Ciência Cognitiva e Educação:

reflexões sobre a escola de amanhã

Henrique Schützer Del Nero (IEA-USP)

INTRODUÇÃO

O artigo que apresento agora faz parte de livro em fase de elaboração sobre alguns dos aspectos relevantes da crise por que passa a educação em nosso meio e também no mundo.

Antes de consideração de especialista na área, representa um esforço de integrar conceitos gerais, alguns advindos da chamada Ciência Cognitiva e outros advindos de minha indignação de cidadão.

Examinarei primeiramente o que é Ciência Cognitiva. Em seguida farei uma rápida incursão nos aspectos relativos ao uso de ferramentas cognitivistas no aprendizado. Finalmente traçarei alguns paralelos relevantes para um redesenho da educação com vistas ao próximo século, particularmente face ao que se conhece do cérebro e da mente humana.

I. Ciência Cognitiva

De maneira sucinta pode-se dizer que a Ciência Cognitiva é uma das grandes áreas de pesquisa do próximo século.

Reúne, basicamente, as seguintes disciplinas: Neurociências, Psicologia, Lingüística, Filosofia e Inteligência Artificial. (fig.1)

Undisplayed Graphic (fig.1)

As disciplinas acima estão reunidas no afã de congregar esforços na compreensão da mente humana.

As Neurociências colaboram com o substrato da mente - o cérebro.

A Psicologia colabora com as teorias de funcionamente da mente propriamente dita.

A Lingüística colabora com o exame da principal função mental humana- a linguagem.

A Filosofia fornece, através da Lógica e da Epistemologia, vários dos fundamentos e dos instrumentos de análise de hipóteses da Ciência Cognitiva.

A Inteligência Artificial, elemento fundamental, fornece os modelos de máquinas reais ou teóricas que poderiam simular a mente humana, particularmente o pensamento.

Um pouco de história:

Há vários modos de apresentar a história da Ciência Cognitiva. Vejamos um deles:

1) No século XIX aparece a Lógica Matemática com G.Frege. Também aparece a Álgebra de Boole. Com esses dois elementos começamos a poder construir sentenças lógicas e relacioná-las através de cadeias de inferências. Com a álgebra de 0s e 1s podemos implantar todas as sentenças e as cadeias de inferências em qualquer aparato físico que instancie portas abertas e portas fechadas. Isso será uma forma de computador primitivo e o fato de os computadores atuais serem eletrônicos somente contribui para diminuir o tamanho e aumentar a rapidez. Já no século XIX sabe-se que um computador será qualquer máquina que possa realizar a simulação de cadeias de inferências através da codificação de 0s e 1s.

2) No início do século XX três trabalhos definem outras vertentes de relação entre a mente natural e sua replicação artificial:

Alan Turing mostra, através de uma construção abstrata (a máquina de Turing) constituída de uma fita infinita (memória) e de um perfurador que fura a fita em função de estados anteriores, que qualquer sistema formal pode ser realizado por essa máquina.

Alonzo Church mostra que todos os fatos significativos podem ser computados através das chamadas funções recursivas. Tudo que há pode ser computado através de funções recursivas e a máquina de Turing faz parte de uma classe de autômatas que computa essas funções. Pronto, o banquete está posto para que a computação surja em sua plenitude, tão logo se possa reduzir o meio fisíco de processamento e armazenamento de memória.

Porém, um trabalho que corre por fora é o de Kurt Gödel que mostra que sistemas formais (a maior parte deles) exibe as seguintes propriedades: incompletude e indecidibilidade. Embora absolutamente técnica, a discussão se reveste de importância, porque é devido a essa propriedade dos sistemas formais que uma máquina de Turing pode apresentar uma parada durante a computação de sistemas simples. Essa parada advém de uma série de razões, mas a única maneira de evitá-la seria ter um gerador aleatório de números. Esse gerador teria de ser quântico para que genuinamente aleatório. Ora, a partir daí se constrói um raciocínio complicado, mas que vai nos interessar: se a consciência pode resolver certos problemas ( a verdade de uma sentença) que um sistema diante da parada não pode; se o sistema que pára é baseado numa seqüência de operações bem determinadas (passos claros chamados algorítmos) então a natureza última da consciência é ser algo não-algorítmo. A única coisa na natureza que é não-algorítmica é uma equação da Mecânica Quântica (colapso-onda). Logo, a consciência ( e portanto a mente) teria um substrato quântico. (Tese de Penrose, essa já nos anos 90)

