O tempo marcado

Henrique Schützer Del Nero

 

Paciente meu, "enfermo dos nervos", diriam os antigos, telefona-me angustiado. Enquanto fala, ouço o bater de um relógio de tipo carrilhão, com ruído característico. Explica-me, o paciente, que é o relógio antes da casa paterna, quinhão que lhe sobrou da pouca herança. Embora muito tempo tenha passado (cova rasa para o corpo pequeno, pena, morreu João Cabral, embora lhe sobre a alma, – dele, João, pela poesia que deixou; do paciente, não porque como Pessoa navegou o tempo, mas porque as marcas do tempo teimaram ficar), os restos do navegar que o relógio insiste marcar, fazem dele doente do cérebro, da mente, da circunstância – forma e conteúdo, verso e reverso de uma mônada que a ciência ainda não sabe explicar. Há o tempo passado e a lembrança ou, no dizer do poeta Antonio Machado, "una cosa ès el recuerdo y otra el recordar".

De quinze em quinze minutos soa, e o paciente, balbuciante, choro engasgado, prosa escandinha, entremeia à narrativa uma ladainha melancólico-manipuladora:

— Ouça, ouça, eis o soar do relógio, eis o meu tempo que passou, ouça, ouça... é a casa de papai... é minha infância... (talvez, transferencialmente, quisera o paciente confundir o seu passado com o meu, ambos pesados, porém distintos).

O tempo marcou-lhe a alma, impressionando-lhe de maneira sincopada o discurso repetitivo e vazio, melancólico e sem prazer, nem pudor, destemido e algoz. Pudera imputar-lhe depressão intratável, outros, no entanto, irmão desse paciente incluso, certa feita me disseram ser apenas obra do ocaso do tempo que passara. O ocaso e o tempo deixaram em ambos, paciente e irmão, tristes sombras que a mente, na sua faceta lingüística, me sussurra ao telefone, e o peito teima apertar e contrair na expressão corporal da angústia e no choro, que mais que lágrima é apenas o tempo marcado, ou tempo que deixou marcas que jamais haverá droga, ou benção, ou perdão, ou palavra, ou ato que possam sanar.

 

Li na revista Nature, de 12 de agosto de 1999, editorial e artigo que falavam de pesquisa de importância vital, relacionando oscilações lentas nos gânglios da base e marcadores de tempo e doença de Parkinson e, fato omitido, mas de nós sobejamente conhecido, depressão recorrente, mal quase sempre presente no paciente parkinsoniano.

O editorial (são vários) está na seção "News and Views" e, invariavelmente, introduz os fatos científicos mais relevantes da semana e remete o leitor ao artigo que estará em outra seção, nesse caso na "Letters to Nature" (essas "cartas" exprimem normalmente de maneira sintética alguma pequena revolução científica, e são tantas, que pudera chamar-lhes "guerrilhas" da razão, semanalmente disponíveis para quem acredita que exista progresso no saber e na razão).

Uso o termo guerrilha, batalha, revolução, motim e outras tantas, porque a maioria da coisa humana teima em achar que a "sabedoria milenar" de algum sábio oriental prescinde da labuta incansável e sublimada do cientista que busca a verdade, sempre provisória, mas talvez aperfeiçoada da ciência. Tachem-me de cientificista e de positivista, mas tenho certeza de que uma pessoa que me procure no consultório ou hospital terá direito de maldizer-me, além de blasfemar, processar e arruinar, se receitar-lhe uma droga para emagrecer, tida como segura e inócua um ano faz (foi até capa da Time ou da Newsweek, não posso precisar), que posteriormente, primeiro numa dessas "letters", depois em artigos vários, mostrou lesar a válvula cardíaca mitral dos pobres gordinhos ansiosos por um meio leve de perder o apetite voraz, tendo sido retirada do mercado americano pelo FDA (Food and Drug Admnistration) e logo em seguida do brasileiro pelo Ministério da Saúde, que pretende criar os genéricos que barateiem os preços e instituir órgão de controle à imagem, semelhança e eficiência do FDA, mas que tem ministro que, "parece", acredita em magia.

Em artigo de Flávia de Leon e Olimpio Cruz Neto (Folha de S. Paulo, 10/5/95), intitulado "Guru ‘energiza’ jantar no Supremo – Morton vira destaque em festa", lê-se:

"A presença do paranormal Thomas Green Morton no jantar em homenagem ao novo presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), Sepúlveda Pertence, agitou políticos, advogados e até juízes anteontem.

A romaria começou no início da festa, realizada no Clube do Exército, em Brasília, antes mesmo de o jantar ser servido. O primeiro ‘Rá’ – grito criado por Morton e que simboliza a energização – foi para o diretor-geral do STF, Alysson Mitraud.

Em sua passagem por Brasília, Morton dormiu uma noite na casa de Mitraud. Na manhã seguinte, confidenciou Mitraud, uma surpresa: algumas colheres estavam retorcidas, prática que tornou o guru conhecido nacionalmente.

Logo depois de Mitraud, o paranormal começou a ser procurado pelos políticos. O sisudo ministro José Serra (Planejamento) não pôde ser energizado, mas não deixou por menos.

