Distúrbio de atenção:

considerações sobre cérebro e complexidade

Henrique Schützer Del Nero

 

 

Um dos diagnósticos mais difíceis em neurociência clínica, embora freqüente (3 a 6% da população), é o ADHD (Atttention Deficit Hiperactivity Disorder) ou distúrbio do déficit de atenção e hiperatividade, antes chamado de disfunção cerebral mínima (DCM).

Considerando-se o conjunto típico de sinais e sintomas – hiperatividade, impulsividade (em adultos pode ser apenas inquietude e ansiedade) e desatenção –, percebe-se o quanto é vaga sua caracterização, particularmente se atentarmos para o fato que muitas vezes a primeira suspeita surge entre professores, pais e, eventualmente, pediatras (no caso de adultos, clínicos gerais). Esses profissionais, bem como professores e pais, como acontecia há anos com quadros de pânico e depressões leves, tendem a subvalorizar os sinais e adotar posturas passivas que redundam em déficit escolar marcante (também profisssional e familiar, posteriormente), desadaptação e, algumas vezes, episódios mais severos, como envolvimento em atividades perigosas para o paciente e para os companheiros, que de muito superam a simples molecagem típica da criança ou a singularidade excêntrica do adulto.

A falta de exames subsidiários típicos, por exemplo, tomografia, EEG, etc. que caracterizem a síndrome (melhor chamá-la de síndrome, porque envolve um sem número de subvariedades) e a dificuldade que ainda persiste entre as pessoas de aceitar disfunções cerebrais de função superior (atenção, comportamento, explosividade-irritabilidade, ansiedade, depressão, distúrbio de aprendizado, etc.) tendem a levar à não-intervenção médica, limitando-se muitas vezes a uma simples terapia de base psicológica não necessariamente adequada para o distúrbio.

Coadjuve-se a essa gama de problemas o fato de que o distúrbio pode não apresentar hiperatividade ou persistir na idade adulta. Quer dizer, antes de disfunção circunscrita à criança (pré-escolar ou em fase de 1o e 2o grau, pode-se ver ADHD ou suas variantes em adultos o que dificulta terrivelmente sua caracterização, dado o fato de que a comorbidade (a ocorrência concomitante de disfunções outras) com depressões, ansiedade e problemas de personalidade tende a ser bastante grande. De modo breve, ADHD, além de diagnóstico difícil porque envolve subtipos variados, ainda é mais difícil por poder apresentar sintomas comuns em patologias outras como depressão e ansiedade, comuns em adultos e também em crianças.

Os aspectos paradoxais da disfunção (ADHD) são vários e entre eles cabe salientar dois proeminentes: o fato de não ser necessariamente a desatenção o sinal marcante (podendo ser a desadaptação, antisociabilidade e agressividade), bem como o fato de ser um psicoestimulante (metilfenidato e pemolina – esse não disponível no Brasil) o fármaco que tem melhor resultado no tratamento. Ora, o psicoestimulante, que age preferencialmente no aumento de atividade da dopamina, poderia ser responsável pela ativação de circuitos ligados à atenção e à sincronização do tálamo com o córtex frontal, mecanismo geral de atenção/concentração voluntárias. Porém, tanto a falta de atenção pode não ser o elemento predominante, como também o uso desses psicoestimulantes costuma desencadear um efeito calmante e não excitante, como seria de se esperar. O metilfenidato, bem como as outras drogas estimulantes de seu gênero, atuam bloqueando a recaptura de dopamina, o que, em princípio, tem efeito de reforço de atividade motora e/ou intelectual e dificilmente efeito calmante ou antidepressivo (normalmente ligados à ação em duas outras classes de neurotransmissores – noradrenalina e serotonina).

Diante desses tantos aparentes paradoxos cabe uma consideração sobre cérebro e complexidade. Funções nervosas superiores – entre as quais destacam- se comportamento, aprendizado, sociabilidade, humor, pensamento e valores – tendem a interligar-se de tal maneira que o raciocínio pontual e linear pode adulterar e empobrecer a clínica e a pesquisa. Por ser fortemente não-linear a dinâmica de interação de populações neuronais responsáveis pelas funções superiores, paradoxos nem sempre são assustadores, mas apenas indícios de complexidade e interatividade entre diferentes sistemas cerebrais e diferentes neurotransmissores.

Confirmando essa característica de um cérebro multiconectado e complexo, o que por vezes nos asssusta diante das chamadas "reações paradoxais", um artigo recente sobre ADHD vem trazer luz sobre o papel do metilfenidato e de outros psicoestimulantes semelhantes no tratamento do problema.

