Biografia e neuropsicofarmacologia

Henrique Schützer Del Nero

Um dos temas mais agudos de toda e qualquer perquirição acerca dos limites da psiquiatria e da psicoterapia, diz respeito ao estatuto de separação e/ou complementaridade das disciplinas.

A neurociência tem progredido bastante no afã de delimitar os campos de atuação dos psicofármacos, mas persiste ainda uma questão crucial: as psicoterapias estarão com os dias contados, até que se descubra droga capaz de dirimir celeumas conjugais ou atenuar o sintoma neurótico recalcitrante?

O debate é intenso e as duas áreas parecem desprezar-se mutuamente ou cair num ecumenismo estéril do tipo "estratégias complementares".

Pretendo neste breve artigo traçar alguns parâmetros que possam nortear a distinção preferencial entre patologia de enfoque preferencial psicofarma-cológico e aquelas outras de perfil preferencialmente psicoterapêutico.

Podem distinguir-se didaticamente três níveis claros no sistema nervoso central: um primeiro diz respeito àquelas funções pré-gravadas ou fortemente embasadas no hardware cerebral; um segundo plano de definição diz respeito à constituição dos hábitos e automatismos – fumar ou aprender a andar de bicicleta, por exemplo; um terceiro nível diz respeito à plasticidade com que se moldam aprendizados diversos – a solução de uma equação do segundo grau e também uma experiência pessoal de forte componente emocional.

Esses três níveis se interrelacionam de maneira complexa e fugiria deste artigo dirimir todas as nuanças pertinentes a eles. Existe porém uma alegoria que permite que nos aproximemos num primeiro momento do nível da máquina-cérebro, do nível do hábito-programa e do nível da circunstância-arquivo.

Toda quanta pessoa já teve acesso a um computador sabe que há três componentes distintos: a máquina propriamente dita, os programas que se escolhe para instalar (processadores de textos, planilhas, processadores de imagem) e finalmente os arquivos pessoais que gravamos a cada trabalho que realizamos.

De maneira sucinta pode-se dizer que o cérebro corresponde à máquina, as funções automatizáveis e susceptíveis ao desenvolvimento de bons, e às vezes maus, hábitos correspondem a programas e, finalmente, as circunstâncias históricas e contextuais constituem arquivos que gravamos nos diferentes locais da máquina e nos diferentes programas de tal sorte que constituam nossa história pessoal.

Há quem defenda que somente pode haver patologia no nível físico, porém isso deixaria o problema dos hábitos, compulsões e outros problemas sem solução porque sabemos que a solução para esses casos, embora fortemente dependente de uso de drogas, requer, paralelamente, o uso de alguma estratégia psicoterapêutica interativa.

Alegar que o problema dos arquivos não corresponde a qualquer patologia porque nível virtual absoluto é o mesmo que alegar que uma rede internacional de pedofilia que nos chega pela Internet não pode ser patológica porque, no limite, constituída por uma série de bits e mensagens codificadas.

O problema da caracterização dos três níveis é difícil e requer que façamos a distinção de alguns sinais e sintomas que nos auxiliam na distinção, na maior ênfase ou não no uso de psicofármacos ou psicoterapias de diferentes matizes (para não entrar na complicada seara de distinguí-las e valorá-las).

De maneira geral o distúrbio mais ligado às funções de máquina – logo cerebralmente determinado de maneira forte – tende a apresentar ritmicidade e alguns sintomas e sinais claros: insônia, queda de atenção, rendimento físico deficitário, etc. Os problemas concernentes aos maus hábitos normalmente conjugam sinais e sintomas relatados pelos pacientes mas também uma nítida gama de insuficiências no plano psicossocial. Os problemas ditos biográficos, embora nem sempre descritíveis como patologias puras ou claras, costumam levar a um sofrimento auto ou heteropessoal que, à despeito da ausência de ritmicidades outras e clara inclusão em patologias psiquiátricas conhecidas, não pode simplesmente ser visto como mero "jeito de ser" ou traço de personalidade.

