A Mídia Médica Mente?

Como tenho o hábito de jantar tarde, costumo pedir que me gravem um dos jornais televisivos noturnos, para que possa saber das notícias do dia – hábito arraigado entre nós, brasileiros, não porque engajados e participantes, mas porque sobressaltados e sempre amedrontados, tanta mudança se dá e tanto tempo demora a chegar o dia em que poderemos trabalhar em paz, certos de que "na mesa do justo não há de faltar o pão".

Um desses jornais, meu antigo preferido, antes informativo e opinativo, seguindo a voga mercadológica dos pontos do Ibope, passou recentemente a tornar-se painel médico diário, trazendo a cada dia uma nova e revolucionária descoberta ou cura possível. Até aí, tudo bem... Afinal, não espero que o público leigo tenha o hábito de ler as revistas Science, Nature, Lancet, New England Journal of Medicine, entre outras tantas. Porém, a porca torce o rabo, quando se misturam técnicas e curas tão díspares, que não se sabe mais se o intuito é o de informar ou de apenas fazer média, típica de certo tipo de mídia, que agrade todos os gostos.

Depois de ouvir três ou quatro entrevistas no mínimo heterodoxas quanto ao saber científico atual, deixei de freqüentar meu jornal antes predileto, mudando para outro mais afeito às tristes lides do novo ACM, pai dos pobres, com seu imposto sobre a riqueza, fosse ele porta-voz de tão nobre e urgente preocupação e fosse sua atuação histórica um exemplo de solidariedade com os excluídos. (Infelizmente, vem de alguns dias que, logo após meu novo telejornal, agora preferido, fui brindado com uma solene entrevista sobre medicina antroposófica, proferida em tom grave, a lembrar o entrevistado o famoso Conselheiro de Eça de Queirós, e que, aos olhos do incauto, impressionava mais que um tímido cientista que passa a vida pesquisando o sub-receptor 5HT1 nos casos de fobia social ou na interação mútua e complexa entre noradrenalina e serotonina em diversos subsistemas cerebrais.)

Passados alguns dias – e isso não é raro – fui acossado em meu consultório por perguntas inquisitórias, contundentes, incrédulas, de pacientes que afirmavam existir antidepressivo novo no mercado – notícia veiculada em tom solene em jornal televisivo noturno –, e natural, sem efeitos colaterais e com eficácia muito maior e mais rápida que as drogas conhecidas e usadas. Diziam ter visto no jornal noturno até mesmo uma entrevista de um médico americano – o que torna as coisas ainda mais sérias e o que fez um paciente meu balançar a cabeça, como se, com esse argumento, me golpeasse de morte em meu alarmante desconhecimento – que retratava enfaticamente as maravilhas da nova droga natural.

SAM-e era o nome do novo remédio, para espanto meu, que esperava, em se tratando de droga nova, que meus pacientes estivessem referindo-se à reboxetina, antidepressivo novo, prestes a ser lançado no Brasil; ou à bupropiona, droga que, além de interessantes efeitos antidepressivos, tem determinada eficácia no difícil intuito de parar de fumar.

Como não tivesse jamais ouvido falar da referida e milagrosa droga, consultei, ato contínuo, a Internet, em busca de auxílio – por onde se vê que nossa crítica à mídia não nos impede de reconhecer a necessidade da informação, de sua democratização, e seu papel no conhecimento, estando absolutamente longe de nós, portanto, defender sistema de censura que impeça o livre curso do conhecimento e a universalização a seu acesso.

Em questão de minutos – a linha é lenta – pude constatar que se tratava da s-adenosil-metionina, molécula resultante da fusão entre um aminoácido – a metionina – e o ATP (adenosiltrifosfato) – um importante estoque energético do organismo. Embora a justificação para a atividade antidepressiva se baseasse na interferência da dita molécula na síntese de catecolaminas – neurotransmissores mal-funcionantes na depressão, não havia em seu mecanismo de ação muito mais sofisticação que comer uma boa fatia de queijo curado, rico em precursores da síntese das catecolaminas (entre elas, a serotonina, hoje tão famosa quanto a Tiazinha, e tão cheia de truques que mais parece feiticeira).

O papel da serotonina na depressão é tão complexo, suas variedades e mecanismos são tantos, que dizer que algo que atua na serotonina age na depressão é quase o mesmo que dizer que com uma ventilador portátil se pode construir uma avião que transporte 500 passageiros.

Uma consulta rápida ao Medline (acessível a qualquer indivíduo através do site http://medline.cos.com), arquivo de publicações médicas desde a década de 50, verdadeiro patrimônio da humanidade e gerido por organismos da seriedade da Biblioteca Médica Americana e da Organização Mundial da Saúde, não revelou nenhum artigo científico recente que apontasse para o milagroso SAM-e como a nova droga natural e inócua da felicidade.

