Silêncio e Omissão

Henrique Schützer Del Nero

 

Estranho iniciar artigo em coluna de neurociência falando sobre o silêncio – esse tão caro à labuta psicanalítica, até terapêutico – e omissão, essa tão desmedida e desenfreada na busca de inserção e agrupamento conectado que caracteriza o conjunto dos vencedores e bem-sucedidos – se é que os dois predicados anteriores, numa moral de inspiração biológico-humanista, podem ser considerados sinônimos.

Há dias falava com amigo querido acerca dos dilemas da interpretação e da intervenção psicoterapêutica, quando se ouvem banalidades amorais dessa geração despudorada que persegue o sucesso a qualquer preço.

Meu amigo fez-me ver de pronto que o paciente é um doente e que, portanto, nos paga para que ouçamos suas mazelas, sejam elas quais forem, não estando no cenário do terapeuta o juízo moral do conteúdo ouvido. Nessa leitura, o analista seria semelhante ao advogado, defendendo o cliente, deixando o ataque para o promotor ou advogado de acusação e o veredicto para o júri ou para ao juiz. Esse jogo de defesa e ataque, deixando para um terceiro elemento a decisão se convenciona chamar "contraditório" em linguagem jurídica. Seria contraditório que fizéssemos o papel de advogados do paciente, visto que não me consta existir juiz que dê o veredicto. O analista, na minha opinião, deve reunir os três, deixando o contraditório circunscrito às instâncias possíveis de intervenção – fala e silêncio, omissão jamais.

Como o problema é vital nos dias de hoje em que se apoucam as oportunidades de emprego, de ganho e também, paralelamente, se apoucam os valores em detrimento dos ganhos, cabe examinar de maneira rápida a relação entre moral e psicoterapia.

Traço a seguir uma pequena conceituação do que significa o silêncio terapêutico e o que significa a omissão que não aponta o descaminho, quer por não o entender assim, quer por não querer incorrer no risco, o que é comum, de perder o cliente tempos depois ou imediatamente. Afinal, se o neurótico não gosta de ser contrariado e, para faze-lo, há que ter tato, o psicopata leve contemporâneo não gosta que se lhe ofereçam alternativas de conduta, mormente se a conduta de ética tíbia tem se revelado a melhor estratégia para auferir status e ganho financeiro.

Alguns casos "exemplares"

Paciente meu relata ter vivido 18 meses com a companheira e, pretendendo assinar termo de separação para situação futura que o desobrigue de responsabilidades financeiras – compreensíveis em se tratando da chamada "união estável" –, não compreende o porquê da hesitação da companheira diante de termo liso e idôneo preparado por advogado especializado.

Após exame cuidadoso dos fatos e diante da recusa da companheira de endossar o termo supostamente objetivo, disponho-me a ter conversa com ambos, o que poderia dirimir eventuais mal-entendidos.

Nessa conversa, percebo que os 18 meses eram na verdade 3 anos. Mais ainda, venho a saber que durante esse período houve intensa colaboração da companheira nos gastos da casa, tendo que desfazer-se de dois imóveis para tanto. Refaço meus cálculos do que seria o "justo" numa situação de acordo amigável (há que acordar sobre o passado e certamente há uma faculdade que o cérebro humano exerce na plenitude que é a ponderação sobre o que parece ser o justo) acerca do passado e transmito ao casal.(Claro que os valores não apenas dobram pela força do tempo, como se agrava a obrigação de meu paciente em tendo havido aporte substancial quase unilateral da companheirae para a manutenção da casa, tendo para isso que desfazer-se de bens imóveis.)

O paciente irado me pergunta se sou médico dele ou dela; mais ainda, diz ter perdido a confiança em mim. Abandona o tratamento, sentido-se traído ou descoberto no estratagema de fazer valer sua condição de agente pagador e detentor dos meios para pagamento de gastos gerais, terapias inclusas.

Diferentes interpretações?

Discutindo o caso com colega, tal fosse supervisão, esse me pergunta por que não esperei a sessão seguinte para perguntar ao cliente sobre o motivo de me ter mentido sobre o tempo e sobre os detalhes da negociação em curso. Ora, não poderia se tratar de complicada artimanha inconsciente para testar se eu ficaria ao seu lado apesar da mentira? Se o fosse, teria sido por motivos econômicos ou por motivos de ordem transferencial (uma espécie de folie à deux, excluindo-se de uma só penada o elemento feminino de qualquer direito ou respeito)?

No caso de ser por motivos econômicos, o que faz sentido, o paciente teria subestimado a decência do terapeuta (o que é uma boa aposta, visto que apostar na decência de alguém quando está em jogo ganho expressivo, soa caricato e quixotesco). Quantos haveriam de enfrentar a mentira com algo que lhes custaria perder um bom bocado de sessões semanais? Se, por outro lado, fora por razões transferenciais que o paciente agiu tal e qual, ainda assim o calar-se e deixar, apesar de tudo, a companheira, figura naquele caso desamparada, à mercê dessa transferência psicopática teria constituído, a meu ver, omissão moral grave e não situação em que o silêncio e o tempo pudessem aplainar o caminho para a correção da conduta do paciente.