Do ponto de vista neurocientífico podem-se distinguir três instâncias que respondem de maneira mais ou menos precisa pelo dito anteriormente e que vem de ser defendidas em tese de doutoramento pela Dra. Lucia Maciel no Núcleo de Neurociência e Comportamento da USP sob a orientação do Prof. José Roberto Piqueira.

A evolução do cérebro humano distingue uma dinâmica de longa duração – filogenética – que o habilitou a perfazer determinadas funções, vedadas total ou parcialmente aos primatas próximos. O domínio da fala e do significado parece ser a grande conquista desta dinâmica filogenética, bem como uma consciência que além de fenomenal é também autoreflexiva – o que parece endossar o surgimento de um sistema prospectivo de valores e normas, condição para uma ética de viés cerebral. À dinâmica filogenética seguem-se duas dinâmicas ontogenéticas, uma lenta e outra rápida, ambas capazes de dar conta de processos maturacionais do organismo e também de gravar-lhe a experiência pretérita. Se a dinâmica lenta maturacional dá conta de fenômenos de aprendizado e de segregação funcional como o domínio da fala, escrita e modalidades de habilidades, também a dinâmica rápida de aporte de sensações e informações constitui intenso cabedal de redirecionamentos intencionalmente mediados de atos e omissões.

Freud apontou para esses fatores no seu célebre Projeto, abandonando-o logo em seguida e construindo uma teoria da vida mental que mais pareceria culturalista que propriamente cerebralista.

Engana-se, no entanto, quem vê no Freud do Projeto uma história de insucesso já superado pelos cem anos que dele nos distanciam.

Freud, ao deparar-se com a dinâmica filogenética e ontogenética lenta, pode lançar mão de variáveis extra-lingüísticas e tentar modelar-lhes padrões dinâmicos de tipo redes neurais (não à toa seu Projeto é visto como precursor das atuais redes neurais artificiais). Porém, quando se lança a explicar a dinâmica ontogenética contextual rápida, biografia em suma, depara-se com a difícil, se não impossível, transposição de significados expressos na cadeia narrativo-discursiva e seus equivalentes neurais.

Modelar uma história pessoal é ainda impossível dada a dificuldade, por ora esperamos, de estabelecer mapas que vão do significado às variedades neuronais. Excluídas as patologias que requerem nítida e, às vezes única, intervenção medicamentosa, e também aquelas concernentes a automatismos e hábitos em que fármacos e terapias comportamentais devem ser indicadas, sobra uma imensa gama de transtornos de dinâmica ontogenética rápida - significado em constante mutação - e que costumam dar muita "dor de cabeça" aos pacientes e circundantes e tem empobrecido o cenário da psiquiatria biológica ao se fazerem ausentes porque, aparentemente, pouco objetiváveis ou físicas.

Um senador americano, quando indagado sobre pornografia na Internet, respondeu não saber definir pornografia, mas saber reconhecê-la.

Claro que o ideal científico é o reconhecimento e a definição, porém, sem a definição precisa da patologia biográfica, nem por isso deve-se deixar de reconhecê-la e tratá-la, tomando apenas o imenso cuidado para não confundi-la com as instâncias de patologia de máquina e de programa.

Henrique Schützer Del Nero é médico psiquiatra formado pela Universidade de São Paulo. Bacharel e Mestre em Filosofia pela USP, é Doutor em Engenharia Eletrônica pela Escola Politécnica da USP. Fundou e coordenou de 1990 a 1997 o Grupo de Ciência Cognitiva do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo. Atualmente é professor colaborador de pós-graduação da Escola Politécnica da USP (Grupo de Biomatemática e Neurociência Computacional).É autor de diversos trabalhos científicos sobre cérebro e mente e dos livros "O Sítio da Mente: pensamento, emoção e vontade no cérebro humano" e "O Equilíbrio Necessário" (ambos pela Editora Collegium Cognitio tel/fax 011-211.4005).