Sorte, a Internet permite rápida consulta ao preço da droga, que gira em torno de 25 dólares, mais frete. Consulta a importadores locais mostrou que já dispunham da "droga" ao preço de uns 250 reais. Nenhuma afirmação de que tenha havido má-fé na edição da matéria do jornal noturno e conluio com importadores. Afirmo apenas que deveria haver critério mais sério na edição e assessoria das matérias divulgadas pela mídia, uma vez que o paciente trabalho do médico e do cientista muitas vezes se vê solapado, manchado com a pecha de ignorância, quando na noite anterior algum canal alerta histericamente para a cura de algum mal com alguma alquimia, e que, estranhamente, não consta de nenhum arquivo médico internacional sério.

Claro, há que entender o medo que cerca os místicos nestes dias de que se avizinha o fim do mundo, ditado por algum sábio profeta iluminado. É preciso voltar à natureza, harmonizar-se com ela e buscar a paz. Até aí, tudo bem... Concordo que uma certa tranqüilidade nos falta e o estresse de ver tanta corrupção e miséria até nos faz descrer da razão. Mas o maior patrimônio do cérebro humano não é o espírito, presente, no Cântico de São Francisco de Assis, em todas as criaturas.

Nossa terra tem palmeiras onde até os sabiás têm espírito. Oxalá fôssemos grandes para ver a beleza da criação e da criatura e nos voltar para o próximo, gente, ave ou bicho qualquer, com o espírito que nos unifica. Mas a razão é conquista humana e tomar emplastros por drogas eficazes mais parece alquimia mentirosa do que boa ciência ou boa informação. Pode agradar o público, mas até quando e a que preço?

Woody Allen, em seu último e hilariante filme, "Desconstruindo Harry", retruca a um amigo que o acusa de crer excessivamente na ciência que, "entre o Papa e o ar condicionado", fica com o ar condicionado. Não sejamos tolos e não desmereçamos o que há de sublime na fé silenciosa e no credo de cada um, mas ignorância e mídia mal-assessorada ou sedenta de agradar a média, ainda que mentindo, fazem muito mal, principalmente para a mente.

Neurociência não é apenas um estudo do sistema nervoso ou do cérebro animal. É um estudo sistemático da razão, da emoção e da vontade. Da consciência e das crises por que passamos, que têm raízes químicas e biográficas. A mídia no seu papel de informar e formar deve estar atenta ao fato de que o conhecimento sobre o cérebro é também um conhecimento sobre a razão, a prudência, a cidadania e o valor. Adular a média, acalentando um ecletismo pobre, não é pluralismo. É má-fé ou busca de pontos preciosos no gosto médio das mentes que a assistem. A ciência é austera, procurando controlar ao máximo suas conclusões – o que, mesmo assim, muitas vezes não a impede de errar.

Os bons meios de verificar a boa ciência devem distinguir a mídia responsável, que checa suas notícias e forma seus jornalistas científicos de maneira adequada. A encruzilhada reside no fato de que, ao pretender-se apartidária, a mídia não percebe o que é domínio da opinião e o que é domínio do conhecimento. Aristóteles já advertia que respeitar opiniões é dever geral, porém antepor-se ao conhecimento e transmiti-lo de maneira errônea – ainda que agrade – é motivo de açoite público. Sem chegar a tanto, porém, advertimos que o desrespeito ao conhecimento, se agrada o público, açoita a verdade, caindo na esculhambação.

Essa voga naturalista e esse pluralismo de saberes sobre medicina, cérebro, saúde, estresse e outras tantas coisas, são bem sintoma de um tempo em que se acende uma vela a Deus e outra ao Diabo. Na hora de fazer o melhor celular, ninguém contrata místicos empedernidos. Na hora de encher os canais desses mesmos telefones com conversas tolas e vazias, aí vale qualquer coisa, desde que o consumidor esteja feliz e em paz com seus cristais – não os de quartzo, que marcam o tempo da ciência, mas os da magia, que marcam o tempo da imprudência travestida de informação.

Henrique Schützer Del Nero é médico psiquiatra formado pela Universidade de São Paulo. Bacharel e Mestre em Filosofia pela USP, é Doutor em Engenharia Eletrônica pela Escola Politécnica da USP. Fundou e coordenou de 1990 a 1997 o Grupo de Ciência Cognitiva do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo. Atualmente é professor colaborador de pós-graduação da Escola Politécnica da USP (Grupo de Biomatemática e Neurociência Computacional). É autor de diversos trabalhos científicos sobre cérebro e mente e dos livros "O Sítio da Mente: pensamento, emoção e vontade no cérebro humano" e "O Equilíbrio Necessário" (ambos pela Editora Collegium Cognitio tel./fax 011-211.4005).