3) Se a mente contém objetos que são símbolos-sentenças, e se há um modo de construir relações entre símbolos através de regras e algorítmos, então a mente é um programa e o cérebro é um computador (hardware)

Essa idéia (Inteligência Artificial Simbólica) domina os anos 50 quando surgem os primeiros programas capazes de provar teoremas matemáticos (Newell e Simon).

4) Essa primeira visão, de que a mente é um programa e de que cabe à Lógica fornecer o substrato de regras para entendê-la, domina a Ciência Cognitiva desde os anos 50 até os anos 70.

5) Porém, nem toda relação entre objetos pode ser expressa por regras claras. O aprendizado, por vezes, é realizado pelo exemplo e pela exposição. Depois de algumas tentativas, cristaliza-se um “saber fazer” que não é expressável através de uma regra simples.

Surge então uma maneira de computar um pouco diferente daquela da Lógica e dos algorítmos. São as Redes Neurais (Inteligência Artificial Conexionista), arquiteturas que simulam neurônios reais, altamente conectados e que são capazes de aprender com exemplos.

Nessas redes não há distinção entre software e hardware. O conhecimento está na mudança das conexões entre os neurônios artificiais, tal acontece no cérebro humano quando o aprendizado modifica o peso das ligações relevantes entre os neurônios. (fig.2)

Undisplayed Graphic (fig.2)

6) Pode-se perguntar de onde vêm os objetos computados pelo cérebro, tanto no modelo simbólico tradicional, quanto nas redes neurais? A resposta é simples: nesses dois modelos positivam-se classes de primitivos mentais e a busca está voltada para as relações mentais, tal estivesse aí a natureza da mente.

Quando, no entanto, nos perguntamos pela natureza desses objetos, voltamos ao cérebro e percebemos duas grandes ferramentas de computação: oscilações e sincronização.

Para entender os conceitos acima, faz-se necessário entender a unidade básica do cérebro humano: a célula nervosa ou neurônio.

A lógica do neurônio é bastante simples. É constituído de braços que recebem impulsos elétricos (os dendritos), corpo celular e um ramo por onde manda a informação para frente (o axônio). (fig.3)

Undisplayed Graphic fig.3

Há mais de 10 bilhões de neurônios no cérebro humano. Cada um deles conecta-se com 10 a 100.000 outros através de dendritos. Ao todo, há algo em torno de cem trilhões de conexões entre os neurônios. Por aí, pode-se perceber a complexidade da comunicação.

Porém, é preciso entender um pouco a natureza da oscilação e da sincronização.

O potencial local em cada dendrito vem de um impulso que recebe de outro axônio. Alí é gerado um potencial local de amplitude e forma variáveis. A isso chamamos analógico, porque os valores do potencial local variam de um número a outro (-m a +m).

Chegando no corpo celular esses potenciais locais são integrados, gerando ou não (vai depender do limiar de excitação) um potencial de ação. Esse potencial de ação tem amplitude fixa (isto é, assume apenas dois valores: 0 ou 1). Por isso foi interpretado como digital (em oposição a analógico).

Esse potencial de ação trafega pelo axônio e vai estimular um dendrito mais adiante. É assim que a informação transita pelo sistema.

Durante muito tempo, considerou-se o potencial de ação como algo de dois valores, 0 ou 1, digital, e isso favoreceu a idéia de que o cérebro fosse um computador digital (cuidado, porque há computadores que não são digitais, embora o grande sucesso nos dias de hoje seja das máquinas digitais). Porém, ao se olhar mais intimamente para o processo, percebeu-se haver um intervalo entre os potenciais de ação que podia estar codificando algo.

