O "MENTAL" COMO "CONSCIÊNCIA"

 

Henrique Del Nero (1992)

 

 

 

 

I I I . O "mental" como "consciência"

 

 

I I I.1. Apanhado geral do problema

 

É certo que o tema da "consciência", embora vital, não encontrou nesses séculos de história do pensamento e da ciência uma solução satisfatória. Muitos filósofos vêem nele o ponto de inflexão que torna qualquer redução do "mental" ao "físico" impossível. Os neurocientistas, por seu lado, embora conheçam o "fenômeno" da "consciência", enquanto objeto de investigação, dificilmente ultrapassam o nível da mera implicação material, i.é., (x) (xConsc. - x Cer.) (Para todo x, se x é consciente, ou exibe a propriedade de "ter consciência", então x é um cérebro ou tem um cérebro. Isso, longe está de relacionar a função consciência com seu substrato ou com o "ente"que a subsume. Entenda-se que essa última formalização é bastante simplificada, pois existem delimitações mais específicas de quais "sistemas neurais"----- parecem ser os responsáveis pela consciência. Ainda assim, padecemos do problema de tentar identificar um fenômeno com seu referente neurológico, baseando-se numa implicação, o que redunda em sérios problemas.

Um indivíduo descerebrado perde a capacidade de exibir consciência, bem como aquele que tem seu corpo caloso seccionado e projeta suas sensações no hemisfério contra-dominante. Até que ponto esses procedimentos implicatórios, estatuindo sobre condições necessárias, podem nos levar às condições suficientes, é problema da maior relevância epistemológica e experimental. Como vimos anteriormente podemos estabelecer uma relação de implicação entre o cérebro e a consciência, porém nem todas as estruturas cerebrais participam dessa relação, logo há algumas "partes" do cérebro que são condição necessária para a consciência e outras aparentemente não. O hemisfério dominante, normalmente o esquerdo, é condição necessária e o corpo caloso preservado é o que possibilita a comunicação da percepção no hemisfério direito para o hemisfério esquerdo, o que a torna consciente.

O problema pode ser colocado então da seguinte forma: tomando uma implicação muito ampla o poder explicativo diminui, como no caso de simplesmente dizer que para se ter atividade mental é preciso ter um corpo. Certamente, não estamos falando da necessidade de se ter cabelos o que também é arte do corpo. Nota-se ser necessário discriminar qual ou quais partes do corpo respondem por determinada função. É nesse ponto que o problema da implicação se põe de forma desconcertante. Quer dizer, ao tentar aumentar o poder explicativo da minha implicação geral, encontro uma multiplicidade de "partes" que aparentemente são "causas" da função. O trabalho experimental seria portante o de delimitar todas as implicações possíveis e da reunião desse sistema de sentenças estabelecer a identidade. Imagine-se o seguinte exemplo:

 

1. Implicação geral - (x) (x tem consciência --> x tem um cérebro).

2. Um cérebro é o conjunto dos sistemas a, b, c e d.

3. Implicação para partes:

(x) (x tem consciência ->x tem a)/ (x) (x tem consciência -> x tem b.

(x) (x tem consciência -> x não tem, ou não precisa ter c.

(x) (x tem consciência -> x não tem, ou não precisa ter d.

No esquema agora proposto poderíamos dizer que a consciência se confunde ou equivale "a" e "b".Isso é questionável porque a própria sentençá 2 dizia que o cérebro era o conjunto de a, b, c e d. Se isso é verdadeiro então a implicação para partes é falsa ou a implicação para o todo é falsa. O problema de se estabelecerem implicacões tentando correlacionar fenômeno é bastante mais complexo, carecendo não apenas do maior número possível de sentenças empíricas do tipo implicação mas também de algo que previamente permita resolver esses impasses.

 

 

I I I .2. Considerações preliminares

 

 

Antes de abordar o problema de seu substrato neurológico, devemos procurar esclarecer o que significa "consciência".

Há um sem-número de diferentes definições agregadas ao termo "consciência": dado imediato, conhecimento puro, sentido interno, fonte inequívoca de certeza, tela dos sentidos, pano de fundo do fluxo fenomenal, elemento constituidor de toda percepção possível, estado vígil, "aquilo que experimentamos quando acordados e sem o efeito de drogas", "aquilo que percebemos em nós mesmos quando nos representamos algo sem que o mundo externo aceda a estes conteúdos", interioridade, subjetividade, "em-si", responsabilidade, possibilidade de exame de condições hipotéticas, moral, liberdade de ação e de representação, conhecimento, auto-reconhecimento, consciência-de-si e dos outros, consciência da própria consciência, termo indefinido que se confunde com a própria noção de conhecimento, sede daquilo que é "intencional" (não no sentido da vontade mas daquelas proposições que expressem conteúdos, ou os visam - aboutness), sede do amor, do humor e da linguagem; aquilo que percebemos em nós mesmos quando respondemos a alguém; representação imagética e sentencial de si e dos objetos do mundo. Enquanto representação: capacidade de auto-percepção e de percepção externa (a introspecção é uma percepção interna e o corpo um objeto espacial sobre o qual se debruça), etc.

Além dessa gama imensa de acepções habituais para a consciência, existe ainda outro problema crucial: se o corpo é condição necessária para a consciência, e esta é "causada"por ele, como poderia ela agir sobre aquilo que a causa, sem que isto implicasse em circularidade? Seria possível do ponto de vista lógico, filosófico e empírico afirmar a existência de uma consciência da própria consciência? Para além da possibilidade gramatical de se imaginar o recurso ao infinito, e.g. consciência da consciência da consciência e assim por diante, que leitura teria isso do ponto de vista operatório? Estaríamos recriando o problema do órgão de controle que verifica e interpreta o "dado", estancando-o num determinado ponto da regressão ao infinito. Esse último problema do ponto de parada da sequência infinita seria algo do tipo: que consciência é a última a dar conta do fenômeno da consciência? Isso é uma variante do problema do "homúnculo" que ocorre na consciência quando a tratamos como sentido e fonte de percepção interna.

Há autores que, para superar o problema da regressão ao infinito, e ainda assim conservar a consciência como ente, se utilizam da noção de "emergência". Entendida nesse sentido a "consciência" seria predicado de um conjunto de unidades perceptuais, motoras e integradoras que não exibem isoladamente a propriedade mas que, quando agregadas em módulos, a "fazem emergir". Os exemplos de outras propriedades dos complexos, tomadas como não-redutíveis às propriedades de suas partes são frequentes: a liquidez da água não se explica pelas propriedades das ligações de hidrogênio e de oxigênio, nem pelas propriedades de uma molécula isolada. Não teria sentido, segundo os partidários da doutrina da emergência, dizer que uma molécula de um gás se encontra a 10oC, nem que um neurônio está "consciente"; portanto, essas propriedades seriam específicas de um conjunto de moléculas e de neurônios que realizam esta predicação molar não-redutível a (não-explicável por, não-dedutível de) predicados moleculares.

