Encruzilhadas e bifurcações

Elementos para uma teoria da consciência individual e coletiva.

Henrique Schützer Del Nero

"A verdade é estranha ao tempo da evolução. Para conseguir contemplá-la, a alma, prisioneira do corpo, dos sentidos e das aparências, deve libertar-se dos vínculos que a entravam."

Ilya Prigogine

I. Introdução

Se assistimos no decorrer do último século avanços consideráveis no conhecimento, resta-nos ainda o "nó do mundo", na expressão de Schopenhauer, por desvendar: a relação entre o corpo e a mente.

Com base nesse primeiro pressuposto, i.é. de que a relação entre Pedro e pedra, ou entre o papa e o rochedo de Gibraltar, não se constitui descontinuidade ontológica, para não dizer oposição, mas sim uma questão de correta aferição epistêmica, pretendo defender aqui uma posição compatibilista no que diz respeito ao monismo e à grandeza do "espírito humano". Infelizmente defecções são quase regra no mundo dos Homens e, se são grandes, por vezes, seus atos, também podem ser baixos. Até onde tenho notícia jamais encontrei um gato de poucas palavras, circunspecto, taciturno, sorumbático, sagaz e perquiridor de oportunidades que lhe pudessem valer uma nesga de informação privilegiada, condição primeira para a fraude, humana, demasiado humana.

Se a relação entre o mundo da mente e o mundo físico transtornou filósofos durante séculos, já é hora de comparecerem à arena dos debates aqueles que, como eu, combinam de maneira bizarra um pouco de muitas disciplinas. Peço ao leitor que desculpe a pobreza de certas colocações. São ao menos de um homem probo, médico angustiado, como outro, nem cem anos faz, que perambulava por Maxwell e pela mitologia à cata de explicação que redimisse a dor e não do conhecimento perfeito e acabado.

Há versões infindáveis de separação radical entre o mental e o físico. Se antes se aludia ao espírito como sustentáculo substancial da mente, agora sofisticaram-se eles, os dualistas impenitentes. Criaram-se alegorias organizacionais, predicacionais e outras de toda sorte para rebater a redução inevitável, em princípio esteja bem claro, de toda e qualquer atividade ou comportamento à razão estrutural e substancial do mundo físico. Bem certo, sou reducionista porque, ao contrário de Dilthey que propõe o binômio compreensão/explicação para justificar a separação entre cultura e natureza, entre mente e cérebro, não sou egresso dos ares do seminário de Tübingen: toda filosofia alemã está irremediavelmente contaminada de teologia!

Porém, se defender postura reducionista significa fazer juz à máxima de Ockham, também obriga o propugnante a defender-se, tal culpado, perante os acusadores de tal desvario. Creio que algumas notas acerca da relação entre organização, informação e redes neurais poderão aclarar até que ponto a ousadia se ilumina de possibilidade e o mundo virtual da redução dá lugar ao surgimento, para não dizer emergência, palavra ambígua, de um máxima que oriente a compatibilização entre a forma e o conteúdo do Homem, animal superior, por vezes não, ainda assim especial, máquina complexa como outra qualquer, porém dotada de identidade, valores e História.

II. Mente

Hipótese 1: A propriedade exclusiva do mental, embora se faça acompanhar de algumas outras, é a consciência.

Hipótese 2: A propriedade exclusiva da consciência é a de unificar numa integral o conjunto de auto-valores que assumiu a equação dinâmica de cada indivíduo no curso de sua história. Mais ainda, a consciência opera algumas transformações no mapeamento de elementos do conjunto de objetos e relações do mundo físico em objetos e relações do mundo mental

Hipótese 3: A classe de elementos no contra-domínio de interpretação da relação entre fatos físicos e fatos mentais tem as seguintes peculiaridades:

a. valores de bifurcação no domínio físico se fazem corresponder no contra-domínio mental de "sensação de liberdade".

b. pequenas perturbações que corrigem valores de bifurcação de parâmetros no nível físico se fazem corresponder de "sensação de decisão" no mundo mental.

c. A identidade do indivíduo é a classe de todos os valores que este assumiu, qua sistema dinâmico, ao longo de sua história. Do ponto de vista físico, isso é vital como condição para permitir a correta avaliação da posição do sistema no espaço n-dimensional das relações cognitivo-sociais. Do ponto de vista mental, isso é fundamental com vistas a criar a sensação de agente, de centro de determinação, de subjetividade, de personalidade jurídica e social.

d. Se por um lado uma redução de forma atentaria apenas para os valores e relações ao nível físico, há que haver uma transmutação no contra-domínio, inserindo elementos de substituição estranhos ao "fisicalismo" e próprios do "mentalismo". O ganho de assim proceder é forjar a identidade moral e social do indivíduo supostamente livre e responsável. Embora estranho, do ponto de vista físico, esse confundir bifurcação e decisão livre, há que ressaltar sua absoluta necessidade em termos da construção de um tipo peculiar de sociedade. O mapeamento dos elementos do físico ao mental não obedece regra linear, muito menos suave. Ao contrário permite a transformação do logos da natureza no ethos da cultura.

