente o verbo. A carne se fez verbo e soprou pelo mundo, possibilitando a emancipação do que antes fora animal e agora se tornava “imagem de Deus”. Não mais simples dança de abelha, roteiro de formiga ou careta de macaco. Comunicação, que da carne se fez significado, implica conhecer o que não está dito; perceber o que não é ensinado; desvelar o que já está dormente na história da espécie humana.‚171

Exponho a criança ao mundo da palavra: balbucia sílabas; forma palavras. Duas, três... de repente, sentenças. O salto não é ensinado. Porque constante e previsível, não está na ordem das coisas do mundo, mas na ordem das coisas do cérebro.Nova revolução copernicana: o cérebro humano reinstaura o heliocentrismo da estrutura sobre o geocentrismo do meio. Mas somos meio e história. Somos história de reforços, de traumas e sonhos. Somos amalgamados pela dor, fruto do ventre da mãe genética e do pai circunstância.

Definitivamente, relutam os sistemas de opinião, ainda não ciência, em aceitar que somos determinados antes da determinação.

-Farei da menina selvagem um cidadão ocidental- exclama, em tom de brado, o antropólogo bom.

O meio é o artífice da mente, mente que reclama por dignidade e justiça. Não se atrevam as teorias raciais a propor que negros são menos inteligentes que brancos. Podem ter fibras musculares mais próprias para certos esportes olímpicos, mas suas mentes, essas não são da ordem das coisas que se comparam; são folha em branco em que a tirania e a desigualdade formataram a história da diferença.

 

Breve história da ciência cognitiva

Quando morreu o behaviorismo, vítima de seu ideal objetivo, enterrado com o epitáfio de reacionário, veio sua alma gêmea, libertária, clamando por uma história da mente que continua a dever suas mazelas e grandezas à história de seus reforços.

Não eram mais choques, nem alimento num ambiente experimental. Era o pão da vida, era a educação e a oportunidade, era a repressão e a ganância, era a ausência de oportunidades.

Inconformados com a mente que brotou do cérebro, do cérebro biológico e neuronal, exclamam agora os algozes do behaviorismo:

-Abaixo a tirania do eletrochoque. O coração, pode-se reverter pelo uso da eletricidade. A mente é da ordem das coisa que somente se trata pelo verbo. O choque é coisa de tiranos, de torturadores, de insensatos, de desumanos - completam, em discurso aplaudido por grande parte da nata dita pensante e culta!

O behaviorismo se foi, mas deixou sua história gravada nos incautos que agora fizeram da mente arena do verbo, prova do delito das relações e dos regimes. Não se nega que a mente é para servir ao bem comum. A comunicação dotou-a de instrumento de agrupamento. Quando o grupo virou casta e a casta virou classe, a mente perdeu sua vocação unificadora, transformando-se em personalidade e sucesso pessoal.

Claro, há que gritar contra essa visão distorcida de que não temos chance para além da nossa herança. Mais ainda, quando se procura chamar a herança de negra, de judaica, de amarela, de imigrante, de comum. Mas a grita não deve ser tão geral quanto a ignorância. Quando se grita contra o meio, se esquece da ordem neural que vincula e desvela. Para além dela, estão certos os que pedem por carinho, compreensão e justiça. Sem a ordem neural, no entanto, subtrai-se o argumento mor do combate à usura e ao egoísmo: o que a mente uniu o mercado não pode separar!

O racionalismo apriorista de base neural e o surgimento da cultura

O cérebro intermediário tornou-se cérebro agente, quer por obra da circunstância(ontogênese), quer por obra da evolução (filogênese).

Esse cérebro mais ainda se investe de uma capacidade de comunicação genuína. É capaz de reconhecer duas ordens paralelas: a ordem da proposição e a ordem da verdade.

Essa capacidade opera o milagre da comunicação e, porque capaz de gerar infinitas sentenças significativas a partir de regras e símbolos finitos, torna caso único os discursos sobre a história e sobre o indivíduo.

A cultura, doadoradas formas e dos conteúdos do mental, surge a reboque, entre outras, de três capacidades básicas:

a) a capacidade de comunicação e transformação do cérebro humano através da linguagem;

b) a capacidade de trabalho com contrafactuais (proposições que dizem respeito a fatos hipotéticos, futuros ou contraintuitivos);

c) a capacidade de um discurso sobre os valores e de uma ação inibitória sobre as paixões com finalidade mediata de resguardo da ordem moral.

