Tempo, espaço e Significado no cérebro humano

Henrique Schützer Del Nero

 

O que se pode esperar, ou se deve esperar, da "neurociência" no próximo século ou milênio? Quanto estamos próximos de desvendar os segredos da mente humana e de como ela surge da atividade complexa cerebral?

Perguntas como essas têm povoado a mídia, científica e leiga, nos últimos anos, como que exigindo uma resposta ou pelo menos uma luz no final do túnel.

Este artigo trata dessas duas perguntas e procura encaminhar três questões cruciais que devem permanecer por bons anos, mais de um século, creio, sem resposta definitiva. (Não me amedronta dizer que algo não terá resposta definitiva, porque é da natureza do fazer científico a provisoriedade e a troca ou revisão de teorias antigas por outras mais novas.)

Três são os eixos em que trabalhamos ao olhar de maneira desarmada para o sistema nervoso central, ou para o cérebro humano, restringindo-se o escopo. Primeiramente, há que se descobrir um local onde uma determinada função ou objeto mental se encontram. Em segundo lugar, é preciso verificar qual o comportamento dessa função no tempo e qual a sua relação com ele. Em terceiro lugar, há que se associar ao espaço e ao tempo medidos, definido o objeto ou a função, um significado ou uma existência.

Explico: uma função mental pode ser entendida como algum tipo de operação que o cérebro executa que é consciente ou pode se tornar consciente. (O leitor deve estar atento ao fato de que para além ou aquém da consciência, imediata ou mediata, somente existe processamento cerebral complexo porém não mental – isso em minha opinião.)

Um objeto mental é um conteúdo que povoa uma ato/função mental. Exemplo: existe a função memória e existe um fato lembrado. A memória é a função e o fato lembrado, por exemplo uma cena de domingo, é o objeto. Existe a função vontade e o objeto mental do desejo. Uma torta de morangos é um objeto mental e o que o qualifica, neste caso, é a operação volitiva.

A tarefa de toda pesquisa sobre a relação cérebro e mente tem sido desvendar como o cérebro codifica, representa e manipula objetos e funções mentais.

Em que pese grandes avanços, não acreditem em qualquer teoria que se diga a um passo de desvendar esse segredo, porque simplesmente não existe um paradigma neurocientífico que possa ser entendido como o modo pelo qual cérebros engendram objetos e funções mentais.

 

A primeira grande tentação, o que não significa estar totalmente errada, é localizar cada objeto e função numa área do cérebro. Essa localização no eixo do espaço é uma tentativa de medida, em que, num certo lugar cerebral x, existe uma operação de memória, ou de vontade ou de percepção e, a elas, se associam "tardes de domingo", "tortas de morango", faces e facetas do mundo. Essa maneira de tentar desvendar a relação entre o cérebro e as funções/objetos mentais se chama localizacionismo e tem muito ainda a nos ensinar, à medida que novas técnicas nos permitem localizar objetos e funções no espaço cerebral, cada vez com maior precisão.

Há, no entanto, uma segunda vertente de codificação, representação e manipulação de objetos/funções mentais, que se utiliza do tempo, como eixo de projeção. Há relógios biológicos, há limiares de percepção e há, ainda, freqüências várias no sistema nervoso, sincronizadas ou não, que são outros modos de surgimento de mente a partir de atividade cerebral. Desvendar essa forma de codificação prescinde um tanto da localização estrita, tornando a matemática e a física que descrevem ondas e suas fases e freqüências, o eixo temporal por onde pode passar o segredo do mental.

O século e o milênio certamente verão avanço brutal no sentido de cada vez conhecermos mais sobre a projeção de cada função mental no eixo do espaço e no eixo do tempo. E os conteúdos, misto de vivências e expectativas, misto de biografia e ecologia ambiental? Bem, esses são o que chamo de conteúdos lingüísticos introjetados pela cultura, seja pela filogênese, seja pela ontogênse do ser humano. Procure-se um modelo matemáticos para a projeção de uma função mental no eixo do tempo e certamente se estará antecipando alguma grande descoberta dos próximos anos. Porém, procurar a mesma matemática a reger conteúdos, principalmente aqueles de forte carga biográfica, parece-me risível.

Nesse caso a linguagem não é objeto de modelo matemático mas é modelo metamatemático da mente. Descobrir-lhe as leis, para além de uma simples hermenêutica do passado e de associações, o que faz agora a psicodinâmica ainda respeitável, é tarefa para talvez bem mais de cem anos. Espero poder ser tarefa para o milênio, desde que se entenda a linguagem, à Chomsky, como dotada de uma estrutura interna formal e se lhe desvende o estatuto de uma semântica e de uma pragmática positivas (a sintaxe já é bastante mais bem elaborada).

O século que se aproxima deverá nos brindar com um paradigma do mental. O eixo do espaço recepcionará rapidamente localizações mais refinadas; o do tempo, permitirá dar, à dinâmica, o estatuto de codificação cérebro/mental; porém, a semântica do ego histórico, deverá aguardar um metanível de significação, que possa, num só golpe, desmantelar o excesso da hermenêutica sem cair na redução ao vazio, de uma sintaxe neural sem a devida contrapartida de uma semântica e pragmática histórico-lingüístico-culturais dos objetos/ funções.

Henrique Schützer Del Nero é médico psiquiatra. Professor da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Núcleo de Ciência Cognitiva) é autor de O Sítio da Mente: pensamento, emoção e vontade no cérebro humano..