Os autores divergem quanto aos exemplos acima. Ernest Nagel os considera paradigmas de emergência apenas na medida em que se desconhecem certas propriedades das partes:

"Pode ser dito que determinados novos tipos de dependência não são ‘novidades reais’ mas apenas as realizações de ‘potencialidades’ que sempre estiveram presentes na ‘natureza das coisas’; qualquer um tendo o instrumental matemático requerido poderia prever essas novidades antes de sua realização".

Herbert Feigl trata o problema da emergência como uma má resposta à dificuldade de dar conta de determinadas relações entre predicados.

Dois representantes importantes da corrente pró-emergência são Mario BUNGE e Jerry FODOR. O primeiro coloca o problema sob o nome de "materialismo emergentista" negando que o cérebro seja um conjunto de partes e sim um sistema e que portanto não é a soma de suas partes constitutivas, impossibilitando qualquer abordagem "materialista reducionista" que vê o cérebro como um mero agregado de células. FODOR incursiona por outra gama de argumentos para mostrar que a redução é impossível. A noção de "classificação ortogonal" (cross-classify) é crucial porque dada a natureza "intencional"de certas entidades ou termos não há tradução física para eles.Tomando a noção de sistema monetário e sua ocorrência em teorias econômicas diz o autor:

"Se a economia positivasse tantos tipos de sistemas monetários quantas são possíveis as realizações físicas de sistemas monetários, então as generalizações em Economia seriam sem exceções. Mas, presumidamente, apenas vacuamente é assim, porque não restariam generalizações para o economista fazer. A lei de Gresham, por exemplo, teria de ser formulada como uma vasta disjunção aberta sobre o que se passa no sistema monetário1 ou sistema monetárion sob condições que iriam elas próprias impedir a caracterização uniforme. Nós não estaríamos aptos a dizer o que se passa nos sistemas monetários tout court pois, por hipótese, ‘é um sistema monetário’ não corresponde a nenhum predicado da física".

A noção de "emergência" possibilita que, ainda que estejamos em solo substancial, tenhamos dualismo de predicados ou séries de predicados molares não-tradutíveis a predicados moleculares. A tese é bastante simples: ainda que uma só substância possa justificar ontologicamente mundo físico e mundo mental, os predicados mentais não são tradutíveis ou redutíveis ao fisicalismo, i.é, à linguagem do mundo físico.

Há autores, como John SEARLE, que não aderem claramente à noção de "emergência", porém veêm difícil a redução do mental ao físico pois devemos reproduzir as instâncias de "realização" dos sistemas moleculares. O autor defende uma solução monista-materialista para o problema das entidades mentais. Não advoga a tese emergentista para predicados mentais, o que os tornaria não-tradutíveis em linguagem fisicalista-neurológica, mas crê que os modelos de função mental obtidos em computadores são inadequados porque não reproduzem "os poderes causais do Sistema Nervoso Central. Não duplicam funções, apenas simulam". Searle na verdade dirige seu argumento contra os funcionalistas que inspirados pela máxima de Hilary PUTNAMveêm a "função" mental mais importante que a "substância" mental. A tese da múltipla instanciação de funções mentais, malgrado o substrato, que orientou todas as modelizações em computador de predicados mentais é errônea segundo Searle pois a redução somente será possível se atentarmos para a especificidade do substrato neurológico do Homem. Portanto a precariedade de conhecimento acerca da neurologia dos processos cognitivos é o que torna a redução bastante complexa e não o fato de ocorrer qualquer forma de emergência.

 

A "consciência" é, portanto, para os emergentistas ou funcionalistas, predicado de um nível organizacional e hierárquico superior do cérebro humano que não se pode explicar pelas propriedades "materiais" ou "físicas". Este dilema epistemológico, e.g. monismo ontológico e dualismo de predicados, é amparado pela noção de emergência ou por uma "teoria da hierarquia e finalidade na organização dos complexos".

 

Há alguns autores, p.ex. CHURCHLAND,P (1986); STICH, S.(1983); FEYERABEND,P. (1970); classificados dentro da vertente chamada "materialismo eliminativo"que defendem a irredutibilidade dos predicados mentais, incluindo a consciência, a predicados físicos pois aqueles não constituem tipos naturais , sendo móveis, ambíguos, relevantes para uma Psicologia de senso-comum, porém incompatíveis com uma Psicologia monológica.

Quer seja a "consciência" um pseudo-problema, na visão behaviorista, ou qualquer outra objeção que se lhe possa fazer, devemos superar o seguinte problema: reunidos numa comunidade, decidimos não mais utilizar o termo "consciência", dada sua ambigüidade, mas apenas os sinais externos e evidenciáveis de comportamento. Para isso, deveremos tomar decisões, fixar o sentido dos termos, comunicar achados, uniformizar dados, etc. Em todos estes procedimentos estaremos usando a consciência que é a "tela" onde se projetam estas atitudes, ou sua representação. Pode se dizer que por definição contextual é possível criar uma série de sentenças que tornem o termo desnecessário. Importante notar, no entanto, que tentativas nesse sentido esbarraram em dificuldades intransponíveis. Ainda que encetemos estratégias do tipo "epistemologia sem sujeito cognoscente", "objetividade do mundo sem sujeito percipiente", "conhecimento e certeza sem consciência", não escaparemos da ambigüidade e da circularidade se pretendermos acordar sobre fenômenos observáveis sem alusão à "consciência", subjacência das percepções, acordos, decisões, formulações linguísticas e inferências de que o interlocutor se representa o mesmo objeto que eu.