A ordem da complexidade cerebral possibilita que surjam, a um só tempo, a linguagem como capacidade inata, e o significado com entidade din 2ƒmica, dependente do contexto. A complexidade do cérebro possibilita o surgimento de uma complexidade de conexão entre os seres da mesma espécie. A complexidade das sentenças permite a criação de um ambiente dinâmico, natural e artificial.

A mente ultrapassa a obra biológica, tornando-se mente também a cultura e qualquer fato inteligível, capaz de ser decodificado pelo agente racional. Assim são a pintura de Picasso, a música de Mozart, os jardins suspensos da Babilônia e o último modelo de “preservativo com chip musical”. Mente é produto, a um só tempo, da complexidade dos cérebros em contextos variados e da complexidade de verdades decisórias possíveis. Quando a decisão deixa de ser verdadeira, para ser apenas possível; quando a verdade se torna cenário; quando a ação é tão ampla quanto a ordem das proposições possíveis, então o cérebro lentamente se faz mente.

Essa complexidade, ainda que amplificada pela linguagem e pela cultura, pode estar presente no animal rasteiro. Também a raposa avalia as muitas videiras e o melhor meio de alcançá-las. Somente não trata com desdém a uva desejada e não alcançada.

Então, se a mente é apenas a alcunha para a complexidade que abandonou o chão seguro e morno do reflexo e alçou vôo imprevisto, também a lontra, o golfinho e a paca têm mente.

No futuro, se mente for apenas sinônimo de complexidade, será mental também o fóssil marciano, morto na pedra e certamente fruto de uma explosão combinatorial superior à simplicidade do reflexo medular.

Definitivamente, embora conceito e portanto impreciso pela traição da tradução, a mente somente é plena, desvinculada da razão processante complexa (essa já presente no animal menor), quando seu discurso, pela mão da linguagem e da moral, replica o ato e funda o valor.

Contextos complexos, há vários: o vôo do pombo desafia nosso conhecimento; também as estruturas embrionárias de hierarquia e altruísmo nos macacos; também a fuga da lebre pela floresta; também Deep Blue quando ganha a partida de xadrez do campeão mundial; também o programa de computador que executa a folha de pagamento de uma grande empresa.

Cérebros precisaram de memória, de motivação, de reforço, de atenção, de aprendizado, de cálculos para decidir em situação complexa; precisaram de ritmos para marcar o tempo; de planos, de afetos, de dor e sentimento, para processar a complexidade do mundo. Se isso já é sublime, nem por isso a mente já está aí.

Somente há mente quando essa complexidade precisa ser reescrita, duplicada, não como a fotografia, mas como a versão que permite o contraste e o juízo.

Os modelos do mental

 

Quando o behaviorismo ruiu, o espólio foi motivo de guerra entre viúvas: umas ficaram com regras, outras com regularidades, outras com uma nova neurofisiologia.

Todas (ou quase todas, não sendo citadas as correntes que passaram ao largo dessa versão da história da psicologia e da neurociência deste século) as viúvas brigaram e brigam até hoje pelo sobrenome populista: cognição ou cognitivismo.

Quem ficou com as regras declarou apressadamente diante do testamenteiro:

-A mente que meu marido fez esquecer é processamento de informação. Bem claro: não processamento qualquer, mas sim processamento inteligente e, mais, cálculo computacional baseado em regras e símbolos. As regras são da lógica e os símbolos, sabe Deus de onde vieram.

Retruca a herdeira de alcunha neural:

ao111 -Eu diria que a senhora se engana em diversos planos acerca do falecido. Em primeiro lugar não era tão ruim assim, porque a função do meio na geração de associações e a alteração de pesos de conexão, vítimas da experiência e treinamento, não são senão uma herança associacionista que persiste na minha doutrina. Eu, no entanto, me pareço com o cérebro. A senhora, que pretende que a mente é programa e o cérebro placa, não tem a menor idéia de como funciona um cérebro. Não há memória em endereço fixo, nem processador central. Em suma, programa e placa se confundem.

