Cérebro e Mente:

algumas regras para o início do milênio

Henrique Schützer Del Nero

 

Dia 02 de janeiro de 2000, a rede americana CNN, antecipando-se ao vozerio geral, declara, em programa de hora e tanto, a época entrante – não sei se século, data ou milênio – como aquela em que deveremos resolver o problema científico da mente e de sua relação com o cérebro humano.

Não posso precisar se veremos, eu e os leitores, resposta final para muitas de nossas indagações, mas posso precisar que parte de nossa perplexidade deverá ser redirecionada para um conjunto de procedimentos-padrão que evitem os males que a ignorância cerebral tem causado.

Como se fora um conjunto de prescrições, devo advertir que três são os planos de intervenção sobre o sistema nervoso central: o verbal/comunicacional/semiótico; o condicionante e o físico estrito.

Entenda-se que, por "físico estrito", estou usando uma referência enganosa, pois todos os três níveis são físicos, sendo que apenas o terceiro é físico-físico, sem a mediação da experiência ou sua tradução em atos ou palavras.

O plano verbal/semiótico tem profunda relação com as palavras ou com os atos sígnicos. Por signo, uso aqui uma idéia geral – inspirada em Charles Peirce– que contenha ícones, índices e símbolos. Uma fotografia de fulano é um ícone de fulano; uma marca de pé de fulano é um índice de fulano; qualquer elemento pode ser um símbolo de fulano.

O plano do condicionamento está entre o físico-físico e o verbal/semiótico. Caracteriza-o a presença de intermediação experiencial, embora o tempo verbal e a penetrância ideatório-cognitiva sejam baixos, quer em caso de formação, quer em caso de recuperação.

Explico. A formação de um condicionamento depende da experiência, mas de uma experiência que é pouco afeita ao plano de descrição consciente. Em segundo lugar, há que dizer que o exercício de pensamento não é dos mais efetivos na abolição de condicionamentos – isso pode ser bem atestado pela dificuldade de fazer incidir sobre comportamentos – bulimia e tabagismo – uma reflexão sobre os malefícios do excesso de comida e do fumo. É mais fácil conseguir de um pai ou de uma mãe que doem um rim para um filho, do que ouvir e acatar, desse mesmo filho, os reclamos para que pare de fumar ou de comer tanto.

Se definimos os três níveis de intervenção, devemos agora dar-lhes os estatutos de hierarquia: o plano físico-físico é o mais básico e os outros vêm em seguida. Isto é, devemos tratar primeiramente o primeiro plano e nunca confundir as patologias que aparecem no plano secundário (condicionamentos) e no terciário (verbal/semiótico) como patologias primárias.

Essa prescrição estabelece que o plano primário é puramente cerebral, com suas manifestações invadindo o campo da experiência pessoal (o que podemos chamar de mente individual). Não deve tratar patologia em que a gênese esteja no plano primário, profissional que não tenha sólida formação neurocientífica e de clínica médica.

Passado esse plano, as manifestações do plano secundário – condicionamentos – quando iniciadas nesse patamar, podem ser tratadas por qualquer profissional treinado para isso, o que também é verdadeiro para os distúrbios do plano terciário.

Se estabelecermos essa hierarquia, devemos reconhecer que apenas as patologias primárias requerem instrumental médico, o que não é pouco, visto que a mente se traveste de primitivo contido em si mesmo, descerebralizada e solitária em sua experiência desvelada interiormente – narrativa silenciosa, vivência contínua que parece prescindir de âncora física que lhe dê alicerce.

Se a mente é um artíficio que traveste o sinal cerebral de narrativa simbólica, então devemos perseguir os marcadores que diferenciem as intervenções primárias das outras (uma vez que deverão requerer treinamentos profissionais diversos).

O desafio da Neurociência e de uma Teoria Geral da Mente para esse início de 2000 deve ser a distinção dos três níveis, suas características rígidas e qual treinamento dar a cada profissional que neles atua, para que o paciente sinta cada vez menos os efeitos colaterais de nossa ignorância e preconceito sobre o que são cérebros e o que são mentes.

Henrique Schützer Del Nero é médico psiquiatra. Professor da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Núcleo de Ciência Cognitiva) é autor de O Sítio da Mente: pensamento, emoção e vontade no cérebro humano.