Raul Gainetdinov e colaboradores publicaram no volume 283 de 15 de janeiro de 1999 da prestigiosa revista Science o artigo "Role of Serotonin in the Paradoxical Calming Effect of Psychostimulants on Hyperactivity", pp. 397-340 (O papel da serotonina no efeito calmante paradoxal dos psicoestimulantes na hiperatividade). Os pesquisadores, numa série brilhante de experimentos, conseguem selecionar ratos que não possuem uma substância – DAT (dopamine transporter) – que transporta a dopamina do neurônio para a sinapse e dali de volta para o neurônio que a produziu. Ratos com deficiência de DAT, o que pode ser obtido através de manipulação genética laboratorial, exibem traços marcantemente semelhantes aos da ADHD, incluindo hiperatividade e diferentes reações diante de ambientes novos que exigem condicionamento, exploração e reação cada vez mais rápida após o aprendizado.

Embora os ratos com DAT exibam altas concentrações de dopamina no córtex striatum (basicamente responsável por motricidade), mostra-se, através de uma série de experimentos, que a ação de metilfenidato e outros psicoestimulantes não tem papel na dopamina e sim na serotonina, o que explicaria seu papel calmante. Não cabe aqui relatar a complexidade dos métodos empregados, embora deva-se salientar sua elegância e consistência.

Isso visto, poderia apontar para um papel outro do metilfenidato no tratamento do ADHD, o que significaria ser mais bem substituído por drogas de ação direta na serotonina (fluoxetina, paroxetina, clomipramina, sertralina, etc.) o que não é totalmente verdadeiro em termos clínicos. Essas substâncias costumam ter resultados pobres comparados aos resultados dos psicoestimulantes. Uma possível solução conciliatória advém do fato de que são muitos os subtipos de receptores de serotonina no cérebro, o que poderia explicar o fato de uma droga agir em alguns deles e outra em outros; sendo, portanto, a primeira eficaz para o controle de hiperatividade e outra para o tratamento de ansiedade ou de compulsão alimentar (caso da sibutramina).

O exemplo desse experimento aponta novas direções para a pesquisa no tratamento e farmacoterapia da ADHD, bem como mostra que muito mais que um distúrbio de atenção ou hiperatividade, o que está em jogo, como diz Russel Barkley, uma das autoridades mundiais no problema, é um distúrbio de alocação de recursos cognitivos e auto-monitoração. Nesse sentido, cabe completar que a terapêutica dificilmente se limita à intervenção farmacológica, devendo-se acrescentar a ela psicoterapias de base cognitivo-comportamentais e reestruturação do ambiente familiar e escolar.

O cérebro mostra-se assim complexo, neste caso na ADHD, em duas direções: quer naquela em que os neurotransmissores e seus subtipos interagem de maneira que nos pode parecer paradoxal, como também na necessidade da intervenção objetiva orientada sobre o indivíduo e sobre seu meio, de modo a sanar o problema ou pelo menos compreendê-lo na sua totalidade e empreender todas as ações que diminuam suas conseqüências de baixa performance funcional.

Sugestões de leituras complementares:

  1. Attention Deficit Hyperactivity DisorderA Handbook for Diagnosis and Treatment - Russel Barkley ,1998 ,The Guilford Press
  2. Cognitive-Behavioral Therapy with ADHD Children – Child, Family and School Interventions - Lauren Braswell e Michael Bloomquist, 1991, The Guilford Press
  3. Treatment of Childhood Disorders - Eric Mash e Russel Barkley (ed) , 1998, The Guilford Press
  4. Anxiety Disorders in Children and Adolescents - John March (ed), 1995, The Guilford Press

Henrique Schützer Del Nero é médico psiquiatra formado pela Universidade de São Paulo. Bacharel e Mestre em Filosofia pela USP, é Doutor em Engenharia Eletrônica pela Escola Politécnica da USP. Fundou e coordenou de 1990 a 1997 o Grupo de Ciência Cognitiva do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo. Atualmente é professor colaborador de pós-graduação da Escola Politécnica da USP (Grupo de Biomatemática e Neurociência Computacional).É autor de diversos trabalhos científicos sobre cérebro e mente e dos livros "O Sítio da Mente: pensamento, emoção e vontade no cérebro humano" e "O Equilíbrio Necessário" (ambos pela Editora Collegium Cognitio tel/fax 011-211.4005).