A mente sitiada por Del Nero

Mente e cérebro são, ainda hoje, entidades científicas distintas. Em uma época em que transplantes de coração são comuns, este parece ser, popularmente, o principal suspeito de sediar nossas emoções, tão raros são os cartões de dias dos namorados portando imagens de nosso sistema límbico. Se esta cisão é incômoda do ponto de vista científico, ela é desesperadora para os psiquiatras. Sem poder escolher entre ser médico somente da mente ou do cérebro, invejando os extremos de seus colegas neurologistas e psicanalistas, o psiquiatra coloca-se frente a este dilema em cada momento de seu trabalho. É essa a força que move Henrique Del Nero, autor de "O Sítio da Mente" (Collegium Cognitio, São Paulo, tel. 011/211.4005, R$ 40,00). A ciência que estuda conjuntamente o cérebro e a mente é a ciência cognitiva, terra de ninguém, localizada entre as ciências exatas, humanas e biológicas, sem poder prescindir de nenhuma delas. Por isso Henrique Del Nero, depois de formado e especializado em Psiquiatria na USP, ainda formou-se em filosofia, escreveu uma longa dissertação de mestrado sobre o problema da vontade, e foi ainda aprender ciências exatas na Escola politécnica, construindo um cabedal de conhecimentos em bases firmes para liderar hoje os estudos de ciências cognitivas na Universidade de São Paulo.

O livro atinge múltiplos objetivos, sendo divulgação e autêntica contribuição científica em proporções ideais. Uma primeira parte apresenta o cérebro e a sua relação com o computador. Destacando diferenças e incompatibilidades, vai certamente interessar todos aqueles que vêm no computador uma máquina pensante. Diferenças concretas são evidentes: computadores podem ganhar partidas de xadrez de todos os jogadores do mundo, mas estão incapacitados de ficar felizes por isso. É o que expressa o autor, que diz que o semáforo só será realmente inteligente se for capaz de transgredir todas as regras com as quais foi programado para deixar passar uma ambulância. Para expressar essa idéia o autor descreve, resumidamente, o funcionamento cerebral, da fisiologia neuronal até o armazenamento de informações no cérebro, essencialmente diferente e muito mais complexo que o método binário dos computadores.

Esboçado o cérebro, uma segunda parte vai apresentar a ciência cognitiva, que estuda este artefato neuronal que diz consciente. Sem perder o paralelo com a máquina, o livro passa a tratar do problema da representação mental e da noção de realidade, dicotomia que define os limites da psicose e torna o tema no mais interessante assunto científico da atualidade. Foi ponderando sobre este assunto que a revista Scientific American chegou ao exagero de dizer que o cérebro é o sistema mais complexo de todo o universo. Neste ponto de seu sítio da mente, Henrique Del Nero, aponta todas as armas para o problema, descrevendo cada uma delas, das lógicas à teoria do caos. Recheado de exemplos didáticos e analogias esclarecedoras, o livro evoca até mesmo a terceirização para tornar compreensível o problema.

Só após essas duas partes que pode entrar o médico, apresentando o problema cognitivo como visto de um consultório. O cérebro é um órgão de nosso corpo e pode, genericamente falando, ficar doente. Poucos desvios patológicos são tão desagradáveis de se admitir quanto os mentais. Hoje toma-se vitaminas lipossolúveis com saudável orgulho mas, em uma ignorância cultural, toma-se antidepressivos e ansiolíticos com uma tola vergonha. A idéia de ser portador de uma disfunção cerebral é um dos maiores temores humanos e o seu extremo oposto, o elogio da loucura, uma grande maldade com quem apresenta esses desvios, que não são nada agradáveis. Como um contraponto atual de Timoty Leary, que fazia a apologia do LSD na década de 60, o autor fala de saúde mental, atualizando nossas idéias para uma época de roqueiros quarentões de cabelos curtos. O autor desmistifica a insanidade funcional, desenhando as fronteiras médicas da sanidade mental. Trabalhando com primitivos de fácil compreensão, como humor e emoções, a noção de psicose entra em cena na fronteira entre o cérebro e a mente. Neste ponto há uma série de relatos de pacientes didaticamente estereotipados apresentando diversos sintomas da psicose, um interessante relato da experiência clínica do autor, ensinando àquele que não teve a oportunidade de o saber pessoalmente, o que é uma psicose. Como a psicose é assunto fronteiriço entre a psicologia e a medicina, a sua didática descrição é contribuição fundamental para a nossa cultura.