De maneira breve o que procuramos resumir nas hipóteses acima é que a mente é uma segunda etapa na interpretação dos dados do mundo. Se a percepção é a primeira interpretação daquilo que nos chega pela via dos sentidos, a mente é uma interpretação de 2a ordem, ou uma interpretação de algo que já é uma interpretação. Fernando Pessoa talvez tivesse em mente o problema matemático atinente a essa dupla interpretação quando dizia que as palavras não expressam bem os pensamentos porque esses também não expressam bem a realidade.

Talvez haja outros níveis de interpretação. A tônica desta exposição será a de simplificar ao máximo possível os níveis. Se conseguirmos compreender o cerne da idéia para uma operação simples poderemos expandir o sistema posteriormente.1

Nessa visão simplificada das coisas temos no primeiro nível de interpretação do dado sensorial, n1, a geração de transformações automáticas que suscitam ações. No nível da segunda interpretação temos um esboço de vida mental, de representação, planificação, controle e intencionalidade (numa versão fraca de intencionalidade que significa diretividade). Gatos, bem como grande parte do seres vivos têm essa segunda interpretação, ensejando uma mente mitigada, meramente representacional (cuidado porque a noção de representação de que falo aqui não é necessariamente funcionalista-simbólica, mas sim eminentemente analógica e embasante da ação qualificada por bem recortar uma instância do objeto percebido, seja presente, seja virtual). Há, porém, a possibilidade de se fazer uma interpretação da interpretação de 2a ordem. O objeto da interpretação não é mais o nível 1, mas sim o nível 2. Essa meta-interpretação do nível 2 enseja o que chamo de vida mental rica, representação complexa, intencionalidade no sentido forte, i.é. consciência reflexiva. O tratamento que procurarei dar ao problema é justamente o de adicionar a essas idéias alguns elementos breves de neurobiologia, de redes neurais, de organização e de informação, a fim de gerar controvérsias. Idéias são sempre ocasiões histriônicas. Tudo é vaidade e a função do teatro, no dizer de Vittorio Gasmann, é sempre provocar o escândalo. Portanto, escandalizai-vos! III. MÁQUINA O tópico acima deverá ser dividido em duas partes. Na primeira analisamos rapidamente um "God built system", i.é. o cérebro humano. Na segunda um "Man built system", i.é. uma rede neural hipotética. III.1. O Cérebro humano Um sistema multi-integrado de conexões entre unidades discretas interagindo entre si através de sinapses, i.é. de junções onde através da labuta de neurotransmissores o impulso elétrico se propaga. Uma intensa conexão com o mundo externo, quer sob a forma de aferências sensorias, quer sob a forma de eferências motoras. No Homem, mais que em qualquer outro animal, as áreas de conexão interna, ou de associação, destacadas do simples manejar do sensoreamento com vistas à ação, são extremamente desenvolvidas. Do ponto de vista evolutivo, pode-se dizer que temos progressivamente uma substituição do cérebro como intermediário, "atravessador", oportunista do agora com o fito de agir, para uma situação de locus privilegiado de recriação do espaço real e virtual, da verdade e da mentira. Agora, a área intermediária não é mais a conexão monótona e sagaz mas o representante, na mais elevada posição semântica que reservou, malgrado alguns, a esse nome a função do eleito ou do defensor. O cérebro do Homem graças às artimanhas da Mãe Natureza pode recriar o mundo da razão dentro de si, tal que se o empirismo radical era palatável para o gato, para o cão e para o macaco, agora o racionalismo deve resgatar Kant através das áreas de associação intermediária. A isso corresponde o que chamei acima de meta-interpretação ou de mente no sentido forte. Se os empiristas inglêses pensavam em animais domésticos quando de seus ensaios, o racionalismo pensava no Homem. Eis que a bifurcação do mundo natural se transmuta em encruzilhada. É hora pois de decidir, com o peso da responsabilidade e a certeza da coação mínima. O aparecimento da mente e da linguagem na escala evolutiva lebram a conversão de Paulo. Saulo agora não é mais sistema dinâmico auto-organizado e cobrador de impostos. É, outrossim, Paulo, apóstolo que se redime e redireciona seus atratores éticos para o bemfazer. Um projeto de redução de formas e emergência de conteúdos deve privilegiar essa metáfora. Somos meio Saulo meio Paulo e todo o devir pela frente. A sorte está lançada senhores, os dados e os parâmetros alimentarão nossa estrutura cerebral fortemente moldável. À boa semeadura deverá seguir-se, quase sempre, a boa colheita. O quase responde por três variáveis independentes de parâmetros ambientais: a estrutura prévia do Sistema Nervoso Central (anomalias genéticas, falha estrtural, etc), o ruído e a possibilidade de estabilização em atratores caóticos, i.