A função da dor

Henrique Schützer Del Nero

 

Replicar mentes em máquinas parece querer violar a maravilha da Criação, fazendo de nós, meras criaturas, genuínos criadores. A afirmação, embora pareça esotérico-teológica, encontra eco na boa exegese bíblica do instante em que Adão prova do fruto proibido, contendo ainda, e sobretudo mais modernamente que o livro do Gênesis, algo de extremamente contundente: até onde as pessoas toleram a idéia de que são máquinas? Ou, colocado de outra forma, até onde deixaríamos uma máquina adquirir propriedades humanas?

O ser deve seguir os raciocínios sem se deixar levar por fé a priori que o desvie do bem pensar. Se fôssemos capazes de criar máquinas tão complexas quanto nós, por que haveríamos de, sadicamente, impor-lhes dor? Não seria bem mais simples fazer – como se fosse uma reforma da Natureza, à Emília – uma máquina que emitisse uma fita de programa, ou um apito, ou sei lá que traquitana engenheiresca, avisando que alguma coisa não corre bem dentro de seu sistema ou ao seu redor? Creio que a resposta, embora óbvia, não faz jus à nossa compreensão da natureza humana e de como o meio ambiente nos selecionou.

A primeira objeção que se pode fazer é de natureza metafísica: uma máquina simplesmente não poderia ser tão complexa quanto nós somos. Retruco, perguntando: por que um computador pode ser mais veloz (pelo menos no fazer certas tarefas)? Ou porque pode ter mais memória (pelo menos para certas tarefas) e assim sucessivamente?

Falta-lhe alma; ou emoção; ou autonomia; ou liberdade? Se são essas as respostas que negam à máquina a condição humana ou ao Homem a condição de sistema, retruco-as a seguir.

A alma não sei bem o que é e por isso não posso responder. Se é algo que sentimos, então prefiro falar da dor antes de falar da alma (pelo menos sinto dor e não sinto a alma). Se é algo que sabemos – ela, a alma – não sei que sentença a descreve senão algo do tipo "a alma é a propriedade das criaturas que tem espírito". Ou melhor dizendo, acho que as pessoas acham que ser um materialista ou sistemista ou biologista é simplesmente negar cidadania ao belo, ao virtuoso, ao justo, ao nobre, ao bom, ao abnegado, ao altruísta e assim por diante. Mas isso é prosa para outra hora.

A autonomia, posso dar a um computador que se autoprograme e execute ações e aprendizados num meio em que cresça como nossos bebês. (O leitor deve conferir o interessante trabalho sobre robôs que aprendem, acessando o excepcional site do MIT –Massachusetts Institute of Technology, http://cognet.mit.edu e todos os seus links.)

A liberdade, essa nem bem eu sei definir, embora a multiplicidade de caminhos e a representação de diferentes modalidades de ação futura sejam bons correlatos de "liberdade" e cabíveis em programas que não apenas executam funções complexas, mas que também se comportam de tal sorte que alcançam mudar algumas de suas instruções ao longo do tempo. (Explicar com mais detalhe exige tecnicalidade que foge do escopo dessa coluna.)

E a dor? Não seria melhor que um programa executasse uma série de instruções e, rastreando os estados internos e externos, emitisse ordens de ação tão logo se detectassem falhas danosas possíveis e prováveis que merecessem correção?

A resposta a essa última afirmação merece um desvio, que considero essencial, para que entendamos a função da dor ou, pelo menos, para que a entendamos parcialmente.

Nem toda dor indica presença de falha grave, nem bem toda falha grave causa dor.

Essa afirmação mostra que a dor, como sinal de detecção, não goza da primazia, ou pelo menos da exclusividade, no rastreamento de maus funcionamentos internos e/ou externos. Mais ainda, como todo sistema que monitoriza outro, o retrocesso ao infinito torna possível a dor sem dor, ou a dor pela própria dor, ou a dor que manifesta o mau funcionamento do sistema que usa a dor como parâmetro.

Confesso que o parágrafo anterior é exaustivo e parece jogo verbal; se a dor porém é o índice de um sistema que monitoriza o meio interno e o externo, também esse sistema deve ser monitorizado e sofrer suas "panes". Classificam-se assim as "dores" por diferentes óticas, semânticas algumas, neurais outras, sintomas ou síndromes, e outras tantas formas de classificar e nomear.

Há a dor periférica, a dor fantasma, a dor central, a dor em cólica, a dor aguda, a dor crônica, a dor indefinida e até mesmo a dor de "infidelidade". É o ser humano, esse que replicamos na máquina, computador supercomplexo ainda por ser inventado, capaz de variedades não-enumeráveis de dor.

