Verdade e Demonstração

Henrique Schützer Del Nero

 

Parte dos problemas advindos da Psicologia, e por conseguinte da Filosofia da Mente, situa-se na impossibilidade de encontrar-se uma sentença cerebral-fisicalista logicamente equivalente às chamadas sentenças mentalistas expressas em linguagem corrente: "João sente dor de saudade de Maria" equivale "A estrutura cerebral x de João funciona da maneira tal e qual".

Anda muito a Neurociência e parece que, tanto mais progride, ainda se depara com a dicotomia significado/referente. Os significados mentais parecem, em que pese sua referência cerebral, resistir ao crivo da tradução radical, condição para uma genuína fusão entre a Psicologia e a Neurociência. João, a despeito de saber verdadeira a sentença mentalista em que chora saudade de Maria, não tem a menor idéia do que se passa em seu cérebro. Embora ambas as sentenças digam respeito a um mesmo estado-referente cerebral (a estrutura cerebral x, executando a função y, num instante t), seu significado (sentir dor de saudade de Maria) – e portanto sua condição de manipulação por um agente cognitivo – é diverso.

Este breve artigo procura elucidar o ponto sucintamente descrito acima, de maneira a compatibilizar modelos baseados na linguagem e no comportamento e outros tantos baseados na observação das diferentes atividades cerebrais. Nem uns nem outros são melhores ou piores e se engana quem pretende, à guisa de modernidade, preencher levianamente a lacuna cerebral do discurso psicoterapêutico (uma forma de fusão entre a Psicoterapia e o conhecimento neurocientífico) ou permitir que ao discurso de base anatomo-funcional agreguem-se módulos semânticos e hermenêuticos de que não se tem a menor idéia de como representar em território cerebral (uma espécie de Neuropsicologia com caráter psicodinâmico).

Para entender o problema, devemos trilhar alguns passos da história da Lógica e da Ciência Cognitiva. Mas não se assuste o leitor, porque, ao final, pretendo mostrar apenas que há verdades indemonstráveis; isso, não devido ao fato de serem complexas – ou ocultas, ou reprimidas –, mas antes pelo fato de serem simplesmente fatos mentais que resistem à formalização mecânico-algorítmica (procedimento aplicado por todo e qualquer computador ao perfazer as mais complicadas operações). Um cuidado, porém, antes de prosseguir: que não se animem os irracionalistas, proponentes de absurdos sob a égide de "teorias". A impossibilidade-limite da demonstração, não nos deve levar a aceitar qualquer coisa. Deve, contudo, dar limites ao nosso afã de tudo modelar e também ao nosso sonho positivo de enxergar, no avanço da ciência, o dia em que não precisaremos mais exercer a função de intérpretes daquilo que se ouve, daquilo que não é dito, daquilo que não se pode provar e, ainda assim, é.

No século XX assistiu-se a algumas revoluções intelectuais no campo das ciências da mente. O Behaviorismo, doutrina dominante até os anos 50, teve sua base asséptica – porque baseada na variável objetiva dos comportamentos – solapada pela idéia de uma mente intermediária entre o estímulo e a resposta, mente essa que intermediaria, transformando, a entrada e, mais, a ela se anteciparia e lhe daria perfil. O neurofisiologista Rodolfo Llinás resume de modo perfeito toda a querela sobre o papel ativo e/ou passivo do cérebro nas nossas representações: "o cérebro gera hipóteses e os sentidos as corrigem, verificando ou refutando".

Um cérebro gerador, uma mente cheia de propósitos, metas e crenças, não pode, por princípio, ser modelado pelo simples artifício da observação comportamental e pela interposição de variantes de condicionamentos clássicos e/ou operantes, como queria o enfoque behaviorista.

Nos anos 50, renasce a mente intermediária, não passiva, mas cheia de representações, manipuladora de símbolos e regras, - enfim, um computador que opera sobre as bases de um sistema formal-informacional. Essa mente, ou cognição, não se mecaniza mais que o Behaviorismo o fazia – sendo tão materialista, em termos epistêmicos, quanto a doutrina anterior –, mas apenas torna mecânico e objetivo o processo intermediário (mental e não apenas comportamental), segundo o qual o pensamento, a inteligência, a razão e, quiçá um dia, a emoção e a vontade, são variedades computáveis através de um conjunto de regras lógicas e algoritmos que manipulam símbolos, gerando demonstrações-teoremas após um número finito de passos inferenciais.

A Ciência Cognitiva, coitada, ainda tão pouco conhecida e entendida em nosso meio, deve à essa deflexão no pensamento psicológico, de matiz computacional, sua raiz. A mente é um programa que "roda" as variedades do pensamento, emoção, vontade e consciência, e o cérebro apenas lhe dá suporte. A Psicoterapia estaria salva, assim, pelo artifício da mente que manipula símbolos, sendo possível até mesmo encontrar uma base objetiva que a explicasse e também a Neurociência estaria salva, conquanto ciência de um tipo particular de máquina-hardware (a máquina Homo sapiens sapiens), que "roda" o programa "mente" (programa genérico capaz de ser implementado em seres humanos e máquinas).