Não satisfeita, dispara a senhora das regras:

-Também a senhora é bastante hábil no esconder que o neurônio de suas redes neurais não tem quase nada que ver com o neurônio real e, mais, sua noção de processamento por regularidades estatísticas apenas quebra parte do elo. Seus elementos ainda são os meus símbolos - frisando, com dedo em riste, a frase final.

Após tanta ofensa, deram-se as mãos e saíram do recinto. A morte do behaviorismo fizera surgir dois partidos, brigando pelo espólio, agora devidamente rotulado de “cognitivismo”: um afirmando ser a mente mero processamento de símbolos através de regras lógicas; outro, de maneira mais elíptica, afirmando o surgimento da mente a partir da complexidade com que símbolos se relacionam, não por regras lógicas, mas por regularidades estatísticas.

Parte do espólio do behaviorismo continua até hoje nos tribunais numa interminável querela entre essas duas senhoras: computação baseada em regras ou baseada em regularidades? Eis a questão.

Porém, ao lado dessas herdeiras, as neurociências preparavam um bote, incorporando a seu ideário a noção de cognição. Noção parcial, vale dizer, porque reduz a mente ao pensamento (modo cognitivo). Os aspectos relacionados às sensações (modo afetivo) e à vontade (modo conativo) ficam esquecidos, bem como o problema da consciência. ,

Acidente? Creio que não. Ao reduzir-se a mente ao pensamento, está-se inexoravelmente retirando a consciência do palco.Ainda que se pretenda recolocá-la, pela qualificação de pensamento consciente ou não-consciente, a estratégia não fará senão imputar ao pensamento uma propriedade que não pertence a ele, mas apenas o qualifica.

As neurociências aparelhadas com o espólio behaviorista se entregam à busca da razão neural que funda o discurso do mental: não a simples correlação função/estrutura, já antiga e cara à neuropsicologia; nem também a simples correlação entre circuitos e comportamentos (essa, herança behaviorista, de estilo caixa-translúcida)

A neurociência que socorre o espólio behaviorista é aquela que fornece quadros para três debates possíveis:

O primeiro se alia à senhora das regras e afirma que o neurônio, sendo máquina digital, é perfeitamente compatível com uma mente que processa sentenças lógicas. O segundo é que se alia à senhora das regularidades, vendo, na complexidade da relação entre os símbolos, a razão fundante do aprendizado, da adaptação e da emergência de padrões novos. Além disso, defende, ainda que um pouco envergonhada, o neurônio artificial das redes neurais como “quase” real.

Tanto na primeira, quanto na segunda, há uma questão que permanece intocada: a dos símbolos. Na primeira há regras que se debruçam sobre símbolos; na segunda há regularidades que aproximam símbolos (ou subsímbolos como alguns amantes dos nomes gostam de chamar).

Todas essa construções apenas servem para se diagnosticar como seria possível pensar a complexidade de ações e reações possíveis não programadas num cérebro. São tão legítimas para a lontra quanto para o ser humano.

O problema da mente reside, tanto no estilo de relação entre os elementos quanto na própria natureza desses elementos (ou símbolos-representações). Uma maneira radical de ver a mente precisa, à par de desvendar as formas de concatenação da razão mental, também desvendar o mecanismo pelo qual a mente gera símbolos.

Símbolos, se reduzidos às formas da sensação (visão, olfato, audição, etc), ou se reduzidos às palavras da língua (gatos, mesas), não se explicam enquanto blocos que surgem dinamicamente no cérebro, sendo então os primeiros elementos para a forja do conhecimento.

Pode-se então licitamente desconfiar que, se as regras que medeiam a relação entre objetos são lógicas ou estatísticas, o modo de formação dos símbolos, esse sim, é genuinamente humano. (Animais usariam sempre os mesmos “símbolos” e processariam uma “mente” que é apenas sistema complexo de relação entre entradas e saídas possíveis. Seres humanos, ao contrário, usariam duas ordens de complexidade: uma que forja símbolos e outra que forja relações entre símbolos).

A terceira corrente da neurociência fornece razão para uma complexidade que, não apenas relaciona, mas também forma dinamicamente símbolos. Chamo-a de topologia neural.