é. aqueles que pudessem dar conta da máxima sobre Richelieu: o bem que fez, fez muito mal e o mal que fez, fez muito bem. Bem certo, o leitor deverá perguntar o que é consciência do ponto de vista neurobiológico. Afora remetê-lo a imensa literatura, cabe dizer simplesmente: aquilo que se experimenta quando não se está sonhando. Portanto, refazendo o périplo cartesiano, há que se falar brevemente de sonho, único estado onde a representação brota na consciência, colorido vivo, faltando-lhe a realidade a endossar a correspondência veritativa. Sonhos são quase-identicáveis a uma parte do sono que se chama do ponto de vista neurofisiológico de "sono paradoxal" ou sono REM (rapid-eyes movement). O que se sabe hoje em dia é que o perfil neurofisiológico do estado de sono paradoxal é quase-idêntico ao do estado consciente da vigília, execeção feita ao fato de que as aferências sensorias se encontram praticamente desconectadas nessa fase do sono. A importância desses dados ilumina a compreensão da consciência. Temos três estados possíveis de intensa meta-interpretação:2 a. vigília e consciência da vigília (aprox. 18 horas por dia) b. sonho e ausência de consciência (aproximadamente 100 minutos por noite. Detalhe: costumamos nos lembrar apenas dos conteúdos oníricos da fase imediatamente anterior ao despertar, fato que ilustra que, se não sonhamos para esquecer, pelo menos não sonhamos para depois lembrar) c. sonho e percepção consciente de que é um sonho (fenômeno raro que se deve apelar para a experiência introspectivo-mnéstica de cada um para endossar) " That is, REM sleep can be considered as a modified attentive state in which attention is turned away from the sensory input toward memories...from the standpoint of the thalamocortical system, the overall functional states present during paradoxical sleep and wakefulness are fundamentally equivalent although the handling of sensory information and cortical inhibition is different in the two states. The implications of this conclusion are far reaching since wakefulness may then be considered as nothing other than a highly coherent intrinsic functional state strongly modulated by sensory input. That is, paradoxical sleep and wakefulness are seen as almost identical intrinsic functional states in which subjective awareness is generated." (in Llinás and Paré pg.521-522 Neuroscience vol.40 1991) A presença dessa breve citação objetiva apenas endossar a postura de que o cérbro tem o mundo dentro de si e de que a vigília é apenas um estado onde o mundo do cérebro se vê confrontado com o mundo da sensorialidade, ou do controle de parâmetros ambientais. No sonho, ao contrário, é o mundo tal como imagem racional, virtual e interna que aparece. A sensorialidade já não mais apreende a "alma" com suas amarras. Agora é tempo de achar o "espírito puro" ou estado fundamental, aquele que permite, por recozimento controlado (simulated annealing), passar do vidro ao cristal.3 Porém o que nos interessará sobremaneira mais adiante é a função da consciência e o porquê de certos estados oníricos se fazerem acompanhar de "consciEAˆncia" de se estar sonhando. III.2. Redes Neurais e Neurocomputação A pergunta acerca do que é um modelo não nos deve deter mais que um átimo. O modelo de atomo é uma rede intricada, misto de linguagem e de metalinguagem científicas, que cria uma explicação preditiva acerca de um domínio restrito do mundo fenomenal. Modelos são constructos mentais que mais ou menos se assemelham à forma das aparências. Tal como as percepções, ao contrário de recortes passivos, são contruídos pela intensa labuta da necessidade. Redes Neurais, modelos conexionistas, processadores distribuídos em-paralelo, etc. são nomes que se atribuem a um tipo de arquitetura que, de forma suscinta, se resume nas seguintes propriedades, em oposição às tradicionais arquiteturas do tipo "von Neumann": a) ausência de processador central b) ausência de memória endereçável bem definida. c) elementos similares a neurônios interconectados. Regras de conexão que variam em função de valores de ativação e do peso da conexão. d) ausência de regras definidas de processamento. Ao contrário de regras, ou computos, ou algorítmos, bem definidas, típicas das arquiteturas tradicionais, encontramos outrosssim um tipo de algorítmo que se baseia essencialmente na dinâmica da rede, na distribuição de seus valores de conexão, etc. e) ausência de delimitação clara entre nível de implementação e nível de programação, ou de distinção entre hardware e software. Muitos outros pontos poderiam ser ditos acerca das redes. Não cabe aqui mencioná-los. Basta notar-se que por significar uma reorientação do enfoque de modelização de função cognitiva, representam elas, as redes, avanço considerável no aproximar a função, i.