A SOPA DE CICUTA

Mauro Santayana (publicado no Correio Braziliense 10 de agosto de 1997)

Recente livro sobre a mente e o cérebro, que já se inclui entre os clássicos (O Sitío da Mente, de Henrique Del Nero), ajuda-nos a entender o mundo de hoje. Del Nero, médico psiquiatra, formado em filosofia , é também especialista em Engenharia Eletrônica. Essa pluralidade de conhecimentos, comum nos pensadores antigos, que o credenciou a coordenar o núcleo de ciências cognitivas do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, confirma Descartes: para o domínio de uma ciência em particular, é necessário saber alguma coisa de todas as outras.

Trata-se de leitura obrigatória nestes tempos de neoliberalismo, globalização, endeusamento do mercado e perversão dos conceitos em normas de convívio social. Toda a segunda parte (A Mente Sitiada) contesta o dogma da auto-regulação dos sistemas, que se exacerba na falsa associação entre a liberdade do homem e a liberdade do mercado. Para demolir a ideologia do egoísmo, Del Nero parte da anatomia, fisiologia e funções do cérebro e da mente que o habita. O sólido conhecimento de Biologia, associado aos das leis da Física, é base para as suas reflexões filosóficas sobre a sociedade contemporânea.

O autor demonstra que a solidariedade, considerada fora de moda pelo mercado, se funda também em pressupostos biológicos. A espécie humana não se preservou porque os seus membros competissem entre si, mas porque ela, como um todo, competiu com o resto da natureza.

Por isso, certos comportamentos éticos do homem _ e todo comportamento ético se alicerçá na solidariedade _ são encontrados também em outros mamíferos superiores, sobretudo entre os primatas. Em linha de raciocínio semelhante ao de Viviane Forrester, Del Nero (seu texto é anterior à publicação de "L’horreur économique") mostra o paradoxo cruel do neoliberalismo: sem eliminar os excluídos, a espécie humana está desafiando a lógica natural: ou se incorporam os desempregados ao mercado e à sociedade, ou, então, deve-se eliminá-los. Eis aí uma leitura para o presidente Fernando Henrique, que nisso aproveitaria melhor o tempo que vem dedicando a consultar marqueteiros a proprósito de como mascarar os problemas, e escondê-los da opinião pública até depois da hipotética reeleição, da mesma forma que os consulta sobre a arquitetura de seus óculos.

Com o emprego da mente, aprimorada com a dialética da linguagem, o homem superou a natureza, transcendendo-a com a codificação da ética, a sua mais inteligente criação.E a mais inteligente criação da ética é o estado. O Etado (principalmente o estado Democrático) _ e nisso nos valemos de uma idéia próxima, exposta por Pascal, idéia de que também se valeu Del Nero _ é a forma pela qual o homem subordina a força à justiça. Para o grande pensador francês, ajustiçá necessita da forçá, para impor-se, e a força, da justiça, para legitimar-se. A política, podemos acrescentar, é a associação dos homens para converter a debilidade individual em forçá coletiva, e o Estado a organização da força coletiva sob os pactos da legislação, que fundamentam a justiça.

Daí a insânia dos que preconizam o fim do Estado, o fim da Históris, o fim da Ética humanista. Na verdade, o fim da espécie.

Todos os atos deste governo que nos infelicita são servidores da lógica apodrecida que, conforme a advertência de Del Nero, ou se desmente, voltando à solidariedade entre os seres humanos, ou vai até o fundo, com a eliminação dos descartáveis e diferentes. É um passo adiante de Hitler, cuja Endlosung (solução final) visava a ezterminar todos os judeus, ciganos e comunistas, antes de escravizar os outros povos. A divisa de Hitler era Deutschland uber alles. A nova divisa é a de os rios acima de tudo. Para eles _ ricos alemães, ricos franceses, ricos americanos, ricos brasileiros _ devem ser destinados todos os recursos da Terra e todos os prazeres da vida. Lincoln advertia que a escradidão pela cor da pele só seria autêntica quando todos nós fôssemos escravo do homem mais branco que houvesse no mundo. Pelo novo fundamentalismo, todos nós devemos ser servidores do empresário mais eficiente que houver no mundo. E, como a eficiência do mercado, sendo desprovida de ética, se mede pela esperteza e pela violência, o empresário mais eficientedeverá ser o mais solerte e o mais brutal, capaz de concentrar todo poder econômico e militar do mundo, ao levar os governos pela coleira. Enfim, em linguagem teológico-maniqueísta, é a vitória definitiva de Lúcifer.

Não é de estranhar que os religiosos vejam a nova ordem econômica mundial com pavor. Ao assassinar, nos homens, a idéia da solidariedade, esse neomaterialismo neles assassina a idéia de Deus, para erguer, no grande deserto deste século que morre e ameaça renascer fortalecido com o milênio, a estátua do Bezerro de Ouro, e nela abrigar o espirito de Baal, até que Moisés volte do eterno Sinai, com as suas täbuas da lei.

Para servir a esse pensamento totalitário, o governo atropela todas as normas morais. Está tudo dentro da mesma lógica: quem pode o mais pode o menos. Como o delito maior, que é o do subordinar o interesse nacional aos interesses da nova ordem mundial, já foi cometido, os crimes menores podem ser engolidos, como a mosca na sopa de cicuta. O Sr. Saulo Queiroz conseguiu tornar ainda mais violento o estupro eleitoral que se apresenta como direito à reeleição do presidente da República. Não se trata mais de reeleição, mas de prorrogação . Não se vexam, ele e os líderes de governo no Congresso, em pretender garantir, pela lei, que o chefe de governo faça a sua campanha eleitoral usando todos os recursos do Estado, enquanto se amordaça a oposição, reduzindo-lhe o acesso ao rádio e à televisão. O presidente pode tudo: ameaçar o Congresso, atribuir a mácula da demagogia aos que ali o enfrentam, distribuir favores secretos e ostensivos, manipular poderosas verbas de publicidade afim de afagar certas conciências, e,enfim, usar a máquina administrativa, até na logística dos transportes e dos suportes da campanha. Seus adversários nada podem. Seria mais honrado que sua excelência encaminhasse ao Congresso emenda constitucional tornando vitalício o atual mandato. Com a maioria adoçada que vem mantendo, é possível que o Congresso repita o senado romano, que, em circunstâncias parecidas, deu a Cesar o poder vitalício como ditador.

Para confirmar o raciocínio que abriu estas notas, os brasileiros conscientes se espantaram, mais uma vez, com o regozijo do presidente, quinta-feira ao saber que a taxa de crescimento demográfico se reduziu a 1,36% ao ano. É a ética que reivindica o fim da pobreza com o genocídio dos pobres. Em um país com as dimensões do Brasil e com os seus recursos naturais, haveria espaço de vida para todos os que nascessem. Mas a vida, neste tempos neomaterialista, é, mais do que nunca foi, um bem de mercado. A redução brutal da natalidade , obtida com a castração das mulheres pobres, com recursos estrangeiros, e que nos transforma, em uma só geração, em país de macróbios, é a véspera da extinção do descartavel povo brasileiro, para que o seu espaço no mundo seja destinado aos ricos e necessários à modernidade.

Na mesma lógica da castração, o governo quer que transformemos a nossa maior data politica, o Dia da Independência, em feriado de pipocas e piquenique.

 

Mauro Santayana é jornalista