Brevemente, topologia neural é uma maneira de enxergar a codificação no cérebro através de parâmetros dinâmicos e não espaciais. O tempo passa a ser o eixo crítico da codificação. A evolução temporal é feita pela avaliação da distribuição das freqüências em assembléias neurais.

Sincronização e monismo criptográfico

O maior impasse da história do pensamento é a relação entre o cérebro e a mente. Todas as viúvas sérias do behaviorismo professam credo monista.

Monismo significa uma só substância. Mas o que dizer dessa substância, se a matéria cada vez mais evanesce na descoberta de elementos subatômicos não dotados de massa?

Afora qualquer especulação transcendente, cabe salientar ser a mente fenômeno que, pelo artifício da linguagem, transbordou os cérebros, inundando a comunicação interpessoal e os fatos culturais. Há “mente” na música, nos livros, na arte; também numa máquina que instancie o mesmo código e as mesmas interpretações do cérebro humano.

Portanto, se não há mente no mais baixo animal, ou pelo menos na folha de pagamento da empresa de torneiras, embora todos fenômenos complexos, devemos procurar outra definição para ela.

Se está no cérebro, mas também na máquina e também na cultura (embora ali deva ser decodificada), então é uma abstração que não depende essencialmente do meio físico (e nisso concordo com a tese funcionalista da múltipla instanciabilidade, embora discorde da natureza lógica da linguagem que replique regras e fatos mentais).

É um código e aí está a história da inteligência artificial. Quando as viúvas propõe uma mente que processa informação, estão apenas trazendo a noção de medida informacional para a arena de debate. Essa noção está estreitamente ligada a uma determinada forma de codificação e de probabilidade de ocorrência de símbolos num determinado conjunto.

A idéia de código é fundamental para que se entendam os conceitos. Os códigos podem estar localizados no espaço: a cada ponto do mundo corresponde um ponto no cérebro. Esta doutrina localizacionista não me parece tão robusta e profícua quanto a codificação temporal. A alternativa à feição localizacionista (nova frenologia) é evanescer o código, de tal sorte a fazer dele uma realização de tabelas de verdade de conectivos lógicos. O que se estará fazendo é justificar booleanamente (através de 0s e 1s e a respectiva álgebra de manipulação) cadeias de sentenças e suas ligações. Porém, se a cadeia de inferências é o fundamento de uma mente lógica, persiste a questão de onde estão as sentenças ou os átomos proposicionais?

A idéia de que haja uma codificação que se utiliza do tempo como parâmetro é uma das portas da neurociência do próximo século. Ao contrário de representar um elemento através de um ponto, represento esse objeto através de uma grandeza que varia temporalmente. Se antes precisava ter o disparo de um neurônio, agora preciso ter uma freqüência de disparos de vários neurônios para codificar um objeto. Isso me garante que o modo como a informação é representada e manipulada no cérebro, será função de uma dinâmica temporal e não de uma dinâmica espacial simplesmente.

A isso chamo de topologia neural. As razões que endossam essa mudança não advêm apenas de descobertas empíricas. Creio serem necessárias, de princípio, porque:

a) o código temporal é mais rico que o código espacial;

b) o código temporal é compatível com a formação dinâmica de símbolos e de conexões entre eles, ao contrário de preconceber símbolos que não sabemos onde estão.

Basicamente, a idéia que se mostra capaz de justificar um determinado modelo de dinâmica cerebral para a formação da mente é a rápida sincronização entre assembléias neurais. Isso estaria na base dos mecanismos de memória, de percepção de objetos (binding) e da fixação de atenção.

O que está em jogo na sincronização rápida de populações neuronais é a formação de elos de significação, cujo caráter pode ser explicado, tanto pela oscilação de cada população, quanto pela relação entre os dois osciladores.

Seria como colocar uma orquestra para tocar: um violino pode tocar com um piano. Tenho um símbolo formado pelo violino + piano e posso estabelecer uma relação destes com uma viola (outro símbolo) através de uma harmonia (afinação). Assim há afinação na relação de um instrumento consigo, dele com outro e destes blocos com outros blocos.

A codificação temporal através da sincronização responderia assim por um processo uno de ligação entre elementos, tanto ligando elementos no afã de formar símbolos quanto ligando símbolos no afã de constituir seqüências.