é. o processo mental, do nível de implementação, i.é. do Sistema Nervoso Central. Bem certo está que ainda estamos muito longe de neurônios reais e de sinapses reais. Não importa. A ciência progride graças às boas alegorias. A parábola das redes neurais reinsere dentro da ética da relação corpo-mente a velha questão do processamento simbólico independente, do "seguir regras" ou do "ser descrito por regras" (rule-following/rule-described), bem como problemas de classificação ortogonal de predicados mentais, emerg Aˆncia, redução etc. Falar de todos eles trairia o objetivo dessa exposição. Convido aquele que pretenda adentrar essa seara a consultar algumas das bibliografias introdutórias ao assunto. De forma breve, podemos definir uma rede neural como um modelo possível de atividade cognitiva. Essas redes são governadas por uma dinâmica. Há tal grafo, para uma série de valores de estabilização dos pesos das conexões, impreditibilidade quanto aos valores de "relaxamento" ou de estabilidade, quando aparecem os atratores , ou pontos de energia mínima, passíveis de interpretação derivada como sendo pontos de categorização (domínios de atração). Essa impreditibilidade, associada à estabilização em padrões de perfilamento de atratores diversos, dá origem ao que alguns autores chamam de processo de auto-organizaçãoo da rede. Veremos mais adiante qual noção de auto-organização nos pode interessar, quais impasses são dela indissociáveis e, finalmente, como pode a teoria da informação lançar luz sobre alguns dos problemas relacionados à consciência quando projetada virtualmente no mundo das redes neurais. IV. ORDEM Ordem e organização são duas palavras polissêmicas que povoam discussõ_es infindáveis. Bem certo está que não vou contribuir de maneira significativa para dirimir dúvidas a elas associadas. Cabe, porém, ao menos explicitar o preciso uso neste texto, de tal sorte a aclarar as outras idéias envolvidas. A noção de organização pode ser encarada sob diferentes enfoques. Modismos à parte, examino duas acepções sérias e alvissareiras no vislumbrar uma futura teoria da complexidade. IV.1. Sistemas termodinamicamente abertos A contribuição de Prigogine e de seus seguidores se baseia, de maneira resumida, nos seguintes pressupostos: a) há uma termodinâmica especial que rege os sistemas que mantêm trocas de energia com o meio. Os assim chamados sistemas dissipativos teriam, em pontos onde estão longe de seu equilíbrio, tendência a apresentar oscilações que podem caminhar até novos pontos de organização, antes insuspeitáveis. A par do uso de noções como "bifurcação" e "caos", esses sistemas subsumem outras características que, se os tornam interessantes do ponto de vista físico, fazem deles também algo diversos daqueles tratados pela teoria de sistemas dinâmicos. b) Os sistemas em análise são de complexidade elevada, ou de "codimensão" altíssima. Daí uma série de adaptações no tratamento de suas dinâmicas. c) A noção de irreversibilidade temporal, com sua alusão à figura de Boltzmann, desempenha papel crucial nos modelos da escola de Bruxelas. Portanto, a partir das três noções acima pode-se dizer que para que definamos "auto-organização" à Prigogine devemos preencher as seguintes condições: Seja um sistema S. Se S é termodinâmicamente aberto e está longe de seu ponto de equilíbrio podem aparecer, às mínimas flutuações, "bifurcações", "caos" e, em seguida, um novo padrão de organização que se chamará "auto-organizado" porque - i. não obedece às leis deterministas, mas sim às probabilidades; ii. é portanto imprevisível; iii. sua estrutura, no que diz respeito à forma, não é dirigida pelos agentes externos, daí "auto-organização" iv. sua forma é não reversível na seqüência temporal o que lhe confere uma nova forma e um caráter de novidade plena."...esta ciência se tornou a ciência do amanhã, não no sentido de dar um modelo geral do futuro ao qual as outras ciências deveriam submeter-se, mas sim no sentido de que ela descobre, a partir do seus próprios objetos, as restrições sem as quais nenhuma ciência, quer seja biológica, quer social, pode definir a evolução; a irreversibilidade, as probabilidades e a coerência." (in Entre o Tempo e a Eternidade" Ilya Prigogine e Isabelle Strengers. 