O estatuto da "consciência" não é apenas problemático enquanto ecepção de "mental" mas estende suas implicações para uma série de questões filosóficas. Mesmo que imaginemos uma Psicologia sem "consciência", teremos de dar conta do que seja esta entidade que perpassa toda nossa vida cotidiana e também nossa linguagem, impreguinando nossa "visão de mundo". A esse respeito devo explicitar uma das estratégias deste trabalho, qual seja a de mostrar funções e não definições na tentativa de clarificar propriedades ou predicados. Por vezes o reconhecimento de um ente natural se faz pela correta aferição de sua função específica. Numa perspectiva naturalista-evolutiva o preducado natural tem sua gênese na seleção de uma habilidade adaptativa. Portanto a busca sobre o que seja consciência pode resultar vazia e mero jogo de palavras se procurarmos definições para a própria; ao contrário, numa perspectiva teleológica, o ser é definido pelas funções que desempenham. A linguagem comum, e seus significados habituais, está de tal forma comprometida com a ontologia mentalista (dualista) que certos problemas não se resolvem no interior dela, mas sim apelando para a função da entidade designada por um determinado termo.

 

 

III.3. "Consciência" sinônimo de "mente"

 

Tomando como ponto de partida a definição intuitiva de "mente" como aquilo que nos diferencia do toda a forma inanimada de vida - matéria inanimada, não-pensante, inerte, sujeita às leis da física -, veremos que o termo não acrescenta muito. Em nossa cultura, "mente" significa habitualmente uma substância diferente da física, "centelha divina", "sopro da alma" que coexiste com a corporeidade e lhe impõe, quiça, suas "razões" para além da "animalidade". Muitos julgam pobre a concepção biológica do homem. Não podemos ser apenas sistemas homeostáticos, auto-reguláveis, capazes de operar transformações complexas no meio circundante de tal modo que as próprias condições de adaotação e de sobrevivência se alterem. Mas por que não podemos ser apenas isto? Darwin pergunta por que a harmonia tão sublime da matéria devera ser trocada por um punhado de considerações especulativas? Não parece haver maior complexidade na figura de um ser demiúrgico que tudo ordena e a tudo subjaz que na harmonia de um sistema biofísico da nossa complexidade. Cabe reconhecer, no entanto, que os críticos do materialismo têm razão numa objeção: o ato de escrever estas páginas neste instante muito me diferencia de uma pedra inerte a repousar sobre as folhas já prontas. O pensador renitente diante de meus argumentos e ironias há de retrucar que, em sendo hoje domingo, dia de descanso, o fato de estar eu debruçádo sobre este trabalho é a prova da existênciade uma "mente" que não se confunde com a matéria, pois este trabalho pouco tem que ver com qualquer finalidade biológica adaptativa. Como corolário se estatui que a pedra, se dotada de vida como o animal inferior, sairia à cata de uma presa ou do repouso ou de qualquer prazer imediato, sem jamais se preocupar com teses que têm relevância mediata, seja o que for "relevância".

Incrivelmente o arsenal de argumentos pró-dualistas é imenso e não atenta jamais para a perda que se impinge a um esquema conceitual ao fazer proliferar as entidades de modo abusivo, sem com isso obter explicação convincente para um sem-número de problemas.

 

 

CARACTERISTICA DA "VIDA MENTAL CONSCIENTE" segundo William James

 

William James em sua obra fundamental -"Psicologia" - do final do século passado, anuncia que a "psicologia é a ciência da vida mental, tanto de seus fenômenos como de suas condições. Freqüentemente escreve como se mentalidade fosse sinônimo de consciência ou de vida mental consciente. De fato a ênfase contínua de James no primado metodológico da introspecção é implicitamente suportado pela suposição (largamente aceita) de que somos sistemas nos quais toda, ou grande parte da vida mental, é realmente consciente ou capaz de tornar-se consciente"

 

As características da "vida mental consciente" segundo James, condensadas por Owen Flanagan no livro citado são as seguintes:

 

a) A consciência tem propósito e vontade (purposeful and willful)

 

"A posse de finalidade futuras e a escolha dos meios para sua consecução são então a marca e o critério da presença de mentalidade num fenômeno" É, portanto, a propriedade do comportamento instrumental finalístico, sendo a "mente" e a "consciência" capazes de representar um objetivo selecionando os meios para alcançá-lo. Embora esta tese envolva diretamente a noção de finalidade e isto cause embaraço a alguns, está certo que James, leitor de Darwin, tem claramente a noção de que adaptação e evoloção implicam comportamentos finalísticos, ativos ou passivos , visando a sobrevivência. Devo deixar claro que a noção de ativo e passivo procuram diferenciar uma estrutura que visa a um determinado fim (caso da adaptação ativa) e de outra que por acaso tem em sua configuração respostas adequadas às solicitações do meio (caso da adaptação passiva, sem prévia intenção, porém de resultado igualmente significativo).

A critica que se pudera fazer a James neste tocante é de que está bem certo que nossa vida consciente é apenas um sub-sistema de nossos sistemas teleológicos, e de que muitos comportamentos finalísticos são dão para além da consciência. Isto ficará mais claro adiante nos tópicos específicos.

 

b) A "consciência" exibe intencionalidade

 

É importante ressaltar desde o início que para James a intencionalidade é um atributo da consciência, enquanto para outros, intencionalidade e consciência são entidades distintas (John Searle por exemplo).

Desta forma o tema da intencionalidade será tratado neste trabalho, quer como atributo de "consciência" na leitura de James, quer como atributo de "mental" na leitura contemporânea mais usual.

"O conceito de intencionalidade é medieval com ecos filosóficos em Aristóteles e etimológicos no verbo latino intendo, significando "visar" (to aim at or to point toward)... A tese de que a intencionalidade é a marca absoluta do mental é chamada tese de Brentano... (que) distiguia entre Atos Mentais e Conteudos Mentais."

"minha crença de que vou sair do quarto, meu propósito de sair do quarto, minha vontade de deixar o quarto tem o mesmo conteúdo (deixar o quarto) e modo mental diverso, qual seja crença, intenção e vontade. O modo varia ainda quanto às condições de satisfação (no caso do desejo), condições de realização (no caso do propósito), condições de verdade (no caso de crença)

" Um importante traço dos estados mentais é de que somos capazes de ter crença, desejos e opiniões sobre coisas não-existentes e que portanto caracterizam claramente a tese de que os conteúdos dos estados mentais são representações mentais".

 

c) A consciência é consciente

 

A sentença acima, bem longe de ser analítica, mostra claramente que a noção de consciência presume as noções de propósito, vontade e intencionalidade; devemos, ainda, garantir outros atributos tais como estar vigil, alerta e atento (to be aware). Poderíamos pensar em máquinas capazes de reproduzir algumas das características da consciência, porisso prefiro separar o máximo possível as funções para que a questão da reprodução em modelos análogos mentais seja perfeitamente analisável quanto ao seu valor. A analiticidade da afirmação decorreria de uma verdade em função dos termos presentes (ex vis terminorum), porém o que se visa é proporcionar uma definição recursiva, qual seja a da propriedade da consciência de se debruçar sobre si. Podemos imaginar sistemas que ajam com "propósitos", "intencionalidade", etc porém o "estar consciente" dos mesmos é uma propriedade da "consciência" em que pesem outros predicados desta.

