A MENTE E SEUS SÍTIOS

(Belo Horizonte Domingo 29-06-97)

Vitor Geraldi Haase

 

Nos últimos quinze anos surgiram vários livros de um tipo híbrido, meio filosóficos, meio científicos, abordando questões relativas ao substrato neurobiológico da atividade mental consciente. Alguns chegam a falar em neurofilosofia. Concebidos como obras de divulgação, de cunho didático e investigativo, esses livros conseguem atingir um público muito grande. Um exemplo é "O Erro de Descartes: Emoção, Razão e o Cérebro Humano", de Antonio Damasio. Infelismente, porém, os nossos editores ainda não descobriram as potencialidades desse mercado. Entre os poucos que merecem ser traduzidos para o português está também o livro recentemente lançado por Henrique Schutzer Del Nero, "O Sítio da Mente: Pensamento, Emoção e Vontade no Cérebro Humano".

Em "O Erro de Descartes" Damasio fala do substrato neurobiológico da tomada de decisões. Um paciente, Elliott, foi operado com êxito de um tumor benigno que comprimia bilateralmente os seus lobos pré-frontais. O paciente se recuperou bem, retornando para suas atividades cotidianas em casa e no trabalho. A partir daí, entretanto, sua vida transformou-se num inferno. Não apresentava nenhum déficit de linguagem, memória, percepção ou motricidade, mas mostrava-se totalmente incapaz de administrar os seus afazeres. Divorciou-se da esposa e casou com uma vagabunda. Nos negócios, associou-se a um picareta e foi a falência, comprometendo todo o patrimônio familiar, arduamente acumulado ao longo de anos.

 

Mercadores somáticos

Recebendo-o como cliente, Damasio observou que o perfil de Elliott, nos testes de ativação por estímulos emocionalmente carregados, era muito semelhante aos indivíduos com personalidade anti-social. Confrontados com cenas de catástrofes, mutilações, acidentes, doenças desfigurantes e outra barbaridades do gênero, os indivíduos normais apresentam alterações no nível de ativação cerebral, que são captadas como no eletroencefalograma, no ritmo cardíaco ou na resstência elétrica da pele. Já os indivíduos com distúrbios de personalidade não apresentam essas alterações. Damasio cunhou, então, o termo psicopatia adquirida para designar o problema apresentado por Elliott.

A lesão bilateral dos seus lobos frontais não causara dificuldades para a solução de problemas obstratos, como os medidos por testes de inteligência ou de personalidade, mas o havia deixado totalmente incapaz de agir inteligentemente e de tomar decisões no contexto da sua vida cotidiana, principalmente no que se refere ao uso da inteligência nas situações que envolvem os relacionamentos sociais.

O caso de Elliott ilustra o aspecto da atividade mental humana que mais tem resistido à abordagens baseadas nas metodologias das ciências naturais: a inseção e sensibilidade contextual do comportamento - a capacidade de agir diferentemente conforme as circunstâncias. Damasio argumenta que possuímos determinados "marcadores somáticos", reações funcionais do nosso corpo que nos indicam a maneira de agir sob circunstâncias incertas, baseados na experiência prévia. As teorias psicológicas e neurobiológicas, fundamentadas na hipótese do processamento de informação, ou seja, em uma analogia estrita da mente com um programa de computador, têm enorme dificuldade em explicar tais fenômenos.

Grosso modo, a teoria computacional da tomada de decisões pressupõe que os humanos raciocinam e agem com se fossem entes puramente recionais, tal como se utilizassem de uma lógica binária. Caso fosse assim - e dadas as restrições de velocidade dos nossos "processadores", que trabalham em torno de 40Hz, o que é ridículo se comparado aos modernos processadores domésticos - ficaríamos totalmente paralisados, incapazes de tomar qualquer iniciativa, apenas comutando alternativas lógicas. Os dados neuropsicológicos apontam para um sistema que funciona de modo muito mais dinâmico, em que a influência do contexto é de importância primordial e onde as vivências emocionais desempenham um papel extremamente relevante na tomada de decisões. Um grande desafio para a atual geração de pesquisadores do comportamento e da cognição consiste justamente em tentar entender quais são as estruturas e mecanismos cerebrais responsável por essas caractrísticas da atividade mental.

