A PATOLOGIA DO NEOLIBERALISMO
E A UTOPIA DE UM ADMIRÁVEL MUNDO NOVO
Henrique Schützer Del Nero
Escola Politécnica da Universidade de São Paulo
Departamento de Engenharia Eletrônica
LSI-USP
Falar de patologia realmente parece coisa para médicos e não me sinto nada incomodado por participar de fórum de tal relevância, colaborando com algumas idéias que podem auxiliar no debate urgente sobre alternativas macroeconômicas para nosso país, para não dizer de todos os outros quantos se encontram em sérias dificuldades nesses tempos de globalização, volatilização, instabilidade, incerteza, além de uma aparente "ditadura de partido financeiro-monetário único", os EEUU, agora não mais ameaçados pelo perigo vermelho senão pela nova Rússia, desmantelada às pressas e que nos faz saudades (não no centralismo e estatismo exagerados), ao menos pela pureza de seu ideal, no dizer aproximado, não-literal, de Eric Hobsbawn pelo menos lá, ou pelo menos o socialismo tinha uma causa e não dissociava Ética de Economia. (Folha de São Paulo, 1o de Janeiro de 1999 p.12)
Sim, o partido único é agora a pax americana senão a romana - contra a qual se ergueu apenas uma brava aldeia de gauleses na majestosa obra de Gosciny e Uderzo (Asterix) -, que além de impor o poderio da força, age sutilmente, desde de Paul Volcker à frente do Federal Reserve, manietando o dólar, juros e, por que não, indiretamente, bolsas e expectativas, de tal sorte que os capitais, produtivos e especulativos que se nos aportam, e também aos outros emergentes de calibre semelhante ao Brasil, rapidamente se refugiam nos seguros títulos do governo americano, à menor suspeita de que as taxas de juros escorchantes apregoadas por um FMI talvez algo ultrapassado, como modo de readquirir confiança no "investidor-especulador"estrangeiro.
Pela natureza deste artigo-contribuição ao Fórum sobre Políticas Macroeconômicas Alternativas, não pretendo seguir o estilo acadêmico estrito de fundamentar toda quanta afirmação com longas explicações e fontes, sobretudo porque tudo quanto, no devido formato, já se encontra em fase de redação de meu novo livro, intitulado "Mente, Moeda e Moral: uma trindade na virada do milênio". Espero deixar nas próximas linhas os eixos de discussão, confesso não-triviais, para que o leitor-cidadão possa, conjuntamente com literatura sugerida suplementar, adensar sua opinião sobre o chamo de patologia e o que chamo de utopia. Nem bem a patologia é doença concreta mas virtual, e a utopia não nos obrigará a como o Presidente Fernando Henrique a amar o impossível, senão amar o verificável, refutável, sistematizável enfim aquilo que diz respeito à ordem dos fatos da ciência e não da fé ou da opinião política aqui incluída como opinião, debate saudável porém apaixonado e destituído do minimalismo racional da boa ciência que, se mostrou que infringir a camada de ozônio e matar baleias é politicamente incorreto e desastroso, pode também mostrar que manter 25% da população de Homo sapiens sapiens excluídos (segundo relatório do Banco Mundial, bastante anunciado na semana passada) pode ser ainda mais precocemente arriscado para a espécie humana.
A patologia neoliberal é virtual bem como a mente o é. Daí chamar-se psiquiatra para tratar da doença de uma mente cada vez mais volúvel que emerge do cérebro e da moeda, cada vez mais volátil que emerge da riqueza ou dela deveria tomar algum empréstimo no sentido claro de lastro ou controle melhor fora dizer seignoriage no jargão economês.
Sigo, a partir deste ponto três linhas de argumentação que, conjugadas, podem lançar semente no debate acalorado e inócuo sobre o que fazer de nós nestes tempos que se avizinham, não só para Brasil, mas também para os países emergentes, África excluída e até nos países desenvolvidos. Lester Thurow mostra em seu "O Futuro do Capitalismo"(Ed. Rocco pp. 278-286) que as estratégias keynesianas (um dos cérebros ou mentes brilhantes que deslindaram as causas do crash de 29 e que segundo Luiz Gonzaga Beluzzo, continuam a operar nas recentes crises Tigres asiáticos, México, Argentina, Rússia e Brasil in Carta Capital de 29/09/99 p.43) de superação de ciclos recessivos e de desemprego, à par das três potências EEUU, Japão e Alemanha já não surtem efeito na quarta delas, a França, sem poder de exercer autoridade monetária e inversões estatais que bloqueiem efeitos perversos da migração indômita do capital financeiro especulativo, sem nação, sem controle e sem pudor (o sem pudor e meu).