 

d) A consciência é pessoal, privada, única

 

A consciência, seja ela estado ou entidade, tem a propriedade de se apresentar de imediato em nossa experiência sensório-representacional. Nossa identidade, bem como nossos atos e propósitos estão firmemente atados a esta noção de privacidade e de identidade pessoal. Há teses comuns em filosofia da mente que costumam se agregar a este predicado: a da "consciência" como locus de acesso privilegiado e fonte inequívoca de certeza. Ambas, embora comuns, encontram críticos, o que não ocorre em James.

 

e) A consciência está sempre mudando, está em fluxo constante

 

O argumento do fluxo constante é elegante, mostrando que não podemos ter a mesma sensação ou evento mental duas vezes, pois a cada instante, pela laboriosa mão da experiência e da memória, as representações se somam numa interação que jamais se repete.

 

f) A consciência flui como uma corrente

JAMES garante que a consciência é contínua, distinguindo entre estados substantivos e transitivos desta. No item anterior dava conta dos estados substantivos que fixam uma determinada configuração de aparição de objetos, entes, etc. Ainda que haja mutação constante, o que nos garante a identidade ou "apercepção" de nós mesmos é a propriedade transitiva da consciência. É essa propriedade que unifica àtomos vivenciais díspares como uma seqüência de notas músicais e a melodia resultante.

 

g) A consciência é seletiva, atenta e interessada

 

Na visão de James toda a realidade circundante é um caos perceptual. Logo, a percepção deve ser dirigida por interesse, aprendizado, treinamento, etc. O modo como os seres humanos selecionam o aporte desordenado de sensações e de impressões e são capazes de se mover num mundo ordenado e compreensível, se faz através do aprendizado e do enfocamento diretivo da atenção, de sua seletividade e de seu interesse.

Este ordenamento prévio da "experiência possível", de tal sorte que seja dotada de uma anterioridade que organiza e visa aos objetos que quer perceber, é assunto comum em muitos autores. POPPER o chama de "impregnação teórica". KANT o constitui "a priori" de todo conhecimento possível. Nos textos recentes de Ciência Cognitiva, o tema da anterioridade de normas que organizam o dado imediato tem sido chamado de "frame-problem"

Eis um pequeno resumo do que James pensou serem os atributos da "consciência" dando conta de uma série de noções que costumam aparecer conjunta ou isoladamente nos textos. Infelismente o que se coloca muitas vezes como atributo de "consciência" não o é, sendo função separada, mormente quando somos capazes de discriminar referentes neurológicos para cada uma delas. Por exemplo, o comportamento finalístico não requer necessariamente uma consciência, sendo possível adjudicar intenção a atos automáticos, inconsciente (foi aqui que Freud introduziu a grande clivagem na noção de intenção e sua correlação com a consciência) e localizar esses atos como produto de atividade em áreas da cortex pré-frontal. Note-se, no entanto, que a ênfase de James não é somente no caráter finalístico da consciência, mas na sua capacidade de se representar fins e meios. O valor, no entanto, dessa rápida passagem pelas idéias de James é o de esclarecer o leitor a respeito de uma série de noções que permeiam determinadas escolas filosófico-psicológicas e que, mais ainda, impregnaram nossas idéias de senso-comum a respeito de funções da consciência. A idéia geral deste trabalho não é propriamente romper com essa tradição mas questionar se não é ela vício antropomórfico e linguístico, não correspondendo a nenhum tipo natural e portanto, em que pese útil no comportamento cotidiano, irredutível a categorias neurológico-fisicalistas. Brevemente: o recorte utilitário de regiões do real, não obedecendo os limites dos tipos naturais, pode nos ser útil em determinados casos, por exemplo na forja de uma psicologia de senso-comum, porém no momento em que não se reconhece esse recorte e se afirma não haver tradutibilidade de predicados mentais a predicados físicos, a utilidade se torna nefasta porque nos eclipsa soluções epistemológicas e projetos metodológicos de pesquisa.

 

III.4. Consciência e conhecimento

 

É certo que o "mental", antes de constituir problema específico da psicologia e da filosofia da mente, estende suas implicações até a linguagem ordinária, presumindo a noção de sujeito em oposição aos objetos. A suposta natureza diversa entre sujeito e objeto perpassa o significado dos termos da linguagem; não é por acaso que encontramos agregados ao "mental" conceitos tais como "sustentáculo do dado imediato e do conhecimento puro". Não precisamos discorrer longamente sobre noções tais como contingência e universalidade, fundamentação do conhecimento possível, etc, mas a partir de uma perspectiva naturalizada da epistemologia toda proposição sobre conhecimento passa a ser um ramo das proposições gerais da psicilogia humana. Não há sentido assim em procurar anunciados gerais e universais de conhecimento possível, para ai então justificar as proposições das disciplinas particulares, mas antes de mais nada cabe estabelecer que a universalidade subjacente a qualquer conhecimento é a própria organização biológica do H. sapiens, os enunciados neurológicos do sistema que está na base de toda a formação de conhecimento.

Há uma série de pontos difíceis na problemática do acordo entre dois sujeitos cognoscentes. O uso da linguagem presume uma ostensão interna aos estados que cada sujeito emissor toma como referente do discurso. Quando utilizamos um determinado termo para estabelecer comunicação, temos em mente, ou temos na "consciência", que o outro deve ter consciência plena dos estados e "objetos" internos que referendam aquele termo. Uma teoria do significado passa portanto, a meu ver, pela investigação destes estados internos discrimináveis por "ostensão introspectiva" e acordáveis pela linguagem de comunicação, embora diretamente inacessíveis ao outro. O problema da objetivação dos referentes e da uniformização dos significados é complexa pois a fixação de métodos, acordos e decisões para tal projeto envolve uma linguagem e estados que pretendemos clarificar, o que inevitavelmente pode levar o processo a uma regressão infinita.

Vê-se então que o "mental" e a "consciência" estão na raiz de uma teoria do significado que objetive, justifique e positive os refere4ntes para seus termos. Mesmo a procura de uma psicologia científica, dotada de enunciados físico-neurológicos, deve deparar-se com o problema de que nos debruçamos sobre um ente, "consciência", à cata de explicações quanto ao significado e a referência e para isso nos utilizamos dessa mesma consciência, com seus significados e referentes. Cabe portanto indagar se é possível que um elemento de um conjunto possa denotar e conotar este mesmo conjunto e seus elementos. Melhor dizendo: pode uma consciência, elemento do conjunto das consciências, dar conta de explicitar extensional e intencionalmente o que seja "consciência"?