Pense no seguinte exemplo:

Tenho quatro potenciais de ação:

IIII

II II

III I

I I I I

Nos exemplos acima há apenas quatro potenciais de ação, seus tamanhos e formas são fixos, mas o intervalo entre eles pode variar. Isso parece um código de barras de tal sorte que os quatro potenciais podem codificar coisas diferentes em função desse intervalo. Pois bem, é justamente aí que entra a freqüência de disparo de potencias de ação. Essa freqüência pode informar coisas diferentes e reinsere a gama de valores -m a +m (analógica) no âmbito da comunicação.

Ora, osciladores são sistemas que têm uma freqüência. Pêndulos, por exemplo, são osciladores. Neurônios também, isolados ou em conjuntos denominados assembléias.

Pois bem, o potencial de ação parecia digital, mas na verdade codificava analogicamente no espaço das freqüênciais. Se uma população de neurônios se incumbe de representar um objeto através de uma oscilação numa determinada freqüência e outra população, outro objeto, noutra freqüência, quando ambos estiverem em sincronia (isto é mesma freqüência) haverá uma relação entre os dois objetos.

Com esses conceitos simples posso entender que:

a) neurônios parecem digitais mas são analógicos

b) a representação de um objeto é uma freqüência de disparo de potenciais de ação (no caso de um neurônio) ou um equivalente no caso de uma assembléia deles.

c) a relação entre os objetos é dada pela rápida sincronização de duas populações de neurônios que representam o objeto A e o objeto B.

Com isso, pode-se entender que, tanto do ponto de vista das regras lógicas, quanto das regularidades, o modo como podemos olhar realisticamente para o cérebro indica objetos que são oscilações e relações que são sincronização entre elas. Chamo esse tipo de modelo de Dinâmica Cerebral.

Se a ordem de acontecimentos seguir os princípios da dinâmica clássica (de Newton) diremos ser Dinâmica Cerebral Clássica. Se, ao contrário, houver acaso genuíno e elementos quânticos, diremos ser uma Dinâmica Cerebral Quântica.

7) Com os elementos acima é possível entender os movimentos da Ciência Cognitiva no afã de entender o cérebro, a mente e de construir modelos de funcionamento de ambos, bem como de suas relações. Mais ainda, pode-se perceber que, se oscilações e sincronização parecem ser os elementos mais próximos do cérebro, não será por ora que poderemos criar análogos práticos desse mecanismo.

Por outro lado é possível entender que, pelo menos do ponto de vista da similaridade com o cérebro humano, alguns sistemas chamados especialistas, usados em educação, são realistas na medida em que se utilizam de conceitos de aprendizado não mediado por regras, porém não o são por desconhecerem o real elemento analógico de processamento entre os neurônios.

A próxima parte deste trabalho examinará justamente alguns desses problemas do ponto de vista estritamente conceitual.

II. A Ciência Cognitiva na Educação: elementos pedagógicos acessórios

Algumas metodologias advindas da Ciência Cognitiva, e por vezes não exclusivas dela no que tange ao aspecto prático, mas exclusivas no tratamento conceitual que merecem, têm sido aplicadas num novo desenho pedagógico:

1) O uso de sistema especialistas inseridos em meios hipermídia parece ser um dos mais populares. Esse uso se baseia em alguns conceitos básicos:

a) extraído o conhecimento de especialistas pode-se criar metodologia de abordagem interativa de problemas tal que os passos recriem a riqueza conceitual necessária.

b) a extração do conhecimento permite que se selecionem populações de especialistas e se confrontem suas visões sobre os elementos fundamentais de cada área. Isso faz com que se possa ter, num único sistema, a média de muitos saberes.

c) ao contrário de aprendizados seqüenciais e lineares, esse meio pode permitir a construção de um conceito por meios interativos, não-seqüenciais.

d) pode-se reunir conhecimento de outras áreas sob a forma de vídeos, textos, etc. o que por vezes não seria possível para um único professor e nas escolas menos equipadas.

e) normalmente pode-se unir ao modo de interação com o programa, jogos e soluções individuais que testem o aprendizado de maneira lúdica.

f) do ponto de vista conceitual esses sistemas se baseiam na idéia de que há uma propriedade no aprendizado que é não retratável por simples regras. Fica assim a noção de rede neural em evidência, embora não seja, no mais das vezes, uma arquitetura de tipo rede neural a utilizada para implantar um sistema especialista (no mais das vezes é uma rede semântica ou uma arquitetura simbólica com algorítmos de tipo A*)

2) o uso de linguagens de programação do tipo da LOGO permite um uso mais inteligente da idéia de computação. Nela o aluno aprende a formular um problema, programar e testar seu êxito ou não.