O monismo dos códigos garante à mente processo de codificação temporal que, se devidamente instanciado, realiza operação similar em cérebros, máquinas e em objetos culturais.

Assim a mente seria fundada pelo código e não pelo ser, seja esse ser o cérebro ou a máquina. Mas, para conhecer o código temporal, e sua natureza não material, o único órgão de que disponho para análise é o cérebro humano.

Seria assim a sincronização fenômeno que subjaz à mente entendida como consciência. Por quê? Simplesmente, porque na querela por achar um código, temos na ordem temporal algo que rebate tantos as críticas à inteligência artificial simbólica quanto à conexionista. Se ambas supõem a existência de símbolos, debatendo como ligá-los, com a idéia de sincronização tenho unificação de forte apelo empírico que se candidata a explicar tanto a forja do símbolo, quanto a forja da relação entre eles.

Não estranhamente esse fenômeno de sincronização, tão interessante como código temporal, está intimamente relacionado com a consciência (Koch e Davis, 1994). Teríamos assim uma relação parcial entre sincronização, codificação temporal, mente e consciência.

Consciência

Vamos voltar ao problema da mente. Não nos acrescenta muito definí-la como complexidade. Há complexidade tanto na mente de qualquer animal como em diversos outros fenômenos certamente não-mentais. Porém, se a sincronização é fenômeno natural que também não esgotaria o tema da consciência, é fato que, em algumas situações de consciência, parece haver fenômeno de sincronização envolvido.

Quando tentamos nos perguntar pelo cerne da mente, percebemos que o ponto crucial não é o comportamento complexo, nem a qualidade sensorial; mas a consciência enquanto fenômeno com que nos defrontamos diariamente na nossa introspecção.

Minha filha de 6 anos descreveu com sensatez:

-Papai, o que é mente?

Tentei explicar-lhe que, fechando os olhos, continuava a ter uma série de imagens, idéias...

-Ah! já sei, é a televisão que eu tenho na minha cabeça.

Pronto, pela boca da criança está dito o que percebemos de nossa mente.

Outra vez, queixava-se:

-Papai minha cabeça não pára de pensar- ou, quando aprendeu a ler, dizia:

- Não consigo parar de ler.

Esses fenômenos todos são mente, no sentido de serem consciência. Certamente, minha filha não tem aos 6 anos condição de falar sobre aspectos não-conscientes de sua mente.

Por consciente, entendamos aquilo que é consciente (no sentido da vivência subjetiva e fenomenológica) ou que pode se tornar consciente.

A consciência seria uma das poucas funções mentais que, de uma certa forma, detêm a primazia sobre as outras. Falar de memória sem consciência não acrescenta, porque posso exibir animais inferiores que têm memória e não têm consciência (pelo menos plena). O mesmo é válido para o aprendizado e para uma série de outras faculdades mentais.

Ora, mas como vimos no início deste artigo, podemos falar de uma consciência estado, de uma consciência processo e de uma consciência função.

O discurso da consciência estado se resume às sensações. O discurso da consciência processo se resume à atualização em fluxo unitário de memórias. A consciência função é que me permite indagar sobre algumas de suas peculiaridades mais básicas.

Acho muito pouco provável que nossa consciência, tão cara, direta, privada e palco de tanta reflexão, fosse sem função básica na nossa economia comportamental.

Se a linguagem é o fato externo mais digno de nota no ser humano, a consciência é o fato interno mais crucial. Haveria relação entre elas? Essa pergunta requer que tenhamos um candidato à função da consciência.

Voltemos ao problema da complexidade. Se os organismos migraram de uma reflexo prévio para uma ponderação complexa de atitudes possíveis, é certo que o ser humano agregou dois outros fatos a essa cadeia evolutiva:

a) tornou as ações e o meio ainda mais complexos;

b) foi, aos poucos, precisando de uma forma de justificação para seus atos, pensamentos e emoções.

À medida que a linguagem se instalou nos cérebros, puderam as ligações se estabelecer de maneira dinâmica e com graus de coesão nunca dantes vistos.