Pois bem, além das duas interpretações acima (a argentária e a transferencial algo erótico-homossexual), uma terceira, causa-me espanto diante do estatuto do que se entende por intervenção psicoterapêutica (e nisso remeto meu leitor para o meu artigo anterior, quando falava nas três modalidades não-excludentes de ação sobre o cérebro/mente – a farmacológica, a comportamental e a hemenêutico-comunicativa, essa última, terreno da psicoterapia, facultada a médicos, psicólogos e, talvez, a qualquer pessoa que conheça os meandros da dissociação entre atos, palavras, intenções e omissões).

Há quem possa defender, como falava no caso por analogia do contraditório jurídico, que a função do analista ou terapeuta é de aliviar a dor do paciente, o que significa dizer que não há espaço conceitual para a intervenção de natureza moral ou ética, se isso não for a causa da dor que fez o paciente nos procurar.

No caso relatado posso depreender – o que não me parece possível, por razões que explicarei em seguida – que o paciente em questão não sente a menor dor psíquica em tirar dinheiro da companheira. Em segundo lugar, a dor psíquica dela ao ver seu dinheiro levado é problema dela que deve ser tratado com o seu analista. Detalhe importante: quem pode pagar um analista é justamente o detentor da fraude sobre o tempo e sobre o valor. A ela, agora alijada de apartamentos e proventos, cabe apenas esperar que alguém de suposta ortodoxia questionável ou simplesmente de coragem, a despeito da perda de boa quantidade de consultas semanais, aja em seu favor, ou pelo menos, em favor do que parece justo.

Numa breve pausa, devo advertir o leitor que o caso relatado não é esporádico e que o tipo de dilema que aponto significa um quase universal no dia-a-dia de todos nós profissionais que vivem da procura do cliente por seus serviços para auferir algo com que viver – salário, remuneração, honorários.

Os modelos apresentados e as alternativas não são caso raro e sim norma, como o foi outro, tempos atrás, em que paciente meu se atrasara, porque numa marcha a ré violenta arrebentara a porta de carro importado alheio. Cuidadosamente, e por isso perdeu valiosos minutos de sessão terapêutica, examinou se havia marca de tinta no carro danificado ou testemunha que o denunciasse. Não havendo, rapidamente deixou o local. Parou num orelhão (não havia celular ainda) e consultou parentes sobre a atitude. Apenas um titubeou, perguntando-lhe se estava certo que ninguém tinha visto nada.

Contando-me o caso na sessão, tempo depois, fiz-lhe uma observação que talvez o preço de uma porta fosse menos penoso que a desarmonia e a eventual dor de consciência futuras. Perdi o cliente e também a família que costuma requisitar e indicar meus serviços profissionais.

Em outro caso, uma bela moça abandona a carreira (prestigiada e bem remunerada) e aceita larga soma de dinheiro para se manter como divertimento de homem abastado que a controlava e a impedia de trabalhar. Devido a depressão reentrante da paciente, a par do uso de medicação, fiz-lhe observação ligeira e educada dizendo que "talvez", a única forma de se reconquistar alguma auto-estima, fosse abandonar a vultuosa soma, ainda que para isso devesse ter que parar de pagar minhas consultas por um tempo, e deixar de fazer o papel de puta de luxo. A paciente sorriu com o ar indiferente, saiu do consultório, e sucumbiu numa letargia depressiva de histeria invejável, instando a família a ligar-me perguntando se a chamara de puta.

Calado e em silêncio, poderia faze-la ver o mesmo 20 anos depois, devidamente pago pelo dinheiro do abastado amante. Técnica ou moralmente, sem com isso procurar fundar uma psicoterapia de púlpito e de duvidável ética inabalável, desconfio que a omissão travestida de silêncio pseudo-justificável só faz com que a terapia se travista de um endosso para um mau uso das relações de norma e valor entre as pessoas. Ou dizendo de maneira crua: a psicoterapia não é uma bálsamos para qualquer dor, mas sobretudo um questionamento agudo sobre a natureza dessa mesma dor.

Moralismo barato ou missão cultural?

Como bem diz Bernard Shaw, apenas batedores de carteira e homens que batem em mulheres agüentam peças de segunda em que se propalam moralismos excessivos. Homens de bem, cumpridores de seus deveres civis e pagadores de seus impostos, diz Shaw, não agüentam segundos um discurso cheio de referências radicais a normas morais, normalmente de gosto dúbio e vezo farisaico.

Concordo e termino dizendo que se há uma gama de comportamentos em que a transgressão é um sintoma, esses merecem o silêncio e a paciência da labuta terapêutica para desmontar-lhes adequadamente a estrutura subjacente. Porém, quando a transgressão tornou-se hábito coletivo, arraigado na formação das pessoas, então ou bem entendemos que não cabe examinar esse quesito, ou então o silêncio é omissão covarde, utilitária e amoral. Pode não redundar tensões e mesmo rupturas com certas ordens vigentes, mas para isso retira da psicoterapia sua grandiosidade de instrumento de interpretação da cultura individual e coletiva, de seus valores e de suas desvios.

Henrique Schützer Del Nero é médico psiquiatra. Professor-colaborador da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Laboratório de Sistemas Integráveis - Núcleo de Ciência Cognitiva) é autor de O Sítio da Mente: pensamento, emoção e vontade no cérebro humano.