Veja que aqui não se trata de falar de uso de computação ou de Inteligência Artificial como instrumento, mas sim fazer delas fundamento de aprendizado.

Do ponto de vista cerebral, está claro que a integração do maior número de áreas será benéfica para o aprendizado mais robusto. O uso de uma linguagem de programação e sua aplicação a cenários concretos, tais como uma pequena linha de montagem, serão benéficas pela quantidade de funções nervosas que estão sendo recrutadas para a execução daquela tarefa.

3) o uso de análise de protocolo e de técnicas de abordagem de solução de problemas, tomada de decisão e sacades visuais pode iluminar um sem-número de elementos sobre o aprendizado e sobre as dificuldades do aluno.

Aqui estão enumeradas diferentes técnicas que permitem a elaboração de programas para educação. Caberia perguntar até que ponto interessam ao professor? Creio que muito, uma vez que não se deve usar qualquer meio sem que se tenha alguma noção acerca da metodologia que o gerou.

Assim a análise de protocolo é técnica que permite discriminar como o aluno resolve determinada tarefa e quais seriam os pontos nevrálgicos de suas dificuldades (isso é feito com larga comparação de como os alunos resolvem a mesma tarefa)

O estudo da tomada de decisão em situação de pressão pode auxiliar a entender diferentes modalidades de raciocínio: um médico num pronto-socorro tem um tipo de raciocínio e de árvore decisória, enquanto um engenheiro, com seis meses para estudar um problema, tem outro.

O estudo da sacade visual só é possível em laboratórios bem equipados. Não creio que fosse implantável em escolas, mas representa um meio de avaliar em que elementos de um texto ou de um cenário há maior atenção, em quais os olhos se detêm mais e em quais há necessidade de voltar para trás. Esse tipo de análise é fundamental para entender elementos de leitura e de compreensão de discursos.

Finalmente a compreensão de elementos de sincroniza 7‡ão tem ajudado a compreender e encaminhar soluções para o problema da dislexia, tão comum, e que ao contrário de distúrbio psicológico, talvez venha a ser tratado com alterações no material de leitura (tamanho de letras, intensidade e velocidade de certos parâmetros tais que consigam promover sincronismos que não estão sendo possíveis no disléxico)

4) Redes internas(Intranet) e externas (Internet): embora não especificamente tópico de Ciência Cognitiva, acabam parecendo com ela por envolver uso de computadores (o que não é a mesma coisa: Ciência Cognitiva utiliza de modelos computacionais sobre a mente; utilizar computadores pode se chamar Informática no ensino ou na Educação).

Em todo caso, cumpre mostar que essas redes podem aumentar o poder de busca e de pesquisa, particularmente para as escolas menos equipadas com bibliotecas, etc.

Por outro lado, a quantidade de nós que essas redes comportam carece de uma boa orientação quanto ao seu uso. O professor que supervisiona é ainda mais importante que no caso de uso de software educativo (nesse já se sabe os limites do que está alí dentro).

5) Outros elementos que podem advir da Ciência Cognitiva no desenho de uma pedagogia para o dia de amanhã são os seguintes:

a) sabe-se hoje que o cérebro, ao contrário de armazenar informação em lugar específcio, lança mão de inúmeras conexões para classificar, armazenar e recuperar. Portanto, quanto mais conceitual é o aprendizado, quanto mais capaz de reproduzir as tensões cognitivas (contra-intuitivos), tanto melhor será sua gravação e sua recuperação/aplicação.