Se animais constituem grupos, certamente não os diferenciam em credos, sociedades anônimas, amigos de bairro, partidos políticos, etc. Essa característica das ligações mediadas pela riqueza da linguagem, e da possibilidade de geração de infinitas seqüências de comportamentos lingüísticos significativos, serve à criação, ao progresso e à formação de sociedades. Isso, ainda, não justificaria a aparição da consciência. Poderíamos pensar nos atos todos e apenas qualificar a série de fenômeno complexo.

Quando falamos, não temos consciência de grande parte dos elementos da linguagem; quando fazemos discursos, quando escrevemos textos, quando decidimos e assim por diante. Fato notável, grande parte do que chamamos de consciente não é, senão:

a) monitoramento de estados do corpo (perfeitamente compatíveis com qualquer máquina que não exibisse consciência);

b) sensações subjetivas: o gosto da maçã, o cheiro da rosa. (Parecem-me acidentais e, se dificilmente explicáveis, também desnecessários para uma hipótese sobre a função da consciência);

c) justificativa e paráfrase de estados de decisão que parecem emergir na consciência;

Tanto a quanto b não me parecem vitais para uma teoria da consciência. C, no entanto, parece encerrar fato notável: os juízos e decisões podem não ser fatos conscientes; a justificação dos próprios sempre é consciente.

Ainda que se pudessem alocar outras funções para a consciência, creio ser o contexto da justificação um deles, senão o principal. Ora, a reunião de indivíduos em sociedade, ainda fenômeno complexo, exigiu uma determinada gama de contratos e de pactos. Muitas vezes o indivíduo é chamado a explicar seus atos, pensamentos, desejos e justificá-los. Como diz um penalista: a ausência de motivos, num crime, é motivo vil.

De uma certa maneira creio haver uma paráfrase da ação, um recontar da ação que a duplica através da linguagem e da memória. É essa paráfrase ou “metáfora encarcerada pela linguagem” que:

a) permite a valoração dos atos (ao contrário da simples ação);

b) sincroniza duas ordens temporais e conceituais (ato e valor).

Assim o fenômeno que me parece fundamental é a existência de três classes de relações:

a) elementos que se relacionam com elementos, formando símbolos;

b) símbolos que se relacionam com símbolos, formando pensamentos ou atos;

c) pensamentos ou atos que se relacionam com redescrições lingüísticas valoradas de pensamentos e de atos, formando consciência.

A sincronização permitiria entender três grandes classes de relações sem que para isso tivéssemos de lançar mão de fenômenos não neurais. Por outro lado, a progressiva ressonância de cadeias de pensamentos, e as redescrições valoradas dos mesmos, atingiria limiares corticais, sem os quais temos apenas formas não-conscientes (ou pré-conscientes) de processamento (priming, etc). Essa ressonância progressiva explicaria o fenômeno crítico da unidade, porque haveria uma atualização breve de grande parte do sistema (há uma onda de sincronização que varre o córtex no sentido ântero-posterior e rostro-caudal).

Essa paráfrase que explicaria a consciência seria a um só tempo:

a) recrutadora de memórias;

b) recrutadora de elementos lingüísticos que descrevessem regularidades com regras lingüísticas, constituindo proposições, cadeias de argumentação, validade, etc.;

c) fortemente ligada à valoração, à justificação e ao abortamento de atos ou cenários complexos (o que de uma maneira geral mostra o quanto a consciência teve função na adaptação do indivíduo ao meio social, às normas, à ética dos valores e da conduta);

d) fortemente ligada a mecanismo de justificação e análise de fins e meios para situações complexas.

Se resolver o problema complexo carecia apenas da ação, agora a valoração recria uma ordem paralela que, quando sincronizada com a primeira, suscita a vivência consciente. Por quê? Porque capaz de sincronizar em hierarquias diversas, criando versões paralelas de atos, a maquinaria cerebral dá condições para o aparecimento de um discurso de responsabilidade, justificação e argumentação, e não apenas de comunicação.

A sociedade somente se ergue, e se mantém, com alguma forma de valor, responsabilidade, norma, sanção e justificação.

Tanto a cultura se serviria da consciência, fazendo dela seu representante natural, quanto a consciência se serviria da sociedade fazendo dela seu representante cultural.