Mas as coisas não são tão fáceis assim, porque à Neurociência está vedada a ascese ao significado das proposições mentais e à Psicologia está vedada a demonstração de suas verdades mecânicas, geradas pela manipulação de símbolos, gerando por sua vez outras novas variedades de símbolos (brevemente, leis do pensamento que geram conteúdos mentais inteligentes).

A dissociação entre significado e referência – e sua variante verdade e demonstração – torna não-intertraduzíveis as duas ciências que falam da cognição: a Psicologia, que a ela acede pelo significado, e a Neurociência, que o faz pela referência.

Ao conceder que a mente pode ter um estatuto primário próprio, tornando-se símbolo e impondo-se-lhe regras lógicas de manipulação, criaram-se ferramentas fantásticas para modelar o humano (a Inteligência Artificial) e também para entender-lhe funções e desvios. A teoria computacional da mente, alicerçada na idéia de que apenas executamos um programa complexo e que uma genuína Psicologia científica apenas deverá descobrir-lhe os axiomas, regras e teoremas, continha duas facetas opostas. De um lado, a boa notícia era poder pensar numa disciplina objetiva e científica na sua plenitude. Por outro lado, a máquina de Turing, que dava base teórico-matemática a tal empreitada, apresentava um pequeno problema: dada uma determinada sentença gerada no interior de seu programa, não seria ela capaz de demonstrar-lhe a verdade ou a falsidade, embora a verdade fosse óbvia. Isso, do ponto de vista estrito, levaria a máquina a não ser capaz de computar uma sentença através de um número finito de passos (problema da parada da máquina de Turing).

Não se animem os que pensam que tais verdades são aquelas do domínio da fé, tais como "Deus existe". Não, embora se possa tergiversar sobre a existência de Deus, imputando-se à afirmação caráter de verdade e/ou demonstração, as verdades que não seriam capazes de ser provadas pela máquina de Turing – análogo autômato do ser mental – seriam coisas simples, da ordem de "2 + 2 = 4".

Tal problema, – o da parada da máquina de Turing – e, portanto, da impossibilidade de uma ciência completa do mental, deve-se ao fato de que tudo aquilo que pode ser descrito por um sistema formal contém, no seu interior, pelo menos uma sentença que, embora verdadeira, é impossível de demonstrar. Essa verdade é uma das mais profundas revoluções na história da Matemática e surge nos anos 30 com a obra de Kurt Gödel.

Pensamentos, emoções, sentimentos e ações permeiam nossa vida mental. Podemos tentar modelá-los no afã de alcançar uma ciência objetiva, mas toda ciência carrega no seu modelo um vício oculto que Gödel pôs à mostra: sempre haverá uma sentença em que verdade e demonstração se dissociarão. A solução matemática lança mão do recurso de um nível superior, de um metassistema que dirima o problema – isso ao infinito, porque sempre no nível superior haverá a dita sentença impossível de provar.

A solução humana pode o leitor apressado situar no mundo do espírito, das crendices e sincretismos vários. Prefiro situá-la na forja da mente coletiva, anima do ser social que pode, pelo exame do Outro, e, sobretudo, pelo exame da condição de um metanível chamado bem comum, dirimir nossas perplexidades e indecisões. O Outro nos completa "matematicamente" (o que nesse plano é uma variante de dizer que nos completa material e objetivamente), tornando demonstrável o que, sozinhos, não somos capazes de conhecer, senão como verdade; ou mito; ou alienação.

A verdade isolada é vã e sua demonstração requer engajamento, ainda que, no limite, haja verdade última que não nos é dado demonstrar senão intuir. A existência de Deus ou a possibilidade da Igualdade são dois bons candidatos a verdades últimas indemonstráveis, e nossa mente pode, no caso da primeira, intuí-la e, no caso da segunda, deve ser educada a persegui-la.

Henrique Schützer Del Nero é médico psiquiatra formado pela Universidade de São Paulo. Bacharel e Mestre em Filosofia pela USP, é Doutor em Engenharia Eletrônica pela Escola Politécnica da USP. Fundou e coordenou de 1990 a 1997 o Grupo de Ciência Cognitiva do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo. Atualmente é professor colaborador de pós-graduação da Escola Politécnica da USP (Grupo de Biomatemática e Neurociência Computacional).É autor de diversos trabalhos científicos sobre cérebro e mente e dos livros "O Sítio da Mente: pensamento, emoção e vontade no cérebro humano" e "O Equilíbrio Necessário" (ambos pela Editora Collegium Cognitio tel/fax 011-211.4005).