Sacou um pequeno bloco do bolso do paletó, tirou a tampa da caneta Mont Blanc, segurou-a entre os dentes e anotou todos os seus telefones, ‘este é da minha casa e, este, do gabinete. Tenho que correr para pegar um avião’, disse Serra, despedindo-se de Morton".

Serra à época era ministro do Planejamento, agora é da Saúde e "parece" liderar grupo dos "desenvolvimentistas" que se opõem ao neoliberalismo de ortodoxia monetarista de Malan (apesar desse optar com firmeza e pelo ‘consenso global’ de que o déficit deve ser zerado, ainda que para isso se paguem juros escorchantes para o capital volátil que nos acode, tal é o nível de remessas que temos de fazer em dólar, após tanta desnacionalização – e olha que o problema não é de nacionalismo, é simplesmente o fato de que se entregarmos nosso patrimônio aos estrangeiros, eles, de posse de seus direitos, remeterão seus lucros em dólares e não em reais, em que pese gerarem "inúmeros" empregos em um Brasil varonil, plugado num mundo em que até a social-democracia européia virou direita, e desmantelarão o Estado social, conquista que "humanizou" o capitalismo e que, se traída, pode nos levar de volta à barbárie do capitalismo semi-escravagista do século passado) e faz parte de uma ciência e de um governo que nos prometeu – essa foi Kandir – que a reeleição nos levaria a taxas de crescimento de mais de 7%.

Pena, erraram a previsão, como a ciência erra, estamos felizes porque o PIB não caiu os 4% previstos no início do ano, nem a inflação explodiu, mas temos que agüentar um governo que parece teimar em parecer social-democrata, quando na verdade faz, por intenção ou omissão, planejamento sem planejar, crescimento sem crescer e alianças, que quem sonhou com uma alternativa de centro-esquerda, chora todas as noites vendo ACM a ditar e FHC a calar, pra não dizer do povo, a minguar.

A ciência erra e por isso construímos modelos e os verificamos e refutamos. Revistas sérias nos brindam com pequenas guerrilhas da razão contra a barbárie travestida de misticismo e transcendência. O tempo, parece, é marcado no cérebro – mais precisamente nos gânglios da base – por oscilações lentas com retroalimentação negativa tálamo-cortical.

O tempo marca, nas agruras de meu pobre paciente, conteúdos mentais que o tempo não apaga e fá-lo chorar e ouvir obsessivamente o tempo do relógio da casa paterna.

O tempo também marca, na Década do Cérebro, esforço por entender esse órgão maravilhoso, que marca o tempo, que nos deu uma Década perdida no Brasil de 80 a 90 e agora, nos 90, pós-Collor, Itamar e com FHC, parece de novo marcar os excluídos, aumentando-lhes o número e a dor.

Ciência boa marca o tempo e medica a desrazão. O tempo marcado, a cada quinze minutos no soluço do paciente, no plano público, nos impacienta. Até quando teremos que esperar da magia a solução racional para o problema da exclusão, da subserviência e do subdesenvolvimento?

Nossas dores são duas: a dor privada – conteúdo que o tempo em nós marcou e que nada pode sanar; a dor pública – conteúdo que a nossa história em nós feriu, e que, parece, elites retrógradas e amorais não pretendem apagar, nem sanar, senão pedindo que as "energizem" para o próximo milênio.

A ciência pode ter a cura para a desigualdade, bastando-lhe perceber o absurdo da exclusão de ¼ da humanidade, usando-se, para isso, não da baioneta, nem do discurso de palanque, mas apenas de uma ética social de matiz biológico.

Para o choro sincopado do tempo passado, talvez nos sobre apenas cova rasa e algum ungüento de consultório ou sacristia.

 

 

 

Referências Bibliográficas

Wichmann, T. e De Long, M. (1999), "Neurobiology: Oscillations in the basal ganglia" in Nature, 12/8/99, vol. 400, número 6745, pp. 621-622

Plenz, D. e Kital, S. (1999), "A basal ganglia pacemaker formed by the subthalamic nucleus and external globus pallidus" in Nature, 12/8/99, vol. 400, pp. 677-682

 

Henrique Schützer Del Nero é médico psiquiatra, formado pela Universidade de São Paulo, Bacharel e Mestre em Filosofia pela USP e Doutor em Engenharia Eletrônica pela Escola Politécnica da mesma Universidade. Tendo fundado e coordenado de 1990 a 1997 o Grupo de Ciência Cognitiva do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, atualmente é professor colaborador de pós-graduação da Escola Politécnica da USP (Grupo de Biomatemática e Neurociência Computacional), além de autor de diversos trabalhos científicos sobre cérebro e mente e dos livros O Sítio da Mente: pensamento, emoção e vontade no cérebro humano e O Equilíbrio Necessário (ambos pela Editora Collegium Cognitio tel./fax 0xx11-211.4005). Endereço para correspondência: Av. Brig. Faria Lima, 1811, conj. 911/912 São Paulo, SP, BRASIL, CEP 01476-tel./fax 0xx11 813.5701 E-mail: cognitio@uol.com.br