Como o cérebro codifica a informação que recebe do ambiente e quais as estruturas e processos envolvidos na tomada de decisões? A solução proposta por Damasio se insere na tradição neuropsicológica que associa a perda de determinadas funções mentais a lesões em determinadas localizações cerebrais, deduzindo a existência de sistemas funcionais especializados a partir dessas correlações anátomo-clínicas.

 

Auto organização

Completamente outra é a abordagem seguida pelo psiquiatra Henrique Del Nero, coordenador do Grupo de Ciências Cognitivas do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo. Del Nero se alinha entre um grupo de pesquisadores que tenta utilizar métodos matemáticos para decifrar o código, ou linguagem interna, que o cérebro utiliza para representar e processar a informação.

O autor de "O Sítio da Mente" está preocupado sobretudo com os outros modos pelos quais o cérebro processa informação, alem do código binário ou digital, que não permitiria a flexibilidade exibida pela nossa atividade mental, caso fosse a única estratégia adotada. Del Nero argumenta que, para isso, seria necessário um código analógico, sensível em tempo real à dinâmica do contexto biológico, mental e cultural em que o nosso comportamento adaptativo se desenrola.

De fato, existem boas evidências experimentais para isso. Uma das principais vem de uma série de experimentos realizados em 1989 por Wolf Singer e Charles Gray, na Alemanhã. Utilizando técnicas de registro simultâneo da atividade de diversos neurônios no córtex visual de gatos, esses pesquisadores foram capazes de demonstrar que a atividade dessas células se correlacionava temporalmente, em função das características perceptuais dos objetos de estímulos. Se as características dos estímulos eram concordantes com aquelas para as quais as células eram responsivas, os neurônios tendiam a descarregar em sincronia temporal, sincronia que era de natureza oscilatória, ou seja, mmodulada periodicamente. Se as características dos estímulos eram discordantes, os neurônios dessincronizavam, e suas atividades oscilatórias se mantinham independentes.

Esses achados parecem confirmar a hipótese de que um mecanismo de auto-organização, envolvendo sincrinização através de oscilações nas descargas neuronais, pode ser o responsável pelas características deinâmicas da atividade cerebral. A meáfora empregada por Del Nero é a de departamentos virtuais.Uma empresa é organizada em função de departamentos espacialmente segregados e estanques, que funcionam de modo quase automático. As exigências do mercado podem fazer com que esse modoi corriqueiro de funcionamento não seja suficiente, exigindo que os diversos departamentos se associem e passam a funcionar de modo mais flexível, criando verdadeiros departamentos ad hoc.

Um mecanismo semelhante ocorreria no cérebro. Os modos mais automáticos ou "instintivos"de funcionamento são levados a cabo por algoritmos digitais, que correspondem ao funcionamento de grupos de neurônios espacialmente segregados. As exigências de adaptação a contexto variáveis impõe, entretanto, um outro modo de funcionamento, que congrega temporariamente a atividade de neurônios amplamente dispersos pelo córtex e outras estrututas cerebrais, criando verdadeiros departamentos virtuais no cérebro. A tese de Del Nero é a de que o período das oscilações, que possibilitam essa sincronização na atividade de neurônios espacialmente segregados, pode constituir uma espécie de código de barras que processe a informação de modo analógico, dinâmico e sensível às variações contextuais.

É comum, no Brasil, que celebridades acadêmica façam carreira em cima de traduções de obras publicadas no exterior. Esse certamente não é o caso de "O Sítio da Mente". Além de ser original, o livro tem a peculiaridade de permitir múltiplas leituras. Até o capitulo 11, o autor traça um panorama do que se convencionou chamar de ciência cognitiva, ou seja, a empreitada interdisciplinar de estudar cientificamente a mente, e vai introduzindo suas idéias no corpo do texto, para aprofundá-las em notas.

A partir do capítulo 12, Del Nero explora as consequências do seu modelo para a compreensão de fenômenos que vão das doenças mentais à teoria do conhecimento e às perplexidades éticas da nossa era globalizada e neoliberal. O livro constitui-se em um verdadeiro tour de force intelectual, que prende a nossa atenção do começo ao fim, ensinando, divertindo e, principalmente, aguçando a imaginação.

 

 

Vitor Geraldi Haase é médico neurologista e professor no Departamento de Psicologia da UFMG