Prazer e Reprodução:

digressões impertinentes sobre biologia, sexo e cultura

Henrique Schützer Del Nero

Fui tomado de assalto semanas atrás por minha secretária que, insistente, me dizia haver pessoa de revista de "mulher pelada" que queria me entrevistar.

Cientificado de antemão que não se tratava da célebre Playboy, fi-la ver, a secretária, que gostaria que confirmasse o estilo e proposta de tal revista, visto que, por temor besta, não me parecia adequado ter a inserção de uma propaganda de sex-shop entre alguma frase minha ou outra, não porque objetos vibratórios me causem prurido (psíquico, bem entendido), mas porque temia que fosse uma dessas publicações que optam por uma linha mais "ginecológica", o que, sem tirar-lhes o mérito, subtrairia o prazer do leitor ávido por obviedades, dando-lhe em troca uma difícil filogênese (antes mesmo da historiogênese) do prazer sexual e seus sequazes.

A primeira pergunta que me faz, já passadas algumas horas de meu aceite desconfiado, é "Por que sexo é bom". Respondo, ato contínuo que "é bom quando é bom". Algo atônita, a jornalista que pensara entrevistar alguém que começasse discurso sobre a virtude da invenção no sexo diurno, diuturno e/ou noturno entre casais em que a virilidade e a libido minguaram, em que pese não terem diminuído, muito ao contrário, as despesas e os débitos – cheque especial para falar do concreto, mágoas para falar do que se devera ter feito e não se fez – percebeu, ela a jornalista, que eu ia dar uma pequena aula metafórica e metonímica da fantástica relação entre ser e sentir, mais que das relações explícitas entre seres e o que eles sentem.

Não, o tema é e era por demais sutil e sujeito ao mau gosto ou à obviedade – para não falar do medo do meio (mídia, entenda-se bem, evitando-se a ligeireza de pouca elegância) – para ser tratado explícita e infantilmente. Entre sugerir novas posições, cremes lubrificantes e mesmices dessas, fico com a poesia e a alegoria do discurso elíptico, elegante e plausível.

Horas depois, entrevista longa, já agora situada pela gênese do comportamento sexual e subseqüente "erotização" dos objetos – capital, família, propriedade e prazer que unificam e torturam, pergunta-me a jornalista:

Respondo-lhe de chofre, sem titubear, como que marcando os limites com que comecei e terminaria a longa entrevista, que espero não saia na página e veículos errados:

A alegoria que pretendo usar na explicação do binômio sexo e prazer é a de partidos políticos, figura extremamente didática para que se possa entender o processo biológico que antecedeu o tempo histórico e cultural do ser humano e que gerou um sistema de ligação genético-valorada, hoje talvez mais bem retratada como união estável, que subjaz à família, e também a tantas alegorias "familiares" – Estado, empresa, indústria sexual e perversão.

Falo então do início da sexualidade biológica, em linguagem de partido político, parlamentarismo ou presidencialismo, para – e nisso advirto o leitor – durante a argumentação parecer reduzir o prazer e o sexo à uma forma de propriedade e conservadorismo, mas muito ao contrário, visando no final, se conseguir ser claro, mostrar o que a maioria parlamentar de partidos coligados – o da reprodução e o do prazer – pode fazer pelo resgate da idoneidade de uniões estáveis entre homossexuais, somente para citar um exemplo bombástico, e também pode fazer para mostrar que a "erotização’ do capital e do corte de gastos, faz com que o Estado-família abandone seus filhos-cidadãos numa perversão antibiológica.

O cidadão nasce do ventre da terra mãe, pátria ou planeta. Sem prazer, resta-lhe começar a andar e tal qual fora gato ou cão, procurar em vão o sustento que se lhe rouba. Existe um discurso sobre sexo e prazer no plano do indivíduo, biológico e depois histórico, mas também há um metadiscurso pós-histórico, ou recentemente, cultural, que deve estar contemplado na busca da função da preservação do valor (genético ou de uma ética do animal humano) e do prazer (tesão, compaixão, civilidade, legalidade ou legitimidade, dependendo do instante e do tipo de relação)

O ser humano, Homo sapiens sapiens, "nasce" há 100.000 anos no registro fóssil. Não é feito à imagem e semelhança de Deus, mas ao contrário, animal racional, é lento na fuga, fraco na luta, mas carrega em si o germe da invenção, inteligência e, mais adiante, 30.000 anos atrás, com a linguagem, a possibilidade de erigir grupos que embrionem sociedades regidas por normas etéreas supraindividuais (leis e costumes).

Carregar 9 meses o rebento na barriga é e era custoso. Parir-lhe e esperar que saiba proteger-se demanda algo em torno de 10 anos, isso na dimensão selvagem; 18 anos, na dimensão civilizada que sabe quando o sistema nervoso central amadureceu o suficiente para se defender.