1990. pg.18. Ed.Gradiva.) IV.2. Teoria de Sistemas Dinâmicos (TSD) Ao contrário do que possa parecer, a Teoria Qualitativa de Sistemas Dinâmicos não endossa para sistemas de pequena ordem, ou de codimensão baixa, aquilo que é aplicado na física descrita no tópico anterior. Algumas são as diferenças que podem constituir erro equivalente ao considerar a física de Newton como caso particular da física relativista. Vejamos em que não se legitima o simples configurar diferentes padrões de complexidade no tratamento dinâmico dos sistemas abertos de Prigogine. a) a teoria de sistemas dinâmicos não faz qualquer alusão ao problema da irreversibilidade temporal. Se no silêncio da lei devemos seguir os usos e costumes, entendo que os problemas que já mostravam a necessidade de tratamento pela TSD, tais como o problema mecânico da interação gravitacional entre três corpos, não endossam aventuras heterodoxas no que diz respeito ao estatuto de temporalidade que se adota. b) a TSD afirma que para certos valores de parâmetros perde-se a estabilidade estrutural (nos chamados valores de bifurcação de um parâmetro). Para esses valores, qualquer perturbação pode levar a uma organização em outras regiões de estabilidade estrutural. Detalhe de vital importância. Esses novos padrões, ainda que se possa chamá-los de "auto-organizados", têm em comum com os anteriores a mesma função matemática a descrevê-los ou, mais exatamente, a equação diferencial que rege o sistema dinâmico em questão. Variando-se os parâmetros e atingindo-se valores de bifurcação o que se perde é a possibilidade de previsão quanto aos novos estados em que estabilizará o sistema, porém sua estrutura matemática se mantém a mesma. Daí o nome "caos deterministico". Bifurcações sucessivas podem tornar densa uma região povoada de estados não preditíveis. A isso pode chamar-se "caos". I.é., não há previsão quanto aos estados que assumirá o sistema após pequena perturbação no valor de bifurcação, porém sabe-se que ainda nesse regime a estrutura deterministica da função, ou da equação diferencial, permanecerá inalterada. Para todos os efeitos entendo que chamar de "auto-organizada" a primeira acepção de variação, i.é. dos sistemas dissipativos, é errôneo pois o sistema já não é mais o mesmo em termos da estrutura matemática que os descreve. Só poderia dizer que algo se passa como propriedade de um sistema, e.g. a propriedade de se "auto-organizar", se esse sistema tivesse a constância tal que fosse o mesmo todo o tempo. Imagine a seguinte proposição: "Machado exibe auto-organização quando interage, tal matéria morta, com o primeiro verme que lhe coma as carnes". Penso ser incorreta a imputação de "auto-organização" nesse caso pois o que jaz alí não é mais Machado, mas o corpo de Machado. As estruturas matemáticas variam bem como a própria predicação essencial de se estar vivo ou não. Numa coisa acerta Prigogine. Salvo Lázaro, esse fenômeno é irreversível, porém o sujeito da organização é diverso nas duas ocasiões, antes e depois da morte, e não o é simplesmente por variação de predicado menor. No caso em questão a "alma já se desprendeu do corpo"! Há portanto que diferenciar auto-organização nos dois sentidos acima. A noção de sistema aberto e de geração de novidade com irreversibilidade temporal me parece, se verdadeira, ferir preceitos fundamentais de nomicidade no mundo. A ciência que há de brotar desse conjunto de pressupostos não mais será o que entendo por ciência. Noções tais como liberdade e vontade podem ser imputadas ao sistema de Prigogine pois alí a novidade goza de tal lugar que o determinismo se evanesce, permitindo confundir bifurcação com encruzilhada e perturbação com decisão livre e soberana. Na TSD, ao contrário, o mundo preserva a nomicidade. Se difícil ou impossível a previsão de conteúdos, i.é. de estados para pontos de instabilidade estrutural (ou de bifurcação), ainda assim lá está a forma, ou função, a preservar o caráter necessário da lei. Interpretar a bifurcação como encruzilhada e a perturbação como decisão é conferir um estatuto mentalista-subjetivo ao mundo. Defendo que isso não apenas é possível como realmente é o cerne do mental. Bem entendido, interpreta-se a ocorrência de instabilidade ao nível físico como liberdade de escolha. Porém, a liberdade não existe no mundo físico e muito menos a vontade. A mente é uma interpretação física de segunda ordem do que se passa no mundo físico. Para tanto recruta vocabulário onde bifurcações se transmutam em encruzilhadas e o sujeito lE1  está, qual simples