Há um denominador comum nos transtornos mentais?

Henrique Schützer Del Nero

 

"Doença mental" parece nome maldito que não devera sequer ser proferido – tal fosse o caso de também não se proferir câncer, lepra, e outras supostas patologias escatológicas.

O idiota cotidiano que se jacta de uma cultura de pequeno porte, prefere falar de anjos e arcanjos, do Paraíso e da virtude da comida natural – veneno de cobra também é natural e faz mal – como se doença mental dissesse respeito a algo que, desde que negado, passasse a não vigorar.

Outro dia via um desenho hilário no Cartoon Network, certamente dirigido a adultos de aguçada percepção. Um moleque vai à Biblioteca Municipal e retira a lei da gravidade de um armário cheio de pergaminhos dobrados. Imediatamente, todos na cidade passam a levitar, devendo-se montar uma operação resgate dos jurisconconsultos mais famosos que, apreendidos com uma rede, deverão, em regime de urgência, reeditar a lei.

O desenho animado é perfeito na sua alegoria. Revogar a lei da gravidade parece estar ao alcance de cada um que tenha acesso ao foro próprio. Ou pior, parece que revogar tantas leis físicas está ao alcance de cada um que, com o poder do verbo, profira estultices, revogando a física e a razão.

A doença mental, sob certo aspecto, tal qual a lei da gravidade, é inexorável. Quem pretender negá-la deveria candidatar-se a um vôo tripulado ao espaço, para que, pelo menos livre da gravidade, sentisse o "poder" de superar aquilo que nos mantém com os pés no chão.

A paciência do cientista tem de ser dupla. Primeiramente, porque a verdade científica é provisória e sujeita a um sem-número de contradições. Segundo, porque a ciência em certos setores tem de dialogar com o público consumidor e agüentar questionamentos absurdos. Engenheiros de telecomunicações não são obrigados a dialogar com o público consumidor de seus telefones celulares, mas cientistas que lidam com a função nervosa central e seus desvios – assim denominada doença mental – têm todos os dias que ouvir algum óbice ao modo como se deve conduzir um tratamento ou fazer um diagnóstico.

Pergunto-me se o que move a dúvida de tantos é ignorância, chatice, negação ou sei lá que outra coisa. Por que essa gente não se apinha em cabinas de aviões dando conselhos ou opiniões aos pilotos para que apertem certos botões e não outros durante o vôo? Se a resposta for de que pilotos de jato lidam com artefatos mais complexos que cérebros, ou que entendem mais do que fazem, ou que são mais treinados, então não tenho muito mais a dizer.

Porém, afora o desabafo, a ciência também padece de suas pechas, porque incapaz de dar respostas claras e concisas às demandas dos doentes. São tantas as opiniões em Medicina, em Psiquiatria mais ainda, tantos os tipos de tratamento, que dá até para entender que doença mental não pareça coisa séria, ou quem a trata raramente seja sério ou de formação intelectual sólida.

Por que ocorre esse fenômeno? Afinal, escolas médicas de boa estirpe, nós as temos quase à dezena no país, e especialistas de outras áreas costumam dar "nó em pingo d’água" em se tratando de destreza e proficiência. Por que os psiquiatras e a doença mental persistem caricatos e "patinhos feios" em meio a uma medicina de alto nível como a praticada em muitos centros brasileiros?

O fato se deve a uma relação defectiva e desconhecida entre estruturas cerebrais e funções nervosas superiores ou mentais. A teoria que unifique esses dois campos, o mental e o cerebral, que os divida em compartimentos comuns a todos, preservando a individualidade e a biografia, está longe de chegar. Aqueles que acreditam que essa teoria está próxima, na verdade se encastelaram em guetos científico-míticos com rótulos de Psiquiatria Biológica, Terapia Cognitivo-Comportamental, para não citar os decanos da visão parcial do fenômeno mental – psicanalistas e outras correntes "psi"... alguma coisa.

Lembra muito o filme "O Jovem Frankstein" de Mel Brooks em que o Dr. Frankstein pede a Igor, fiel servidor, que traga o cérebro de Abelard, médico e santo, para que se proceda o implante desse cérebro no corpo morto de Frankstein. Igor rouba o cérebro, mas mole que é – o cérebro – cai-lhe da mão. Obrigado a levar outro, omite o ocorrido. O médico depois de enxertar o cérebro que pensara ser de Abelard, vê surgir um Frankstein incontrolável e risível. Pergunta a Igor se trouxe mesmo o cérebro de Abelard. Igor titubeia, dizendo que era AB alguma coisa. AB, AB...AB..normal. Isso – não Abelard, mas abnormal. Precisamos tomar cuidado com o psi... "alguma coisa", para não cair nessa mesma história.

Mas a ciência não deve ser feita de seitas nem de intrigas. Não há nada de pessoal nas críticas que faço aqui às diversas correntes, mas apenas uma advertência do que é ciência em oposição à opinião e à fé. Os pacientes se ressentem de nossa ignorância e na sua ignorância nos aborrecem, mas com certos direitos. Eu os compreendo embora seja bem chato agüentar gente falando que leu no jornal de ontem que pesquisas recentes mostram que os antidepressivos atuais podem causar problemas a médio prazo que ninguém pode prever. Ora, ninguém pode prever quais problemas, a médio prazo, pode causar a duplicação de uma avenida, havendo até quem possa dizer que duplicará acidentes em lugar de diminuí-los. Antidepressivos, em princípio, devem ser prescritos por especialista treinado e atualizado e não por outros médicos (o que tem ocorrido de maneira vertiginosa) e o tempo que devem ser utilizados não deve, em princípio, exceder 6 meses a 1 ano. Claro que se deixarmos alguém tomando um bloqueador de serotonina por 12 anos, alguma coisa deverá acontecer que, desconfio, aconteceria também se esse mesmo alguém tomasse remédio para úlcera por 12 anos a fio, comprando, sem receita, essas drogas a cada vez que tivesse acidez ou queimação ou azia.

Uma pesquisa recente que ficará para um outro artigo abordar pode começar a elucidar uma marca comum nas doenças mentais. Uma freqüência de 5 a 8 Herz capturada através de magnetoencefalografia, precede uma freqüência reverberante de 35 a 40 Herz na região tálamo-cortical. Essa reverberação simplesmente quer dizer que, em lugar de se tocar rapidamente uma nota, a "vitrola" funciona como se estivesse com o disco riscado mantendo uma mesma nota por longo período. Esse achado foi descrito em dezembro de 1999 em algumas doenças mentais e neurológicas diferentes e sobre essa hipótese alguns pesquisadores começam agora a trabalhar intensamente. Pode ser algo muito simples mas comum a uma série de transtornos mentais, talvez o portal de uma assinatura dinâmica para fenômenos que nos incomodam e que não sabemos ainda explicar de maneira a calar os ignorantes que continuam a tratar a lei da gravidade através de medidas provisórias.

Referências:

Schatzberg, Alan (2000) "Pros and Cons of Prozac and its relatives" in American Journal of Psychiatry 157:3, March 2000.

Llinás, Rodolfo et al (1999) "Thalamocortical dysrhythmia:A neurological and neuropsychiatric syndrome characterized by magnetoencephalography" in Proceedings of the National Academy of Sciences, vol 96, n. 26, 15222-15227

Henrique Schützer Del Nero é médico psiquiatra e psicoterapeuta. Professor-colaborador da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Laboratório de Sistemas Integráveis – LSI – Núcleo de Neurociência e Cognição), é autor de O Sítio da Mente: pensamento, emoção e vontade no cérebro humano.

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