O CÉREBRO HUMANO, MAIS UM ARTISTA DO QUE UM ADMINISTRADOR.

( Caderno de Sábado, jornal da tarde 31-05-97).

O Sítio da Mente, de Henrique Schutzer Del Nero (editora Collegium Cognitio, 512 pags, R$40,00), é um livro aprofundado e poderoso, mas um pouco eîron. Os gregos chamavam eîron à personagem que escondia as forças. Não falo da expressão do autor, que é claríssima. Nem da paciência de explicar, e sobretudo de alertar. Não falo da simplicidade, que faz o livro estar à altura de qualquer mortal. Falo de uma coisa que todos já devem ter reparado, e que esse livro analisa de maneira exemplar. É que, num certo sentido, não entramos de frente, mas de costas no futuro. Pois nada sabemos, e o acaso não nos deixa saber nada de antemão. De qualquer frorma, nos preparamos. Olhamos para o futuro com ansiedade ou otimismo, dependendo da hora. A ansiedade é um velho e estranho volume, uma espécie de orgão indesejável. Querem alguns que seja natural. E o otimismo são entusiasmos, colorações, que vão pautandonossa ação.

Ao contrário da ansiedade, o otimismo não é conteúdo. É um acompanhamento melódico da vida. Como tal, ele nos tira de nós mesmos, para nos devolver a nós mesmos com um pouco mais de confiança. Ele faz com que nossas teorias (teorias sobre nós) acabem dançando no compasso que quisermos. O otimismo é uma celebração de nossas crenças. Ora, essas teorias, que cada um de nós produz para viver melhor, costumam ser poéticas, ou seja, não tem nemhum fundamento fora de si próprias. Estariam certas? Sim, certas na medida em que espantarem a ansiedade. Certas, mas por progmatismo interior. Dessas crenças participam a supertição, a autopersuasão, a paixão de si, a crendice, a loteria, a quimera, o consumismo, etc. Todas essas coisas, ao fim e ao cabo, dizem respeito a nosso panorama mental. Não constituem sonhos. Representam decisões interiores de ver a vida dessa e não de outra maneira. Esse é o seu conteudo. Traduzem principalmente uma ilusão da linguagem.

Por isso é que o livro de Del Nero nos faz uma pergunta delicada, que esconde seu veneno: que tal sabermos um pouco do que a neurologia diz sobre esse assunto? É uma pergunta socrática, ou seja, é uma pergunta que vai ao fundamento das coisas. Pois, de fato, se quisermos conhecer alguma coisa, devemos perguntar a quem entenda.

O conceito de mente, contudo, parece ter o destino dos conceitos de futebol ou do sexo: todos julgam entender um pouco.Porque a mente nos é íntima. Nem precisamos apalpá-la. Ela não se ausenta nunca.Quem pode saber dela melhor do que nós? O que Del Nero nos mostra, em relação a tal ingenuidade, é que a mente só nos é íntima naquilo que ela expede, concede como nossa intimidade. De resto, não temos intimidade com ela, somos leigos. E ai se define também o campo do transcendental.

O Sítio da Mente é um livro que procura mostrar a interdependência entre nossos processos mentais e o trabalho cerebral. Mas não fica por aí. Assim como a mente não é nossa cúmplice, o cérebro também não é um órgão terceiro e cinzento. A revelação dessas duas coisas _ cérebro e mente _ implica mil outras correlações.

Del Nero não é só psiquiatra. É também pesquisador e coordenador do grupo de ciência cognitiva da USP. Como os processos mentais envolvem toda nossa vida inteligente, e são, de certa forma, envolvidos também por ela, Del Nero orienta seu trabalho no sentido de uma patologia social, pois o cérebro pode também começar alhures. Algo fora de si próprio. Estamos diante, portanto, de uma engenhosa reflexão terapêutica. E a receita final aponta para a mudeança da cultura. A cultura é patogênica. Primeiro, porque mente. Segundo, porque afasta a vida. E não me venham dizer que aí temos mais um Simão Bacamarte! O "alienista"de Machado, a despeito da clínica, inspirava-se em discursos, oferecidos pelo livre jogo da quimera. E Fel Nero, ao contrário, traz documentação e swenso de laboratório. O que não quer dizer que só se aferre à biologia. O cérebro, para ele, não é ponto final, não é profissão de fé de fisiologista. Ao contrario, ele seria um elo, talvez o mais importante, por ser o mais maltratado, o mais desconhecido.

Se as nossas supertições, transformadas em crenças, danificam nossa vida, é evidente que alguma coisa nisso caberá à linguagem. Por certo, não apenas a ela. Porque o problema não é só formal, nem se reduz a semantismos ou mitos. Mas, de qualquer forma, uma parte de nossos infortúnios vem das crenças a que nossa lingua da sentido.Mas não adianta corrigir a linguagem. É preciso entender os seus limites, e corrigir as coisas. A menos que entendamos a linguagem como a própria experiência. Para que isso aconteça é preciso entender a relação entre os processos mentais e os cerebrais. A linguagem seria essa relação.