sistema dinâmico, determinista estruturalmente, a pensar-se "numa selva escura". Cuide-se aquele que pretende inverter a interpretação física através da vivência fenomenal. Se a primeira é a única que nos garante individualidade e responsabilidade, sociais e jurídicas, a segunda é a condição para a idéia de ciência. Defendo que uma postura monista essencial deve privilegiar o estatuto de interpretação, em outro vocabulário, de uma bifurcação. Daí se funda fisicamente o mundo do indivíduo, supostamente livre, porém artífice da cultura e da sociedade. Esquecer que isso é mera interpretação com variação apenas de termos, porém com semelhança de forma do ponto de vista matemático, é jogar fora a possibilidade de uma ciência da cultura e também de uma ciência da natureza. O nômico não deve padecer da tentação de se chamar "o novo", pois, se assim o fizer, haverá novidade vá lá, porém novidade num deserto de previsibilidade, dedutibilidade e explicação - deserto de razão enfim. Pode-se portanto notar que a única acepção que aceito de auto-organizaçÆo é aquela que seja condizente com a TSD. Se se quer chamar "auto-organizado" o espectro de valores e a estabilidade estrutural que resulta de uma perturbação em sistemas estruturalmente instáveis, aceite-se. Apesar de acreditar que impreditibilidade não é razão suficiente para deslocar o hetero-determinístico para o auto-indeterminístico, pois com isso obscureço a invariância da forma, aceito o uso provisório do termo. Para todos os fins é esse uso que adoto para "auto-organização" no contexto desse trabalho. V. COMUNICAÇÃO Uma área particularmente vital no tratamento da dicotomia entre corpo e mente é a teoria matemática da comunicação. Inicialmente forjada para servir de instrumento na manipulação prática de transmissão de dados, teve seu campo de influência estendido para um sem-número de disciplinas. Malgrado a advertência explícita de Shannon de que aquela teoria não deveria se prestar a uma generalização indevida quanto aos domínios de aplicação, procurou-se enxertá-la em variadas áreas de conhecimento. Dretske foi um dos que procuraram "semantizar" a noção formal de informação, no afã de contruir uma teoria da cognição baseada em preceitos comunicacionais. A meu ver, acorde com diversos especialistas na área, há que se tomar cuidado com o uso indevido da teoria. Penso ser permitido utilizar teorias no sentidos de alegorias aclaradoras, não sem antes conhecer, no domínio estrito de sua aplicação, que função desempenha e quais são seus precisos elementos definicionais. A ciência progride justamente no delimitar domínios e no aplacar o uso ligeiro de seus predicados constitutivos. Informação é termo que, na linguagem corrente nos alude a conteúdo, enquanto na teoria matemática da comunicação (TMC) o significado é de forma, independentemente do que esteja em jogo em matéria semântica. Dadas uma fonte geradora de sinais, um canal e um receptor posso definir informação individual na fonte com sendo uma determinada probabilidade de ocorrência desse sinal. Igualmente posso adotar a mesma definição para a probabilidade de recepção desse sinal no receptor. O estudo da informação nesse caso, associado à existência de ruído, redundância e de capacidade de transmissão do canal pode nos dar a probabilidade de, em ocorrendo um evento na fonte, qual sua chance de chegar ao receptor, seja esse evento um xingamento ou uma benção apostólica. O número de "bits" há de subtrair-lhes qualquer conteúdo, imputando-lhes igual esperança matemática. Podemos relacionar informação individual, média e entropia. Se a informação média está em ponto de máxima isso corresponde a afirmar que existe um perfilamento de equiprobabilidade de ocorrência de qualquer sinal. Se a equiprobabilidade aumenta e a entropia informacional também, por definição aumenta ao máximo a incerteza associada individualmente a cada sinal. Imagine que estou vendo o discurso de um presidente envolvido na mais intensa série de escândalos. Após proferir, chorando as palavras "é portanto como outro antes de mim que deixo para a História o julgamento final de meus atos..." a) dá um murro na mesa e conclama os descamisados a lutar b) dá um sorriso e canta uma moda caipira c) completa dizendo "forças ocultas me obrigam a renunciar. Deixo a presidência e não a vida. Me livro dessa história para cair na vida". Com um pouco de sabedoria de senso-comum, bom humor e uma pitada que seja de progressismo, pode-se avaliar o grau de informação associada a cada uma das três unidades informacionais acima. Perceba-se que, tanto maior o conhecimento acerca do conteúdo esperado, tanto menor a informação associada àquele símbolo, ou sentença, e maior o conhecimento. Examine-se agora um outro panorama. Imagine-se uma rede neural que tenha apenas dois domínios de atração A e B. Esses dois domínios funcionam como dua "memórias". Porém a relação entre eles pode ser a de disjunção, i.