O Estado de S.Paulo

Domingo, l6 de novembro de l997

Psiquiatra esboça uma teoria da mente humana

 

Que é o pequeno dínamo que permitiu a uma das espécies animais sobrepor-se às outras?

LUIS CARLOS LISBOA

Especial

 

Um sistema nervoso elementar como o da lagartixa é baseado, como o de qualquer ser vivo, na sua capacidade de fugir ou lutar. O mundo da natureza pede respostas rápidas de preservação da vida. Os sistemas nervosos dos animais tiveram, para sobreviver, de se adaptar a ameaças terríveis. O bípede coberto de pelos que um dia surgiu no mundo, lento e frágil diante de um tigre, não tinha condições para isso nem quis viver fugindo dele. A lógica dessa alternativa - fuga ou luta - dava nele lugar a uma série de estratégias para lidar com tigres. Podia armar-lhes emboscadas, ou enfrentá-los com objetos, drogas e inteligência. Para isso era preciso integrar um grupo que tivesse os mesmos temores, e fazer planos com ele. A comunicação entre esses indivíduos dependia da linguagem, de acordo e de comando. O intermediário entre o ambiente que os sentidos perceberam e a ação necessária à sobrevivência, fosse a fuga ou a luta, tornou-se conhecido como mente humana.

É mais ou menos assim que o psiquiatra, mestre em Filosofia e responsável pelo Grupo de Ciência Cognitiva do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, Henrique Schützer Del Nero, introduz a personagem principal de seu livro O Sítio da Mente, preparando-se para explicar à luz dos últimos conhecimentos da ciência o fenômeno que a natureza mais se esmerou em criar, e que é considerado unanimente pelos que se debruçam sobre a vida natural na terra como sua obra máxima neste mundo: o cérebro humano, a mente do homem, o pequeno mas extraordinário dínamo que permitiu a uma das espécies que habitam o planeta sobrepor-se a todas as demais - e o que é notável -, a ter o atrevimento de fazer perguntas e dar respostas sobre si mesma.

A mente é, por natureza, uma regra de convocação e solução - regra dinâmica e código de convocação, diz o autor -, jamais uma estrutura estática que possa ser a priori desenhada para tratar desse ou daquele problema. Ela está no cérebro mas é um conjunto de funções que, bem entendido, pode ser replicado em máquinas e em tantos meios de suporte quantos forem capazes de manter a lógica de recrutamento e conexão de elementos. O cérebro é um hardware, a mente um software. A partir dessa compreensão, Del Nero mostra, num capítulo um pouco mais árduo para o leitor comum porque árdua é a questão, de que modo se deu a substituição do behaviorismo pela ciência cognitiva como teoria da mente. Tratando da disfunção mental, diz ele que "grande parte das ilusões que se vendem hoje em dia sob o rótulo de tratamento para a mente encontra ouvidos porque não se educam e instruem as pessoas com uma teoria série da vida mental".

Alguns capítulos de seu livro se agrupam no estudo de eixos básicos da psiquiatria que podem auxiliar "na obtenção daquilo que dissemos ser uma pista de que a mente não está de posse de todos os seus instrumentos de ação".Outras páginas tratam do mecanismo das patologias e dos problemas da atenção, da linguagem, da percepção, da personalidade e da memória. A última função examinada é o sonho, que pode ter importância fundamental na abordagem da mente, mas não há evidência até hoje, diz a obra no seu extraordinário realismo, de que o sonho possa ser usado como instrumento diagnóstico. Seu estudo mostra que a consciência tem uma parte fortemente ligada ao cérebro e outra ao meio.

A última parte de O Sítio da Mente é sobre a mente sitiada. É uma avaliação de resultados e é também uma exposição sobre o que aconteceu com esse conjunto complexo criado pela seleção natural, ao fim de muitos milênios. A mente está sitiada quando privilegia um discurso de opinião e de doutrinas rivais, quando o que está em jogo é um problema biológico de adaptação e seleção. Os que fazem da ideologia um motivo de credo e não de ciência acabam por não perceber que, se ela é a personalidade do corpo social, ou esse corpo se torna uniforme e equilibrado ou morre devido à assimetria de seus membros.

Para Del Nero é urgente lembrar que, se temos um planeta que nos fornece energia, alimento e ar para respirar _, obsessão moderna, de feitio unilateral _, também a sociedade é um prolongamento da biologia, e a mente com ela. a soberania do mercado é discutível. Fosse ele senhor das decisões sobre a ciência, estaríamos até hoje agarrados a mecânica da Terra no centro do universo, porque ela convinha mais à época que predominou. Em resumo, a idéia de que a satisfação pode ser critério de avaliação de teorias é um arremedo de biologia evolutiva. E não reconhecer a necessidade de resgate da massa humana excluída do processo constitui ameaça à espécie.

O novo tempo que surge na passagem do milênio não poderá desistir da racionalidade que domina e aplaina a emoção. Essa mesma racionalidade que introduz a salvaguarda para que o crescimento seja pleno e harmonioso, não apenas cronológico. Uma racionalidade que coloque a ciência a serviço da transformação do ser humano, e não a faça apenas ferramenta geradora de tecnologia de bem-estar. E não se trata de abandonar uma visão espiritual da mente _ de vez que aquilo que se pretende espiritual é com freqüencia confusa superstição escapista _, mas sim de reconhecer a como que sacralidade da natureza biológica.

Um livro que espõe em sua grande parte a maneira como a mente emerge no cérebro humano dedica uma exposição final à forma como essa mente pode verse sitiada por uma freqüência de falsas pressuposições que ainda predominam em nossa época. Se ela já não é assediada pela ilusão de que o mundo e o universo giram em torno dela, é chegado o tempo dela girar em torno do cérebro, o que equivale a liberdade. Aí, ser e dever, natureza e moral, deixam de ser antagonismo gerados pela natureza e a cultura, para serem forças que se equilibram na mente biológica do ser humano.