A "consciência" implica um problema suplementar concernente ao tratamento do conjunto de "todas as consciências". No indivíduo é vivenciada como imediata, elemento único do conjunto da "consciência própria". Nos outros é inferida, mediata, suposta por meio da linguagem que faz alusão a estados análogos: "conjunto das outras consciências". Responder se o conjunto das "consciências" é uniforme ou se há ruptura visto que a nossa e a dos outros supõem predicados diversos tais como acesso imediato ou mediato, uso ou não da linguagem, etc é de capital importância.

Não sabemos se a "consciência" é um estado, um processo ou uma entidade . Há estados cambiantes e acréscimo de informação ao longo do tempo, porém a capacidade de manutenção de uma vinculação entre estados móveis é que nos faz supor que haja determinadas porções da "consciência" passíveis de tratamento "legiforme". A distinção anterior tem portanto estrita vinculação com a pergunta: é possível desconhecer a natureza da "consciência", seja ela entidade, estado ou processo, buscando suas "leis", o que resultaria afirmar, em caso positivo, que as "leis" são as mesmas para quaisquer das três possibilidades? A "consciência" está situada entre dois pólos opostos: o idiossincrático, pessoal, contingente, "a posteriori" e o nômico, necessário, supra-individual, "a priori".

Sabemos que há variações nos estados de consciência conforme a experiência e o aprendizado. A mutação dos conteúdos de consciência face à experiência é enorme, não o suficiente para impedir a uniformização de seus referentes mas de tal monta que a noção de "imediatidade" se veja seriamente ameaçada. Explico: na medida em que temos o concurso ativo da experiência pretérita influenciando nossos estados atuais de consciência, o "imediato" está definitivamente impregnado pela vivência anterior, o que, a meu ver, deixa de configurar imediatidade. "Dado imediato" para os sentidos não é nada senão a passagem de corrente elétrica pelas fibras nervosas condutoras "dado imediato" em sus "aparição" na "consciência" é uma parcela diminuta do mundo imediato, coagida pela ação da experiência prévia, seja vivencial individual (experiência propriamente dita) seja vivencial coletiva (programas prévios gravados no código genético e selecionados durante toda a escala de evolução daquele sistema). Todos os animais têm programas de ação e reação gravados em seus Sistemas Nervosos ao nascer. Alguns críticos objetam que são apenas reflexos, não envolvendo "consciência". É difícil fazer frente a esta objeção, porém por que pensar que aquilo que rege as partes não rege igualmente o todo? Melhor dizendo, aquilo que é válido para a reação medular ou infra-cortical não seria válido também para as projeções corticais? Mais: como podemos afirmar que não existem formas rudimentares de "consciência" na realização destes programas, se a única definição que temos, por ora, de "consciência" é sabidamente insuficiente?

Estas questões têm reflexos fundamentais para o conhecimento, porque a noção de "imediatidade" e de "dado puro dos sentidos" fica bastante abalada pelo reconhecimento da impregnação prévia dos estados conscientes, bem como de seu caráter mutável e plástico.

Uma última questão que cabe levantar é a do aspecto volitivo da "consciência". Quais seriam os referentes físicos que suportam uma máquina perquiridora de objetos de conhecimento? Pode-se dizer que a finalidade adaptativa é bastante clara, visto que o conhecimento permite uma maximização da adaptação e sua busca nada mais é que um correlato da luta pela sobrevivência. Qual seria então a vantagem adaptativa de se buscar a perfeição pictórica, culinária, etc? Qual a relação entre os "objetos" da cultura e a teoria da adaptação ? Em que a "consciência" que os deseja conhecer, acumular, engrandecer se assemelha a qualquer artefato físico finalista? Estas facetas da relação consciência e conhecimento são importantes, pois qualquer esquema pobre de redução da consciência ao biológico-mecanicista tende a ver, em toda essa massa de produção intelectual consciente e desejada, mero apêndice idiossincrático de uma atividade que em sua base serve apenas para a sobrevivência . Não partilho a tese segundo a qual todos estes produtos da consciência volitiva sejam quimeras ou " ópio biológico".

 

 

III.5. "Consciência" e introspecção. Problema metodológico

 

 

No século passado parte da escola psicológica alemã passou a usar a "introspecção" como instrumento de psicometria. Este programa chamado de "introspecção sistemática" sofreu vários ataques, mas produziu obras de relativa importância. Perceberam-se retardos e avanços no tempo de reação de sujeitos submetidos ao mesmo estímulo quando se desviava a variável "atenção" do objeto em foco. Comprovou-se o papel da motivação, do interesse, da atenção, do conhecimento prévio e das expectativas na gênese das respostas.

O problema, do ponto de vista metodológico, reside justamente nas questões de fundamentação. Não temos como harmonizar achados descritos por introspecção, pois o que intermedia os dois agentes - o observador e o testado - é uma linguagem que utiliza referentes internos. A introspecção passa assim a sofrer os mesmos males da questão da referência e significado dos termos que descrevem estados internos.

Façamos então algumas considerações acerca deste dilema da referência e da objetivação das descrições introspectivas:

I) Se a linguagem é a mediadora destes estados internos, comunicáveis somente através dela, devemos ter algum ponto de objetivação. Do contrário cairemos no solipsismo ou numa doutrina de linguagens privadas e inacessíveis.

Aprendemos a falar sobre "o mundo" e sobre uma série de eventos que se relacionam causalmente através de ensinamento linguístico e não através da experiência direta (acquaintance). Quando usamos as expressões "toda a experiência possível" ou "todo o conhecimento possível" não pretendemos que cada um descubra por si todas as situações possíveis, mas, ao contrário, damos por certo que conhecimento e experiência são comunicáveis e passíveis de incorporação sem que haja contacto direto, unitário e individual. Ouvimos a afirmação: "diante de uma superfície com dois orifícios não toque, pois poderá ter uma sensação desagradável (choque)". Imediatamente estamos submersos num universo de condicionais onde o conhecimento comunica para além da experiência direta. A partir dessa afirmação será comum que prestemos atenção a quaisquer ofirícios que se assemelhem à situação descrita a fim de evitar transtornos. Não haverá portanto estado puro de percepção e de ação que não tenha sido bombardeado por uma série de ensinamentos prévios que dizem respeito a facetas do mundo empírico. Nossa informação acerca do mundo empírico se forja, através da linguagem, para todas as condições possíveis de experiência e não apenas para aquelas que experimentamos no decurso de nossas vidas. A consciência que representa estes estados internos, que se norteia pela compreensão de normas empíricas possíveis, transmitidas pela experiência cumulativa dos outros que nos antecederam, não pode ser totalmente privada, visto que faz uso constante de proposições condicionais que versam sobre o mundo empírico.