b) o cérebro tem necessidade de fechar uma história: isto é o cérebro está todo o tempo procurando coerência nos dados sensorais. O aprendizado deve contemplar o maior número de eixos significativos. Nesse sentido vale o exemplo de amigo meu que montou um curso em que dava a Mecânica Clássica para os alunos. Paralelamente fazia-os ler textos filosóficos de Galileu. O professor de História cuidou de dar elementos sobre a época, enquanto outro deu aulas sobre a Música e sobre a Arte do período. Para completar os alunos foram estimulados a montar a peça “ Vida de Galileu” de Bertold Brecht no final do ano. Isso é integração e capacidade de fechar uma história. De acordo com o modo como o cérebro funciona, creio ser o melhor meio de armazenar conceitos e não apenas fórmulas de movimento.

c) o elemento motivacional é crucial no desempenho. Enquanto não se entender que, a despeito de ter de existir disciplina, o estudo é uma festa e uma descoberta, não haverá motivação nos alunos. Para isso, a necessidade de tarefas e de pesquisas, não as mecânicas e realizadas pela secretária do pai de um deles, deve ser fortemente estimulada. Urge nesse sentido fazer com que os alunos leiam pelo menos um livro por mês, que aprendam a ler jornais e que adquiram o hábito de usar bibliotecas ou, se possível, começar a formar suas próprias bibliotecas, às vezes abrindo mão de uma roupa da moda ou de um tênis de marca que poderia gerar um livro e um similar sem griffe.

d) pela natureza do aprendizado e da aptidão, devemos reforçar no aluno também suas aparentes menores aptidões. Sem exagero, se alguém tem grande pendor por Matemática, deve-se criar incentivo a isso, sem porém deixar de enfocar outras matérias. Digo isso, não como truísmo, mas porque, mais do que nunca, sabemos que o cérebro precisa de um rico meio interdisciplinar (e essa é a chave para fazer qualquer coisa em Ciência Cognitiva) para ir longe. A especialização precoce pode abortar projetos futuros, embora pareça que os dias de hoje cada vez mais exigem especialização (isso o futuro mostrará, mas creio que as profissões de futuro serão aquelas que reúnam conhecimento de interfaces opacas entre as discilinas, não-substituíveis por computadores. Daí a ênfase na inventividade, no amor pelo estudo e pela atualização constante, na interdisciplinaridade e na conjugação especialidade-horizontalidade).

Concluíndo, devo dizer que o uso de software educativo, seu desenvolvimento, a compreensão de seu papel e mais alguns elemento sobre mente e cérebro são ufndamentais no desenho de uma escola para o próximo século.

Na última parte, permito-me externar algumas idéias que me assaltam acerca do problema da Educação e algumas diretrizes que colocaria em discussão.

III. A Crise na Educação

Não creio que se possa dizer que há uma crise na Educação. Há, outrossim uma crise na sociedade e nos modelos que se mostraram “vitoriosos” no atual momento.

A Ciência Cognitiva procura entender a mente como um todo e sua relação com o cérebro. Além de imenso arsenal teórico e empírico, baseia-se na ciência séria para estudar os fenômenos e propor-lhes explicação e tratamento. Quando a sociedade se curva diante de uma série de absurdos aceitando-os como inevitáveis, então não só a Educação está em crise, como também a própria mente, entendida aqui como fenômeno que permeia todo o tecido social. Enumero a seguir alguns elementos dessa crise e tópicos para a discussão de uma escola e uma sociedade para o próximo século:

1) Quando entregamos nossos filhos para professores esforçados e bem-intencionados, mas cuja profissão não queremos para esses nossos filhos, algo de podre está em curso que nenhuma ciência, nem a Cognitiva, poderá resolver.

Enquanto não se trouxer de volta a função do professor à posição de respeito e remuneração condizentes com o sonho de um pai de ver seu filho ser, um dia, professor primário, não será software que resolverá nada.

Enquanto não acabarmos com o traço arcaico de que as profissões nobres são apenas A,B e C, criando condições de mercado e de respeito para qualquer carreira, inclusive as técnicas, altamente qualificadas, mas sem nível superior, não veremos progresso real.

2)A Ciência Cognitiva mostra, através da chamada Etologia Cognitiva, que a ética não é uma imposição contingente da sociedade, mas que ao contrário está presente também nos outros animais.

Enquanto não percebermos que a mente foi selecionada para a comunicação e para a solidariedade, e não para o sucesso pessoal a qualquer preço, infringindo a ética da coletividade, não lograremos devolver ao estudo e à escola seu real papel na sociedade.