é. a interpretação associada pode ser do tipo A ou B. Se A e B tiverem o mesmo "tamanho" posso dizer que a informação média é máxima e que a entropia é máxima. A tem 50% de probabilidade de ocorrência e B idem. Leia-se nesse caso A ou B. Porém, posso ter atratores com "tamanhos" diversos. Suponha que A tem 10% de probabilidade de ocorrência e B tem 90%. Nesse caso a entropia informacional diminuiu, a probabilidade individual se modificou, tornando B mais provável e portanto "mais conhecido" com menor informação individual. A interpretação pode passar agora a ser, dentro de um certo espectro de valores de probabilidade, não-A ou B. Com essa simples sentença posso fazer inúmeras deduções em termos do cálculo de predicados de primeira ordem. Portanto posso, a um só tempo, relacionar teoria da informação, redes neurais, cálculo de predicados, dinâmica rápida de aprendizado e, guardadas as ressalvas mencionadas em tópico anterior, "auto-organização". A importância dessa idéia embrionária é a seguinte: a) um sistema nervoso é constituído de um conjunto imenso de unidades interconectadas. b) essas unidades interagem e deve ser daí que resultam padrões de "categorização". c) pode-se imaginar que as redes neurais bem espelham essa dinâmica. d) as arquiteturas "von Neumann" nada tem que ver com esse arranjo. Postulam, ao contrário, que o nível do processamento simbólico, graças à múltipla-instanciabilidade, deve esquecer questões pertinentes ao nível físico, i.é ao cerebral. e) a psicologia cognitiva, em sua aparente reação ao behaviorismo, entendeu associar cognição a processamento de informação. f) portanto a noção de informação deve encontrar ao mesmo tempo a rede neural, bom modelo para o cérebro, e a manipulação de entidades, ou de elementos imputados a atratores. g) a compuls 3ao à repetição em psicologia parece endossar a regra de aprendizado nas redes. f) a noção de diferentes graus de informação individual e o "tamanho' de cada atrator podem subjazer a uma interpretação que insira o cálculo de predicados derivadamente numa rede. g) a noção de auto-organização, visto ser uma rede neural um sistema dinâmico que detém valores de bifurcação, pode ser imputada a padrões de estabilização insuspeitáveis antes de se lhes conhecer certos estados. De maneira breve, procuro no próximo item voltar à pergunta fundamental de por quê sabemos às vezes que estamos sonhando. Para isso deveremos associar todas as propostas acima a uma teoria especulativa da consciência. VI. CONSCIÊNCIA Como disse atrás, há que distinguir-se duas acepções de consciência. Uma primeira resulta de uma interpretação da interpretação sensorial. Tanto maior seja a área de associação ou intermediação entre o estímulo ambiental e a ação sobre o meio, maior será essa consciência de baixo nível, representacional, tipo "awareness". No Homem, porém, encontramos três ocorrências que, do ponto de vista evolutivo, aparecem concomitantemente - consciência reflexiva, linguagem e cultura (mundo dos valores e das normas). Creio que se percebemos o aparecimento abrupto dessas três modalidades de traço adaptativo devemos considerá-las mutuamente interligadas. Explico: seria difícil supor que tivessem ocorrido três mutações tão diversas que suscitassem traços tão sinérgicos. É, portanto, interessante procurar achar um denominador comum entre esses três traços. Neste trabalho não pretendo fazê-lo mas apenas, e tão somente, analisar consciência reflexiva do ponto de vista das colocações gerais. O que poderia ser uma meta-interpretação do nível 2 de interpretação do dado sensorial? Uma atividade espontânea, aleatória, que através de algum algorítmo refizesse o caminho do aprendizado, eliminando aparas, tosando idiossincrasias. Essa tosa é o modelo proposto para sonho em redes neurais de Crick e Mitchison. As redes em questão são redes "tipo Hopfield" e o algorítmo em questão se chama "aprendizado reverso". Outros autores mais atados à investigação neurobiológica acreditam que o sonho não é um eliminar atratores indesejáveis, mas sim um reforçar atratores desejáveis. Sinto que entre eliminar o ruim ou ressaltar o bom há uma equivalência complementar. Donde assumo que o sonho, ao contrário da vigília, totalmente coagida por parâmetros ambientais, é o que reinsere o indivíduo no mundo