Isto nos remete a algumas especulações: a introspecção não passa de uma percepção de estados internos. Podemos, através dela, perscrutar uma série de eventos que se passam em nossos corpos e em nosso pensamento. Este sentido de percepção interna é vital pois coloca a introspecção como um predicado da percepção, tendo como única peculiaridade o fato de que o objeto percebido está "dentro de nós"ou somos nós mesmos.

ii) Se a introspecção é percepção, suscita então os mesmos problemas que esta, quais sejam, realidade dos objetos percebidos, estatuto da sensação e da fenomenalidade, intérprete (homúnculo) para a cadeia das representações tal que se impeça a regressão infinita, etc.

iii) Se a introspeção é percepção interna, como pode ela perceber-se a si própria? Mais, como pode a consciência, que é percepção de si, perceber-se enquanto consciência? Embora possamos falar de consciência da própria consciência, não sei até que ponto não é isto uma armadilha linguística e uma ilusão introspectiva.

iv) Se a consciência é imutável como poderia haver aprendizado? Se há aprendizado, e se este se faz quer por experiência direta, quer por comunicação linguística, como podemos distinguir entre conteúdos fixos e "a priori" da consciência e conteúdos incorporados? Ou

 

 

 

 

tra formulação da questão anterior poderia ser a seguinte: será que todo o conteúdo é posterior e apenas a "forma" é "a priori", ou haverá também conteúdos prévios? Os ecos kantianos deste problemas são claros, porém o tratamento que devemos dar-lhes não é o da simples asseveração de entidades e sistemas de argumentos, mas devemos sobretudo encontrar enunciados legiformes, referentes anatômicos, hipóteses e comprovações empíricas para estas questões.

v) Se a "consciência" pode incorporar novos conteúdos como pode ser um "ente", se é moldável e passível de expansão, como pode interpretar segura e objetivamente o "dado"? Explico: sabemos que a "consciência" é alterada por experiência e aprendizado. Um maestro ouve o som de cada instrumento, enquanto o observador ingênuo percebe apenas um uníssono ao ouvir uma orquestra. Um pesquisador olha no microscópio e conseguediscriminar inúmeras estruturas celulares diferentes onde vemos apenas um jogo de borrões claros e escuros. Um romancista descreve com profusão de termos estados internos tais como angústia enquanto o homem comum tende a descrevê-la apenas como desconforto, mal-estar, etc. Será que ambos "experimentam" o mesmo estado, variando apenas a riqueza de comunicação e descrição dos mesmos? Será que a sensação primária e invariante é apenas uma e seu relato variável, ou a forja linguística enriquece também a vivência? Esta questão é fundamental pois devemos ter uma precisa caracterização dos estados de consciência, porém suas descrições podem variar ao extremo, dependendo do aprendizado, habilidades, etc. Se a vivência primária é a mesma qual a função de uma linguagem e de uma experiência que a enriquecem? Se há mudança na vivência através dos meios citados, como podemos pensar numa ciência objetiva dos conteúdos da "consciência" ou mesmo na "consciência" como "entidade" discriminável e passível de tratamento legiforme?

vi) Se a consciência é alterada por aprendizado e pela linguagem como pode ela pretender analisar objetivamente o que é essencialmente subjetivo, como pode ela tratar o "dado imediato", se este é interpretado à luz de contingências pretéritas e individuais? A subjetividade que se pretendesse objetiva não passaria de uma gama pobre de sensações brutas (raw feels) que carecem de linguagem para serem melhor descritas. Porém se a linguagem, no afã de refinar a descrição e percepção do dado bruto, o altera, não há possibilidade de uma ciência da consciência subjetiva.

vii) Tomemos o exemplo de uma criança em estágio pré-verbal. Não nos lembramos daquilo que vivemos nos primórdios de nossas vidas. Não se pode afirmar que a criança nestas fases não tenha consciência, mas é certo que não tem lembrança de tê-la tido. Os dados mais antigos de que se costuma ter lembrança remontam aos 2-4 anos de idade. A fase anterior se encontra no centro de nossas especulações no momento.

Se não temos lembrança de "estados conscientes antes de uma determinada idade, podemos supor que haja relação entre o fenômeno da "consciência" e a memória. Mais ainda, é a memória que permite a interligação dos fatos de tal forma a estabelecer um contínuo vivencial. A própria consciência deser um sujeito carece de uma identificação mnéstica de estados anteriores.

viii) Se não nos lembramos de ter "consciência" em determinadas fases de nossas vidas devemos considerar duas possibilidades: ou não temos capacidade de fixar memória dos estados conscientes daquelas fases ou então não tínhamos ainda a capacidade de "ter consciência". Porém a memória está presente na criança neste estágio uma vez que sem ela não ocorreria aprendizado. Portanto é lícito supor que a "consciência"inexiste ou existe de forma rudimentar. Embora se possa dizer que a criança já tem nestas fases capacidade de distinguir entre o prazeiroso e o desagradável, não se configuram eles reforços que careçam de consciência para se agregar aos fatos.

ix) Há explicações que correlacionam o aparecimento progressivo de certas funções com o grau de maturação do sistema nervoso central (processos de mielinização, seleção de grupos neuronais, etc). Não há quem tome a noção de plasticidade neural como uma "tábula rasa". Ao contrário, a experiência tem a função por vezes de desencadear circuitos que já estão previamente determinados (caso do reflexo de sucção que é uma das primeiras vias a "amadurecer"). Vê-se então que qualquer tese empirista radical, segundo a qual o produto de nossa atividade mental é fruto total e exclusivo de nossa experiência, não encontra eco na noção de plasticidade e maturação neural. Isto, no entanto, não garante que tudo esteja previamente gravado esperando apenas o contacto com a experiência que desvela o que já era "em potência".