Três são os pressupostos que norteiam minha argumentação:
PATOLOGIA E UTOPIA
Colocados os três pressupostos acima defendo algumas idéias baseadas em matemática não-linear, complexidade, teoria dos jogos, criticalidade, auto e hetero-organização, que além de servirem de modelos para a relação cérebro-mente, são também modelos excelentes para a relação entre riqueza-moeda, com algumas conclusões acerca da urgência de se instaurar alguma forma de intervencionismo corretor no chamado mundo globalizado.
Um sistema que obedece a leis rígidas e deterministas tende, na física clássica a ter predição e equilíbrio após uma série de eventos ou de instantes de tempo. Sistemas Lineares, de certos tipos, se deixados ao sabor de sua organização tendem a ser previsíveis e se auto-organizar de maneira, chamemos funcional-benigna.
Ora, a grande contribuição da Física e da Matemática modernas foi justamente mostrar que essa linearidade não é sempre presente, que os sistemas não-lineares e/ou complexos (não são sinônimos um do outro) e que os fenômenos que agregam múltiplos agentes (esses a Psicologia e Psiquiatria, bem como a Sociologia, já mostraram ser longe de simplesmente racionais seguidores de árvores decisórias de von Neumann e Morgenstern, mas caprichosos e voláteis, além de volúveis e levianos) não podem simplesmente ser deixados ao sabor do mercado, do laissez-faire/laissez-passer, pois a coisa pode gerar um sem-número de erros fatais de difícil controle. (Diz Hobsbawn em seu livro "Era dos Extremos o Breve século XX, Ed. Cia das Letras) que os países que não submergiram ao crash de 29 foram justamente aqueles que por herança de normas fundamentais, princípios mediatos e gerais de intervenção, já praticavam keynesianismo sem o saber o que os poupou dentro de certos limites e arrasou a maior potência da época os EEUU. Não deixa de ser irônico que esse mesmo Keynes, um dos artífices de Bretton Woods que nos pós-guerra pretendeu organizar um modo de intervenção que evitasse e regulasse crises, tenha sido um dos pais desse triste FMI que hoje teima em combater capital volátil com recessão desenfreada, corte público brutal e juros na estratosfera. (Não me alongo nesse ponto porque certamente há que o faça melhor, colocando-me apenas como leitor/espectador que não gostou muito daquela triste entrevista em inglês do chefe da missão do Fundo em janeiro deste ano, Pedro Malan ao seu lado, homem digno, com ar solícito e agradecido/subserviente, e que meses depois, ele, o FMI, patrocina moratórias antes tidas como violações capitais.
Há que se fazer justiça: no extenso debate sobre a repactuação de um sistema que corrija ataques especulativos, há quem defenda moratórias e empréstimos-ponte rapidamente conseguidos, por agências como FMI ou outras, de tal sorte que se proteja o país acossado. Leia sobre isso no também último relatório da CEPAL sobre a crise nos países latino-americanos em 1998-99)
Mas o que devo mostrar é que a noção de patologia é sinônimo de disfunção, donde o neoliberalismo - ainda que o neguem todos quantos o praticam, agora até o Sr. Antonio Carlos Magalhães e o Sr. Maluf se tornaram homens de "esquerda" comprometidos com a causa dos desvalidos e esquecidos dessa e doutras terras! é patológico porque desconhece principio físico-matemático que exige intervenção em determinados processos para que não se criem desvios.
Pudera responder-se que é esse justamente o receituário neoliberal atual: Francis Fukuyama em seu último livro The Great Disruption: human nature and the reconstitution of social order, Ed Free Press, abranda e adoça suas teses sobre a importância do Estado, porém creio que como defende Norberto Bobbio, ainda existe campo para uma distinção entre direita e esquerda e, ainda que não decline aqui, na condição de técnico-cientista minha opinião (justamente porque pretendo transformá-la em conhecimento), creio que o sujeito de direito e a liberdade individual, livres mercados e menor intervenção estatal são necessidades, mas privatizações apressadas e receituário obsessivamente contracionista em nome de um déficit que se multiplica exponencialmente pelos juros impostos pelo "mercado" e pela "prudência" não constituem o governo que me parece mais racional e de melhor futuro.
Tanto é que as elites (as de Lasch, não as de Ortega y Gasset) já parecem preparar Ciro Gomes como um príncipe Salina (muda-se algo para se continuar tudo igual, diria pior, porque continuo crendo que Fernando Henrique é um homem dotado, serio e que talvez, por razões de Estado que só cabe ao Príncipe conhecer, frustrou nosso sonho de um governo social-democrático).
Ressalve-se também que a figura do mentor intelectual de Ciro Gomes, Roberto Mangabeira Unger é homem de idéias respeitáveis e sólidas, que não me parece estar ciente da passagem desastrosa do Sr. Ciro pelo Ministério da Fazenda o que lhe vale em certas rodas a injusta alcunha de um Collor melhorado. Não, Ciro Gomes não me parece candidato ideal, mas está longe de Fernando Collor, nódoa de nossa história recente.