A sincronização não explica a consciência. Mas pode ser mecanismo unificador pleno, permitindo construir uma epistemologia de base neural e planos superpostos que tanto constituem objetos com relações entre eles.

Ao lado disso, percebemos que a consciência parece ser vital para a mente, vital para a sociedade, embora não vital para um sem número de operações complexas (chame-as de mentais ou cerebrais). Nesse sentido, através da sincronização de populações neurais em grau crescente e, finalmente, através de uma paráfrase da ação, que cria uma réplica lingüístico-temporal valorada da ação (para justificar o passado) ou da intenção (para justificar o futuro) temos as condições neurais para implantar sistemas sociais.

Os sistemas sociais terão na arquitetura do cérebro humano, através dos planos progressivos e globais de sincronização, a alavanca natural para poderem exigir uma ética da conduta.

Os conteúdos da consciência terão, na arquitetura da cultura, o fundamento para eleger suas paráfrases argumentativas do porquê da ação ou do plano, podendo haver, no caso futuro, inibição do ato.

A consciência surgiria à medida que o cérebro complexo cria a linguagem; esta cria a ligação social, que cria o valor e as normas; estas voltam ao cérebro e lá encontram mecanismo que permite duplicar a ação: uma será ação (ou idéia de ação) outra será valor da ação. A ressonância entre ambas (ação e valor) permitirá:

a) que se superem limiares locais e se espraie o fenômeno pelo córtex;

b) que se exerça a inibição sobre hierarquias inferiores (o correlato da sanção e da censura no nível interpessoal);

c) que se povoe a consciência de conteúdos da cultura e da linguagem, tais como vontade, liberdade, desejo, crença, temor, misticismo e, sobretudo, norma, lei, valor moral, ético e finalmente teológico (ou no indivíduo comum, místico).

A consciência, não raro, é tão fugidia à ciência, porque teria:

a) parte de sua razão fundante no cérebro humano, porque capaz de criar ordens sucessivas e hierárquicas de oscilações sincrônicas;

b) parte de sua razão fundada na cultura, porque quem a formata pela linguagem e dela exige discurso de justificação para além da mera ação.

Consciência é termo, e não me acusem de amante dos nomes, que aparece na Grécia, quando se quer designar entre os criminosos, quais tinham intenção ou não de cometer o crime; quais tinham conhecimento ou não dos desdobramentos.

A explosão combinatorial evolutiva permitiu ao cérebro humano ser capaz de gerar uma série de fatos que estão na base de qualquer estudo da consciência:

a) permitiu o surgimento da linguagem;

b) das sociedades;

c) da moral, do direito e da religião;

d) e na base de tudo isso, o surgimento de mecanismo neural de duplicação e paráfrase via sincronizações e memórias.

A consciência, não me julguem atrevido, deve estar perto da interface destes elementos todos. Ainda que sublime, e tão pouco propícia a modelos formais, deve ter na topologia neural, e no monismo dos códigos, base epistêmica para nortear uma ciência mais objetiva da mente normal e patológica. Como complemento, pode fornecer ainda alguns argumentos nesse momento em que a mente que foi selecionada para promover a coesão, promove a dissimulação.

Se o semelhante virou nosso predador, então bem-vinda estratégia de sucesso pessoal; se, no entanto, isso é apenas um engano de certos sistemas econômicos e políticos, uma releitura da função biológica da mente e da consciência pode auxiliar no encaminhamento de éticas mais compatíveis com nossa espécie.

Consciência é também, e sobretudo, engajamento moral num ambiente social. Por isso negá-la em sua totalidade ao animal que não o Homem. Por isso tentar fazer de sua história evolutiva e funcional um argumento em favor da igualdade e da justiça para toda a espécie.

ABSTRACT

Consciousness is the key element of the mental life. It can be undestood as an evolutionary tool that scaffolded valorized redescription of presumed acts and perceptions. Consciousness that emerges from the synchronization of neuronal modules would emerge thanks to four necessary conditions: the increase of cerebral tissue (particularly in neocortical areas), the appearance of language, the possibility of recombination of neuronal processing modules through synchronization and the necessity of establishing a valorized discourse of action, the very condition for the appearance of an ethical approach towards the fellow.

key terms: consciousness, cognitive science, biological ethics, synchronization and oscillations.

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