Nada de estranhar, portanto, a importância que Del Nero atribui ao trabalho dos sinais, dos símbolos e à nova propósta das ciências cognitivas. O livro tem cinco partes: a fôrma cerebral (I), forma e conteúdo mental (II), a mente alterada (III), a mente organizada(IV), a mente sitiada (V). A linguagem atravessa a todas elas, como um elo contínuo, algo como que reproduzindo, por analogia, o que fazem os neurônios e as sinapses, quando levam para o cérebro as formas que devem reprogamá-lo, com vistas à eficácia criadora do homem. A idéia de que a mente é sempre criadora (associada à ameaça de parar de sê-lo) é uma das peças centrais de O Sítio da Mente. Porque a cultura ou pode multiplicar as mentes ou pode acabar com todas elas. Portanto, a cultura tem papel determinante. Sua vocação, como a do cérebro, é a produção da contínua novidade, e esta não é a condição de A ou B, mas a da própria estrutura do mundo, onde a descontinuidade é o traço essencial. Pois a linguagem não pode repetir.Ela qualifica a experiência, é a experiência.

Del Nero amplia o conceito de linguagem. Isso implica uma crítica da linguagem. Ampliar é refazer, ultrapassar.

por certo, a linguagem qualufica a experiência, vale dizer, nosso encontro com o mundo. Mas como qualifica a experiência? Como a linguagem pode melhorar nossa vida se ela não passa de um instrumento para se dizer o real? Esse é o âmbitoda crítica.

A este respeito, as observações do livro são esclarecedoras. Para Del Nero, a linguagem não apenas comunica, mas "produz"o homem. Comunicar, no caso, valeria por "asseverar", ou seja, dizer sim ou não a um conteúdo, a uma proposição. Na vida, a toda hora, nós afirmamos ou negamos, mesmo que de boca fechada. Mas o tipo de programa em que se afirma ou se nega alguma coisa seria bem menos vital e criativo do que as "pinturas"que o cérebro desenha em nossa mente, e nós não percebemos. Essas figuras constituídas de milhares de outras, é que dariam base a uma verdadeira álgebra de relações, por meio das quais o cérebro formula hipóteses de compreensão do mundo. É o que Del Nero entende como a função icônica da mente humana. É uma visão antigramatical. Até mesmo antiocidental.

A idéia que a linguagem comunica na base de um sim ou um não nos leva à idéia de que a linguagem não apenas sintetiza, mas viabiliza conteúdos, e ambas essas operações são entendidas como mediações, transformações de uma gramatica.Isso, que tem lógica, não deixa de conter um mito. Porque reforça a tese de uma autonomia da linguagem, defendida por boa parte da linguisticae da teoria da comunicação. Del Nero, ao contrário, parte da idéia de que a linguagem é a forma do inteiro processo mental, efetivada entre a dinâmica do cérebro e da cultura. A gramática, portanto, não viria ao caso para aquilo que Del Nero tem em vista, ou seja, a possibilidade de fazer, da compreensão da mente, uma forma de intervenção humana que vise a tirar o homem dos mitos em que ele tem metido para desgraçar a sua vida, e a dos outros. Se a estrutura ou a gramática de uma lingua fosse relevante para se viabilizar a felicidade, nós já teriamos percebido isso há muito tempo. Por certo, existe uma criatividade das linguas. Mas que só vale para as linguas. Não resolve problemas. Não nos faz compreender a vida. Em o Sítio da Mente, a linguagem é forma essencial da experiência. O melhor dela, sua criatividade, está em sua "quimica"reação com o universo, e isto é mediado pela ação do cérebro. Não que o cérebro seja "bonzinho": ele depende da calimentação que tenha, dos conteúdos que lhe serão oferecidos.Dependendo do caso, nós podemos viciá-lo, danificá-lo, e a despeito de usarmos a mais "sofisticada"das linguagens. O cérebro terá, portanto, certa dimensão ética. Seu desejo é entender, multiplicar, criar. É verdade que ele tem o gênio da administração. No entanto, ele é mais um artista do que um operador. Repetir é uma de suas possibilidades. Mas sua vocação é inventar. Por isso, é que Del Nero insiste em que o trabalho do cérebro não é ficar distinguindo o certo do errado. Não. O cérebro responde a situações do mundo, abrindo-nos um painel de constelações, de possibilidades, ou, como diz Del Nero, abrindo-nos para as infinitas formas do "talvez", as únicas que podem fazer predições e trazer de fato novidades. E essas novidades não são frescuras de futuristas. São essenciais para a saúde. A vida mental é um rio de hipóteses. Não existiriam hábitos perfeitos.Toda repetição se deixa atravessar por um "talvez". E boa parte dos males de nosso tempo estaria na ocultação desse princípio, e na violência que se ostenta contra ele. É ler o livro para ver.

Antonio Medina Rodrigues é professor de lingua e literatura grega da USP