Se já falei de patologias, que nem sempre são no caso cérebro-mental, depressões, ansiedades, fobias, mas que no plano político podem ser falta de decoro, falta de instituição, coorporativismo, nacionalismo ultrapassado, etc., falo agora de utopia.
FHC disse certa feita amar o possível. Clóvis Rossi em sua coluna Folha de São Paulo retrucou, ato contínuo, que governar um país de miseráveis é sobretudo flertar com a utopia. Concordo com a poética sempre precisa de Clóvis Rossi, mas fico com FHC, porque a ciência ama o possível, o refutável, o verificável, prova, comprova, é derrubada e não é manobra regimental nem apupo, nem abraço de relator e presidente do Senado.
Sim o amor pelo possível faz com que a Teoria dos Jogos e as modelagens de equações de tempo discreto nos permitam simular populações de seres "sociais" interagentes, alguns altruístas, outros egoístas, e ver no que dá.
Em artigo do ano passado (embora a literatura a esse respeito seja vasta - quer a matemático-computacional, quer a de sociedades artificiais, quer a de altruísmo biológico como arma genética que procura fazer do reino de Deus o reino deste Mundo no feliz título de Aleijo Carpentier - na revista NATURE, 1998, vol 393, 11 de junho, pp. 517-519 por Regis Ferrière (comentando em editorial- chamado "Help and shall be Helped") o artigo Evolution of Indirect reciprocity by image scoring de Martin Nowak e Karl Sigmund às pp. 573-577 chama a atenção para um fenômeno não-linear curioso.
Imagine que uma sociedade é formada de duas classes de indivíduos facilmente modeláveis em computadores, claro não dois mas milhares egoístas e altruístas. Cada um sabe das ações do Outro. (Há um selo na testa que faz com que cada vez que se acuda alguém se ganhe um selo, cada vez que não acuda não se ganhe.) Passadas várias gerações, a estratégia altruísta é que a redunda melhor estabilidade e ganho para o grupo como um todo.
Porém, quando falo, passadas várias gerações, deve-se supor que:
Pois bem, modelados esses dois outros cenários chega-se às seguintes conclusões:
Posto isso, não cabe grande digressão de como são feitos esses modelos, como é matemática que os norteia, quais são os pressupostos biológicos que os endossam. Cabe apenas dizer que é possível se Ter um admirável mundo novo, sem patologia, com mais igualdade e sem ser utopia, mas boa ciência. Porém, os dados acima nos apontam para:
Creio que a ciência nos aponta nessa direção. A sordidez humana, particularmente aquela ligada ao grande capital, não permitirá que uma ONG ou uma taxação de capitais impeça a instabilidade e decadência acelerada de valores e aumento da exclusão. É preciso usar a força, das armas, do humor ou da razão.
Pascal dizia que sonhava que o que fosse justo fosse forte e que vieram os poderosos, transformaram tudo, e fizeram que fosse forte fosse justo. A Biologia Evolutiva, a Matemática e a Complexidade, somadas a um pingo de compaixão podem fazer com que o que seja justo seja certo e racional. Não vamos acabar com a camada de ozônio e vamos acudir depressa o Timor, o temor, nossa mesquinhez, nosso coração de pedra perante o semelhante no dizer do Cristo.
"Nesse tempo, muitos hão de se escandalizar, trair e odiar uns aos outros; levantrar-se-ão muitos falsos profetas e enganarão a muitos...e por se multiplicar a iniqüidade, o amor se esfriará de quase todos...aquele, porém que perseverar até o fim, este, será salvo...então virá o fim"(Mateus 24, 10-14)
Certamente a salvação é terrena, a perseveração é engajamento e o fim...bem o fim é a Biologia que nos criou há 100.000 anos, teimou em nos dar linguagem e cultura e um dia se nos precavermos, distante, do contrário mais adiante. Seremos extintos. Pelo menos que nossa herança sapiental seja digna do nome. Quem é sapiens não deixa o outro à mingua.
Bibliografia recomendada
Henrique Schützer Del Nero é médico psiquiatra, formado pela Universidade de São Paulo, Bacharel e Mestre em Filosofia pela USP e Doutor em Engenharia Eletrônica (Engenharia de Sistemas) pela Escola Politécnica da mesma Universidade. Tendo fundado e coordenado de 1990 a 1997 o Grupo de Ciência Cognitiva do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, atualmente é professor colaborador de pós-graduação da Escola Politécnica da USP (Grupo de Biomatemática e Neurociência Computacional), além de autor de diversos trabalhos científicos sobre cérebro e mente e dos livros
O Sítio da Mente: pensamento, emoção e vontade no cérebro humano e O Equilíbrio Necessário (ambos pela Editora Collegium Cognitio tel./fax 0xx11-211.4005). Endereço para correspondência: Av. Brig. Faria Lima, 1811, conj. 911/912 São Paulo, SP, BRASIL, CEP 01476- tel./fax 0xx11 813.5701 E-mail: cognitio@uol.com.br