A escola deve ser, antes de mais nada, o local onde se aprende a virtude e o dever de ser cidadão. Alí, o respeito, a solidariedade e a aplicação de valores morais devem fazer parte de currículo, tanto quanto qualquer matéria. Mais ainda, deve contar com a participação de pais e professores, verdadeiro ensaio comunitário sobre a relação humana.

O estudo e o aprendizado, quando não inseridos numa visão ética do indivíduo no mundo, se tornam artifício de embuste e de sucesso a qualquer preço. Esse indivíduo, embora aluno brilhante, não terá jamais a capacidade de servir de exemplo para aqueles que vêem o conhecimento como instrumento para a emancipação do ser humano e para o atendimento das necessidades da nossa espécie.

A escola, antes de ensinar a usar computador ou de ensinar raíz quadrada, deve ensinar valores. O que fazer quando os pais já estão desencantados de tanto ver triunfar o mau aluno, o atravessador, e ver o diplomado em curso superior, honesto e laborioso, amargar um desemprego crônico, já aceito como intransponível na sociedade ocidental?

3) A escola deve, a par do ensino tradicional, forçar a integração interdisciplinar das matérias. Deve haver um currículo extra que leve o aluno a realizar a grande façanha da razão: relacionar as disciplinas e pensar horizontalmente (embora sem prejuízo, numa época de especialização crescente, do conhecimento vertical). Deve haver aulas de Teatro e Cinema (inclusive estimulando a realização de trabalhos), Artes, Música, Filosofia, Ciência, Mídia, Política, Agricultura, etc (em suma, um pouco das pistas já estão traçadas na formação do Homem grego e nos ideais do Homem do Renascimento).

Porém, como serE1  feito isso, se o professor que coordena tais atividades deve estar absolutamente bem formado, constantemente reciclado, possuidor de todos os elementos de pesquisa, compra de livros e revistas, viagens, etc?

Mais ainda, como convidar alguém a participar do banquete do conhecimento, se estivermos diante de espíritos amedrontados com a conta bancária e ressentidos com sua posição de menos valia perante o colega que, comerciante, ganha 10 vezes mais apenas intermediando processos?

Urge, portanto, elevar substancialmente o salário do professor de todos os níveis, fazendo a sociedade entender que a função é das mais importantes que se pode imaginar. Enquanto pais e, alguns donos de escola, não entenderem que a cara de uma sociedade pode ser medida pelo salário que se paga a um professor (no Primeiro Mundo passa-se anos economizando tostões para dar educação de qualidade para os filhos) veremos apenas a pirotecnia dos computadores e dos laboratórios a enfeitar simulacros de ensino, típicos de país que tem usina nuclear parada, tomógrafo em hospital em que falta gaze e Internet que transita por linha telefônica de péssima qualidade e custa 4.000 reais!

4) Embora sejam muitos os problemas do chamado uso de computadores sem a devida supervisão, creio que podem empreender a superação de muitos problemas, particularmente nos bolsões mais pobres do país, onde nem se pode pensar em biblioteca, laboratório, etc,

Nesse sentido creio que se algo mereceria alíquota 0 de impostos federais, estaduais e municipais, seriam software, computadores e todo o material escolar e cultural (livros, revistas, etc).

A renúncia fiscal nesses casos deveria gerar uma rápida modernização de escolas e de casas, tal que nenhum programa governamental poderia superar. Confesso que ainda hoje me revolta o preço que custa esse material todo nos EUA e que, se trazido, ainda aciona a luz vermelha na alfândega, permitindo que o honesto funcionário nos trate como contrabandistas. Imagine: honestidade é pagar o dobro pela metade da qualidade para uma empresa “nacional” que, quando sonega, não acende luz vermelha, mas renegocia ou até merece perdão.

5) A ênfase na participação dos pais em qualquer processo educacional obedece a outros pontos que conhecemos sobre a mente humana. Não apenas com reuniões de pais e mestres, mas criando uma constante colaboraE7‡ão entre escola e casa. Os pais dariam um maravilhoso exemplo, além dos benefícios outros, se estudassem à noite com seus filhos. Não digo ajudando-os a fazer suas tarefas, mas sobretudo fazendo algum curso a distância, reciclando algum conhecimento, ou assistindo a aulas gravadas da TV de alguma grande área como computação, línguas, cidadania, primeiros-socorros, higiene, saúde mental, história do Brasil e Universal, etc.