Dizia-me, certa feita, paciente inconformado com a saída da mulher para um trabalho de vendedora. "É doutor, eu sei que vão cantá-la e que eu vou acabar chifrado". Diante de tanta estupidez, procurei argumentar, usando a razão e sabendo da fé cristã iridescente de meu paciente, que também Jesus perdoara a prostituta Maria Madalena e desafiara que se lhe jogasse a primeira pedra quem não tivesse pecado. Ora, se até a prostituta merecera o perdão, o que não dizer da dor antecipatória do marido virtualmente traído?

"É doutor, é fácil falar isso, porque Jesus não sabia o que é dor de corno. Eu sei". Dito isso, saiu esbaforido e sei que, a despeito de meu argumento bíblico, o paciente desferiu soco preciso no cunhado que empregara a pobre mulher como vendedora. Se foi traído, antes ou depois daquela data, não tenho notícias, importando-me apenas, além da jocosidade mórbido-machista da história, sua excentricidade de ode à desrazão e ao descontrole de uma suposta dor de corno presumido-hipotético, talvez também pretérito.

O descrito acima ilustra de maneira veemente a filogênese e a ontogênese da dor e da razão.

Quando falamos de uma espécie, por exemplo nós os humanos, falamos de um longo caminho desde o primeiro ser humano, datado de aproximadamente 100 mil anos. A história de seleção e formação dessa espécie é o que chamamos de filogênese (como o é também a da formação de espécies outras – por exemplo, cachorros ou gatos). Porém, como cada espécie não nasce pronta, o indivíduo passa por um período de desenvolvimento (no nosso caso, desde o útero) que caracteriza a singularidade daquele ser específico. A isso chamamos de ontogênese. A filogênese do ser humano, e de como nosso sistema de razão e de dor se relaciona, é comum a qualquer um de nós, seis bilhões de humanos viventes neste instante. A história de cada um, ambiental e biográfica, é particular e responde pelo que chamamos de ontogênese ou de constituição do sujeito.

A sensibilidade à dor de cada pessoa é algo diferente, bem como as dores por que passou cada um de nós, somáticas ou mentais (se é que a linguagem não me trai, distinguindo da mônada apenas a sua face de significado neural-somático, de um lado, e mental-semântico, do outro), nos fazem diversos; porém, não é possível que ultrapassemos, ainda que diferentes, o limite do humano.

Esse limite nos impede de levantar certos pesos, nos impede de ver certas freqüências luminosas, de ouvir certos sons e de sentir dor em certos pontos que talvez merecessem atenção. Pense como seria bom se o mínimo sinal de perigo gerasse dor e se apenas o mínimo sinal de perigo gerasse dor! Parece redundante o que afirmei, mas pense então como seria bom sentir uma mínima dor que apontasse para um grande perigo e, ao mesmo tempo, jamais sentir dor sem que houvesse perigo em jogo.

Porém, a conivência entre perigo e socorro nos faz sentir dores e perigos que são virtuais, ou mentais, ou apenas a face semântico-mental da moeda cérebro/mente. Resumidamente, podemos ser hipocondríacos inoperantes em busca da analgesia alquímica.

Imagine se nosso robô será também um dia hipocondríaco ou que tipo de outro erro de medida e apreciação o tornará personagem hilário ou doente.

A verdade é que o sistema de sinalização de dor é uma conquista primitiva de sistemas nervosos. A razão veio muito depois. Ambos coexistem e procuram iludir-se ou informar-se. Pense se somos racionais a ponto de podermos acreditar numa fita (produzida por um programa sofisticado de detecção de falhas) que nos indica perigo. Se fôssemos, bastaria a primeira indicação do quão mal faz fumar, para que parássemos. Não, somente paramos quando dói demais, quando a dor é insuportável, e, nem sempre, isso é o sinal do perigo extremo.

A dor silenciosa, por exemplo do fumo que mata dando prazer, ou a dor que se consuma prazer e perde a proporção na gênese metafísica da perversão ou da autopunição, são variantes de como a dor é ancestral e de como a razão humana, se replicada em máquinas, pode prescindir da dor, mas para isso terá de reinventar e corrigir algumas de nossas supostas operações racionais, que não passam de despautérios.

Henrique Schützer Del Nero é médico psiquiatra. Professor-colaborador da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Laboratório de Sistemas Integráveis – LSI – Núcleo de Neurociência e Cognição), é autor de O Sítio da Mente: pensamento, emoção e vontade no cérebro humano.