Se admitíssemos uma plasticidade extrema, dificilmente teriamos como tratar as regularidades comportamentais de cada espécie. Cumpre notar que à medida que amadurecemos nossos sistemas neurais, que desenvolvemos nossa capacidade linguística, etc, também vemos surgir a "consciência" de-si e das coisas. A criança já é capaz nestas fases de desenvolver representações imaginárias e tratá-las como tais, sabendo claramente distinguí-las do "mundo real".

x) Visto existir correlação estreita entre "consciência" e "linguagem" e a segunda não ser fenômeno puramente aprendido, uma vez que existem pré- condições neurobiológicas para tal , podemos pensar que as àreas cerebrais que servem de condição para ambas são as mesmas. Isso no entantanto não é verdade pois conhecemos as estruturas que subjazem à linguagem no cérebro, por exemplo àreas de Wernicke e de Broca, enquanto que as estruturas subjacentes à consciência são conhecidas apenas sob a forma de condições necessárias, por exemplo: se consciência então corpo caloso íntegro, se consciência então formação reticular ativada, etc.

xi) Em caso destruição de centros de integração da linguagem (afasias ou distúrbios da linguagem que interferem com outros processos cognitivos ) ocorre deterioração progressiva de habilidades agregadas à consciência. Nestes casos é comum encontrar deterioração da compreensão e da concatenação de pensamento. Nào se pode afirmar com certeza a correlação que existe entre os fatos, mas está certo que a linguagem não é apenas um veículo comunicador dos "estados da consciência", mas também um agregado fundamental para o desempenho desta.

xii) Resumindo: não podemos dizer que existe uma consciência porque ela é mutável de incorporação de conteúdos e enriquecimento de funções com o aprendizado e com a linguagem. Não podemos tomar a introspecção como confiável porque acede a um "dado imediato" profundamente contaminado por expectativas, hipóteses prévias, interpretações, etc. A linguagem está localizada em àreas específicas do sistema nervoso central, particularmente nas áreas de Wernicke e Broca. Tanto consciência quanto linguagem se localizam no hemisfério cerebral esquerdo. Ambas se desenvolvem plenamente em fases mais ou menos coincidentes de desenvolvimento. Portanto, se a linguagem transmite uma série de condicionalidades sobre o mundo empírico e a "consciência" tem profundas conexões com ela, devemos estar atentos às dificuldades de uma objetivação do conceito de "dado imediato", tão cara a certas escolas de pensamento.

 

Uma última consideração acerca da "consciência" que caberia neste tópico diz respeito à simulação.

O tema da mentira, da alteração da verdade de certas proposições, da alteração de conduta externa tal que o observador externo não perceba o que se passa "dentro de nós" parece ser uma função bastante clara. Não faremos quaisquer comentários acerca de valores ou normas, mas deve haver alguma finalidade adaptativa na possibilidade de uso privado de determinados estados internos de consciência, de determinados "saberes". Infelizmente esta questão é algo mais complexa, pois não há domínio consciente de toda a mentira, existindo uma série de alterações psicológicas que a tornam inacessível também ao sujeito consciente. Este é o caso de certas vivências depositadas no "inconsciente" e transmutadas na consciência pela operação de alguns mecanismos tais como condensação, deslocamento, etc. Esta terminologia é psicanalítica, fugindo dos limites desse trabalho discutí-la. Por ora, cumpre apenas ressaltar que a consciência tem um predicado que me parece fundamental, qual seja o de desviar o conhecimento dos outros sobre os seus próprios "conhecimentos". Esta ação, no mais das vezes intencional, parece-me estar no centro do complexo processo de socialização do Homem. Mais ainda, sua reprodução em máquinas é extremamente complexa.

 

 

I I I.6. "Consciência" e Evolução

 

O uso da noção de "finalidade" é complexo em teorias. A abordagem teleológica é tomada como circular ou falaciosa pois estabelece que: "A" está para "B" numa determinada relação, digamos de implicação. Mais ainda, diz que "B" é "função ou finalidade" de "A". Pois bem, a relação de ambos está garantida, em ambos os casos, pela afirmação do conseqüente em "A implica B" ou pelo questionamento acerca da verdade da proposição "B é finalidade ou função de A". Suponha o seguinte exemplo: se amamos o próximo então sobrevivemos, ou a função do amor ao próximo é a sobrevivência, ou o amor ao próximo tem finalidade adaptativa. (O exemplo em questão não é jocoso. Há uma série de achados que mostram "genes" altruistas em populações de macacos e sua função na manutenção e sobrevivência do grupo). A falácia da afirmação do conseqüente seria algo do tipo: se sobrevivemos logo temos amor ao próximo o que não é válido no caso de situações específicas em que a sobrevivência se fizesse justamente à custa da eliminação dos concorrentes por falta de alimentos. Do ponto de vista lógico o que está proibido por esta implicação é exatamente a situação contrária, ou seja, não sobreviver por ter amado o próximo, dividindo com ele o pouco alimento. (Formalmente: P implica Q. Não Q logo não P. Modus Tollens. No caso teríamos P implica Q. Não Q logo P o que é não-válido).

Outra noção errônea comum em teoria da evolução é a confusão entre evolução e progresso. Este engano tem suscitado leituras equivocadas como a do darwinismo social e endossado até mesmo concepções racistas. Evolução na acepção darwiniana, e não na leitura baseada na obra de Spencer que vê nela o sinal do progresso, significa acaso criador de variação e seleção do meio sobre a variação mais adequada a ele. O acaso cria a variação de caracteres e a necessidade promove, pela justaposição entre o ser e o meio, a manutenção hereditária do predicado mais apto. A noção de processo é dogmática pois se baseia em preceitos anteriores. Podemos dizer que a respiração pulmonar é uma forma mais avançada de respiração que outra. Numa situação em que a poluição se tornasse tal que o oxigênio rarefizesse seria a forma mais adaptada aquela que conseguisse processar seu metabolismo com monóxido de carbono e não com oxigênio. O mesmo é válido para outras instâncias. Suponha-se alguém que argumente que as democracias são a mais evoluida forma de representação política e que somente um ser altamente evoluido pudesse criá-las. Se no entanto tivermos escassez de alimentos as formas tirânicas de governo, sem qualquer respeito ao indivíduo, podem ser consideradas melhor adaptadas às condições.