da coletividade. Seus atratores devem ser redimensionados em relação ao "atrator médio" dos usos e costumes da terra. Se, por vezes, temos consciência no sonho, eis alí fenômeno de "consciência coletiva", bem como os elementos de consciência que do sonho se possam tirar, representando ambos a resocialização do indivíduo que, quando acordado, é ser por demais contingente. A consciência imediata do sonho, ou a consciência posterior no relato do sonho, são dois fenômenos de coletivização e de "universalização" do indivíduo. A consciência da vigília é a consciência individual por execelência embora privilegie, de modo às vezes insuportável, o estatuto de unicidade do sujeito. A consciência do homem acordado é tirania despótica ou esclarecida. No sonho há que fazê-la voltar à representação controlada pelos outros poderes. Portanto, temos uma teoria da consciência na medida em que uma atividade espontânea que percorre o nível 2 gera a condição de conexão, inspecção e "ciência". Há, porém, como sabemos, um universo mediato enorme de expectativas que se calcam em termos de valores informacionais individuais no nível 1. Toda vez que ocorre discrepância entre valor informacional esperado e valor obtido ocorre o fenômeno da re-inspecção. Se ocorre discrepância entre o nível 2 e a meta-interpretação do nível 2 também ocorrerá socorro à "consciência". Imagine o sonho. Enquanto o perfilamento dos atratores obedece à norma informacional esperada não há que atar-lhe consciência. Modifique-se o valor de informação média esperada e resultará a ativação da consciência que haverá de judicar sobre os litigantes - o esperado e o obtido. Exemplo: João vivencia acordado a seguinte experiência: sua mãe lhe dá uma mamadeira e um tapa no glúteo. João acordado agora é ser contingente que categoriza no atrator "mãe" duas regiões incompatíveis de mínima energia. Sua mãe, em regime de vigília, é boa e má. Se João não dormisse e sonhasse deveria se submeter a uma terapia Kleineana. Como dorme, pode no sonho refazer o padrão de seu atrator devotado ao conceito de "mãe". Culturalmente espera-se que mães sejam uma máxima de bondade. Portanto o atrator "mãe" deve ser rebalanceado no sonho de tal sorte a eliminar o idiossincrático tapa. Isso ocorrendo, ter-se-á após o sonho a lembrança do tapa e a solução homogênea do atrator. Porém, se durante o sonho acontecer de, contrário às expectativas, o processo se encaminhar para fixar a região de menor probabilidade, i.é. o tapa como símbolo de mãe, aí sim deveremos, dada a discrepância entre expectativa e realidade, fazer a consciência intervir. Portanto, a consciência no sonho ocorre quando, contrário ao valor informacional esperado e o obtido, temos a dinâmica de reestabilização caminhando para pontos não coerentes em relação à cultura. Daí se pode entender por que a forma do sonho é a mesma mas os valores atados a cada episódio podem variar de acordo com perfis de probabilidade no mundo da cultura. Em outras palavras, haverá cultura virtual onde mãe é sinônimo de tapa. A consciência subjetiva e intencional é pura individualidade vigil. A consciência latente coletiva é pura virtualidade direcionadora do sonho coerente informacionalmente. A consciência explícita do sonho é coletiva e inconformada com a discrepância informacional individual entre o esperado e o obtido. VI. CONCLUSÃO Muitos outros detalhes deveriam ter sido ventilados. Não caberia examiná-los em artigo dessa extensão e formação não técnica em algumas áreas. Lembre-se apenas que cada sistema dinâmico, qua indivíduo, deve avaliar seu momento para agir. No domínio da cultura isso se lê "Zeitgeist"; no domínio da natureza isso se lê como posição num hiperespaço de ampla dimensão que abarca o ser biológico e o ser social. BIBLIOGRAFIA[1] H.Del Nero, "O Problema da mente na Ciencia Cognitiva", in Documentos IEA-USP.1992[2] H.Del Nero, J.R.Piqueira. "A multilayer perspective of human cognition" in Documentos IEA-USP.1992[3] J.R.Piqueira, H.Del Nero. "Cognition:determinism,chaos and emergence". Manuscript accepted for the 1992 IEEE Systems, Man and Cybernetics Conference Proceedings.[4] A.J.Marcel, E.Bisiach (ed) Consciousness in Contemporary Science. Clarendon Press.Oxford.1988[5] P.Churchland. Matter and Consciousness. MIT Press.1989[6] J.Searle. Minds,Brains and Science. Harvard University Press. 1984[7] M.Posner (ed). Foundations of Cognitive Science. MIT Press.1989[8] P.Churchland. Neurophilosophy:Toward a Unified Science of the Mind/Brain. MIT Press.1986[9] P.Churchland, T.Sejnowski. The Computational Brain. 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