Na penúltima parte do livro o autor volta à primordial dicotomia entre cérebro e mente, apresentando as funções primárias da mente, em relação mais estrita com o hardware neuronal. Assim são tratadas as afasias e desvios de atenção, memória e sonho. Transparece aqui o homem evolutivamente selecionado. Não refere-se apenas ao homo sapiens sapiens, mas também a seus primórdios evolutivos. A verbalidade é aqui o elemento distintivo do ser humano. Aquisição evolutiva que permitiu ao gênero humano saltar das árvores para a condição de caçador organizado, em sua aventura, desde os tempos em que começava a lascar seixos, até mandar robôs para Marte. Neste tratamento aparece o problema da personalidade e da psicopatia. Quanto à personalidade, nos é ofertada uma interessante classificação tridimensional, medindo as personalidades em capacidades de tomar iniciativas, sentir e aquietar-se. Curiosamente, estes três parâmetros apresentam opostos igualmente desejáveis, a capacidade de tomar iniciativas se opondo a capacidade estratégica e a sensibilidade à resistência emocional. Os desvios da personalidade vão culminar no conceito de psicopata, explorando corajosamente o perigoso assunto da recuperação dos amorais e das bases biológicas da personalidade, assunto afeto, dentre outras áreas, ao Direito penal.

A última parte é o ponto culminante, que apresenta a mente exposta em sociedade. É uma pena que este precioso manjar esteja disposto neste ponto, para o leitor que já galgou quase quatrocentas páginas do livro. A convivência social surgiu com o desenvolvimento intelectual humano. Foi somente quando o homem precisou se organizar em bandos para caçar e superou o estádio da indústria acheulense que pode mostrar quanta diferença pode fazer um bom cérebro. Nesta parte fica evidente a vantagem de ser o autor um brasileiro e de nossa época, pois a sociedade em que está imerso o cérebro é a nossa, fim do século XX no Brasil. Como um médico que, por dever profissional, não pode se dar ao luxo de evitar assuntos delicados se forem patologicamente relevantes, importantes aspectos de nossa sociedade são ressaltados. O autor mostra uma face da sociedade que, as vezes no afã de ajudar, inquina a saúde mental. "Consenso superficial" e "tirania da ignorância" são expressões usadas para descrever uma postura mística e mediaval que tomou conta de nossa sociedade neste final de século. Um misticismo fácil e pouco profundo, tão superficial quanto pode ser, tomou o lugar da ciência e até mesmo da teologia. É o desabafo de um homem que, podendo medicar, vê diariamente as pessoas tornando-se cada vez mais insanas, em sua própria ignorância e superstição. Fala rapidamente da miséria, do desemprego, economia e política. Lembra-nos que a sociedade brasileira não é como um "quatro de julho", euforia e fogos de artifício. Fala ainda sobre o ridículo de colocar a ciência à mercê da satisfação ao consumidor, e sobre a proliferação dos métodos de auto-ajuda.

Quando a mente é colocada em contato com a cultura surge a oportunidade para o autor abordar o tema da vontade. A vontade aparece no livro como foi descrita por Kant e de forma muito parecida com a que foi desenvolvida por Hans Kelsen, onde a vontade é sinônimo de poder. A vontade kantiana, a impulsão consciente força e motivação de agir contra o desejo, aparece descrita com relação às suas bases neuronais. Esforço hercúleo de análise e síntese, este trecho apresenta importante contribuição científica e filosófica do autor.

O livro de Henrique Del Nero é bibliografia indispensável a todo aquele que se interessa pela mente ou pelo cérebro e fundamental para quem não pode se dar ao luxo de entender parcialmente nosso comportamento cognitivo.

Alfredo Portinari Maranca

Engenheiro, foi professor da Poli-USP; mestre em engenharia/Poli-USP;

é consultor e especialista em computação cognitiva.