Isso mostraria a necessidade de estudo durante a vida toda, integrando a família em torno da mesa: local onde se come o pão para o corpo e onde se pode, com o estudo de todos, fornecer alimento para a mente.

6) A compreensão da situação da mente como propriedade do cérebro é fundamental porque, não raro, inúmeros alunos apresentarão distúrbios neurológicos e psiquiátricos. Nesses casos o professor deverá saber, tal fosse primeiro socorro, diagnosticar e encaminhar aos locais corretos. Por quê? Por duas razões: em primeiro lugar porque tenho visto ignorância criminosa na condução desses problemas por parte de professores e escolas (as patologias e as formas de diagnosticar mereceriam outro trabalho). Em segundo, porque a escola deve ser a retaguarda institucional que educa também os pais. Quando a escola diagnostica e recomenda que se procure o serviço x da Faculdade de Medicina da Universidade cumpre papel de gerador de educação. Quando não diagnostica, ou encaminha para profissional não preparado, ou pior, quando permite que o tratamento seja feito espiritualmente, religiosamente, com simpatias, boa-fé, auto-ajuda, força do pensamento, para não dizer das antigas terapias de coerção, etc. está corroborando a ignorância como motor da sociedade.

7) A escola, embora deva todo o tempo tentar evitar a reprovação, deve ao mesmo tempo lutar contra a tirania dos novos tempos: os pais, consumidores, têm sempre razão! Cuidado porque no caso da escola, essa concepção de um mercado todo-poderoso, somente tem por adulterar o processo de dificuldade progressiva que deve ser dado a qualquer aluno em qualquer matéria. Escola, se for empresa, deve estar atenta ao fato de que a satisfação do consumidor, particularmente numa época de crise de valores, pode ser erro grave.

Nesse sentido também a idéia de vestibular deve urgentemente ser revista. O ideal, embora a custo alto, seria a unificação de currículos e o exame anual ou semestral durante pelos meno os anos da 5a série do 1o grau até o final do 2o grau.

Isso permitiria seleção mais adequada e forçaria as escolas a unifomizar o ensino, podendo ser melhor avaliadas nesse quesito pelos pais.

8) Finalmente, a politização dos alunos, o ensino de sua função na sociedade, o ensino da democracia e dos direitos humanos e, sobretudo, o ensino constante das diversas formas de reunião, organização e pressão, deve fazer com que a escola seja o primeiro passo para a formação de cidadãos que contribuirão para que talvez um dia possamos deixar de enumerar tudo o que foi dito acima.

A escola de nossos sonhos não chegará nunca. Urge que façamos com que as pessoas tenham pelo menos escolas em seus sonhos e não somente carros importados, televisões 29, vestidinhos anos 70, e mais um sem-número de fetiches frívolos e alienados.

Definitivamente, se Ciência Cognitiva ou não, a nossa escola e o salário de nossos professores são o melhor termômetro do quanto já estamos no Primeiro Mundo ou se já estamos querendo inventar o Quarto.

CONCLUSÃO

Muito pode ser dito a respeito da nova escola. A Ciência Cognitiva pode oferecer alguns elementos. Para isso citaria a recente bibliografia a respeito:

1) Schools for Thought: A Science of Learning in the Classroom. John Bruer. MIT Press

2) Classroom Lessons: Integrating Cognitive Theory and Classroom Practice. Kate McGilly (ed). MIT Press.

3) Computadores e Conhecimento: Repensando a Educação. José Armando Valente (ed) NIED-UNICAMP

4) O Sítio da Mente: pensamento, emoção e vontade no cérebro humano. Henrique Del Nero (aguarda editora)

Citaria, entre os núcleos que conheço, a Escola do Futuro da USP e O Núcleo de Informática Aplicada à Educação da UNICAMP, onde poderá haver mais elementos práticos dos temas abordados nesse artigo..