O macho, essa invenção do erotômano que permeia a natureza, sedento de depositar seu gene, é proibida – ou devera ser – no sapiens pela necessidade de manter aquilo que se criou. Se o tempo com que um gato cruza uma gata e os pequenos gatinhos já sabem procurar comida e passear em muros é rápido perto do tempo que igual tarefa demora empreender-se no humano, imagine o que seria da célula genética (não disse familiar) que se formava há 100.000 ou há 30.000 anos quando do pós-prazer procriativo? (Fumar um cigarro, dar de ombros, não telefonar no dia seguinte são invenções recentes e datadas.)

Havia que, ele o macho e ela a fêmea, dividirem funções e criar condições de sobrevivência. O prazer é o que faz dos deveres algo suportável. Era isso que demandava a Biologia que devia pedir que o macho humano voltasse à casa ou caverna com alimento, sedento de diálogo, ou à época, de um pouco de prazer.

O prazer sem filhos pode ser a condição de criá-los, mantendo o núcleo da célula genética (metade do genoma paterno e metade do genoma materno). A Natureza que sem cessar usara da tirania do partido único – procriação/prazer –numa só votação em que lutam contra as forças do partido contrário que pretende extingui-los, ou tirar-lhes poder, devia agora, ou então, separar os partidos, de um lado a procriação (manutenção de genoma) e de outro lado o prazer (manutenção de deveres, devidamente adoçados pelo reforço positivo).

A equação estava pronta e foi usada sabiamente para defender o prole sapiens das intempéries da savana e de sua pouca força e velocidade. Mas veio então a História e com ela a Cultura, tornando o prazer escravo da procriação, ou pecado a procriação sem prazer, ou pecado o prazer sem procriação, etc.

Como toda a invenção, o artifício da separação entre procriação e prazer estava apto a solidificar a sociedade, permitindo que houvesse um sem o outro, nos casos em que bastasse maioria simples, e ambos, nos casos em que houvesse necessidade de maioria absoluta.

Claro, a maioria absoluta é o motor que gera prole, mas a maioria simples é o que permite que se dissociem as instâncias, criando, como disse atrás, a possibilidade de prazer sem filhos e muita integridade no caso da homossexualidade. Porém, ao mesmo tempo, no metanível da sociedade, uma perfida relação em que Estado e empresa podem ter o prazer do lucro e do superávit, sem com isso ter de comprometer-se com a prole, com seu destino e amadurecimento.

O Estado que deixa seus filhos sem escola e saúde é como que um desvio do prazer que deixou de se comprometer com a coisa gerada. O prazer libidinal da usura é parente bastardo de uma invenção sábia da Natureza; é prazer que gosta de excluir e se deleita com esterilidade e mendicância de seus frutos.

Haveria muito mais para falar, mas não há espaço. É preciso entender que são tantas as variáveis e possíveis desvios do mecanismo que dissociou o prazer da procriação, que a Biologia chora quando a libido tomou conta das relações sociais, numa libertinagem perversa de descompromisso com a prole. Porém, a mensagem otimista é que é possível entender sem culpa, biológica e evolutivamente, que pode haver união estável sem procriação. Isso é a semente da família humana, não com filhos, mas com estabilidade e dignidade.

O prazer da noite é o que nos faz suportar a jornada, combater o bom combate e buscar a justiça na cidade dos Homens. Com ou sem procriação, a sociedade assumiu contornos tão distantes do vezo biológico que a tornou possível, que há que reinstaurar a possibilidade do prazer e entender a prole como pátria e como espécie. Assim seremos humanos, animais e, sobretudo, nobres, atrevidos e sensíveis na construção inteligente do futuro.

 

Henrique Schützer Del Nero é médico psiquiatra, formado pela Universidade de São Paulo, Bacharel e Mestre em Filosofia pela USP e Doutor em Engenharia Eletrônica pela Escola Politécnica da mesma Universidade. Tendo fundado e coordenado de 1990 a 1997 o Grupo de Ciência Cognitiva do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, atualmente é professor colaborador de pós-graduação da Escola Politécnica da USP (Grupo de Biomatemática e Neurociência Computacional), além de autor de diversos trabalhos científicos sobre cérebro e mente e dos livros O Sítio da Mente: pensamento, emoção e vontade no cérebro humano e O Equilíbrio Necessário (ambos pela Editora Collegium Cognitio tel./fax 0xx11-211.4005). Endereço para correspondência: Av. Brig. Faria Lima, 1811, conj. 911/912 São Paulo, SP, BRASIL, CEP 01476-tel./fax 0xx11 813.5701 E-mail: cognitio@uol.com.br