Poderíamos dar inúmeros exemplos de confusão de termos que suscitam estes absurdos no uso da teoria da evolução. Cabe frisar que não existe relação entre "forma adaptada" e "forma ideal, idealizada ou perfeita". A primeira noção é relacional e, portanto, fere a "pureza do ideal" visto ter um componente finalístico: para uma determinada situação prévia do meio ambiente posso dizer qual é a forma "ideal", o que não redunda em dizer que seja a forma ideal "em todos os meios ou mundos possíveis". A adaptação é contingente, enquanto a noção de "ideal" é universal. É errôneo ver no Homem mais "nobreza" ou "maior progresso" que no macaco ou na ameba. Não há corte valorativo ou universal na teoria da evolução que endosse tais afirmações.É certo porém que toda a espécie que tenha capacidade de atuar frente ao meio, criando subterfúgios para enfrentar-lhe as dificuldades, tende a resistir mais tempo. Quando vemos o lançamento de uma sonda ao espaço para exploração do universo, a manipulação do código genético com vistas a interferir nos caracteres da própria vida, etc, podemos ter certeza de que não somos criaturas tão simples quanto as amebas e que nossa capacida de "criação, transmissão e crítica" do "conhecimento" são variáveis que se devem considerar na compreensão do fenômeno adaptativo humano. A forma de organização do H.sapiens, no entanto, tanto quanto permite esta maior interferência nas condições do meio, também cria empecilhos para si-própria, tais como resíduos atômicos tóxicos, etc.

Podemos seguramente dizer que as formas de vida que tenham capacidade de antecipação do futuro, de representação das hipóteses, de predição quanto a desdobramentos condicionados, etc, poderão mais facilmente se antepor às mazelas ambientais nocivas. A "consciência" é justamente um desses traços evolutivos que torna uma determinada forma biológica capaz de examinar metas e implicações, de testar hipóteses sem experimentá-las diretamente - o que permite maximização dos atos perante o meio - , optando-se por agir apenas naqueles casos em que o exame prévio aprovou a margem de acerto.

Parece certo que qualquer forma de vida que possa retirar informações do meio, manipulá-las, reordená-las, estabelecer-lhes vínculos legiformes, etc. tem excepcional condição de adaptação. Cabe perguntar se todas essas habilidades estão necessariamente atadas à "conciência"?

É possível imaginar uma máquina que realiza todas estas funções sem ter consciência de realizá-las? É necessária a noção de "consciência" para justificar funções tais como antecipação condicional, exame e decisão de estratégias para maximização de resposta, etc? Creio que, embora o termo "consciência" costume acompanhar a descrição dessas funções, podemos imaginá-las desvinculadas daquela. Explico:

i) Podemos criar máquinas que desempenham funções mentais próximas à humana e que nem por isso exibem consciência.

ii) Pode-se objetar dizendo que essas máquinas não reproduzem todas as funções da consciência, pois se o fizessem não teriam comonão exibí-la. Por exemplo a questão de se são elas simples manipuladores sintáticos ou se exibem genuina compreensão não encontraria problemas, bem como a pergunta se são elas dotadas de estados intencionais legítimos ou se são apenas objeto de uma imputação intencional externa pela vontade de quem as constrói. (Reproduzindo todos os efeitos não teríamos como não reproduzir todas as causas. Variante do princípio de Leibniz).

iii) Supondo i e ii como corretos, quais seriam outras funções ou predicados da consciência que a tornassem um traço adaptativo?

Responder a esta pergunta é entrar num campo de especulação absoluta. Farei algumas considerações pessoais acerca das outras funções da consciência, além daquelas de antecipação, exame e valoração de metas e hipóteses.

Creio que a consciência subjaz a uma vivência errônea mas útil: liberdade. Sabemos que nosso sistema nervoso central (SNC), como qualquer sistema físico, funciona de acordo com as leis que regem a matéria, os circuitos elétricos, etc. É um sistema capaz de manipular informação e o faz através de códigos que utilizam as freqüências de disparo de impulso nas fendas sinápticas. Podemos descrever o que se passa no SNC de um poeta enquanto escreve versos como sendo uma equação de estado elétrico de todas as estruturas neuronais que participam daquela função naquele instante. O sujeito, no entanto, não "experimenta" equações elétricas de estado, mas "consciência". Ainda que fossem mono-referentes certamente não são semânticamente idênticas. A gama de conteúdos da consciência é fenomenal, linguísticamente ou imagísticamente descritível, não carecendo de qualquer outra linguagem, e.g., fisicalista para sua descrição. Ainda que os referentes para os conteúdos fenomenais da consciência sejam os mesmos daquelas equações de estado elétrico que descrevem o conjunto da atividade elétrica cerebral, a compreensão ou significado de ambas as séries- fenomenal e neuronal- não é a mesma. Para entender a diferença entre mono-referência e significados distintos vale a menção a uma obra clássica:

FREGE eatabeleceu uma clara diferenciação entre referência (extensão) e significado. As proposições "A estrêla da Manhã é a estrêla da Manhã", "A estrêla da Manhã é a estrêla da Tarde", "A estrêla da Manhã e a estrêla da Tarde são a mesma e são o planêta Vênus" são diferentes. A primeira é verdade em virtude de sua forma (analística). A segunda é verdadeira em função de conhecimento empírico posterior à descoberta expressa na terceira proposição (sintética, contingente). Embora todas tenham como referente "Vênus" não se pode dizer que a primeira e a segunda tenham o mesmo significado.

Podemos dizer, a partir de uma ontologia mono-substancial, materialista-cerebralista, que o estado que descreve um sujeito como "isto tem gosto de maça" é o mesmo que "a descrição do estado elétrico de seu SNC naquele momento". Tenho identidade de referente para as duas proposições, mas o significado de ambas é diferente. Podemos sofisticar ainda mais a questão: sabemos que a substância que produz o gosto de maça é o amilnitrato, da qual conhecemos a fórmula estrutural, comportamento físico-químico, etc. Novamente "gosto de maça" e "amilnitrato" podem ter o mesmo referente, mas não têm o mesmo significado. A noção de "sujeito que experimenta" é crucial na forja do significado ainda que tenhamos identidade de referência.

Nós, enquanto sujeitos da experiência, não experimentamos freqüência de disparo ou variações ondulatórias. Experimentamos sensações visuais, imagens, sons, cores, etc. Nada conhecemos acerca da linguagem dos "referentes neuronais" e ainda assim temos uma linguagem própria, um sistema de interpretação daquilo que se nos apresenta no campo fenomenal da "consciência".

Tomemos a noção de "representação". Ainda que possamos duvidar da realidade do mundo exterior, sabemos que aquilo que se apresenta em nossas "consciências" não é o objeto, mas uma imagem do objeto. Sabemos ainda que a sensação visual, bem como todas as outras, passam por uma série de estágios na cadeia das aferências nervosas antes de brotar na "consciência". Sabemos que as áreas de projeção cortical das sensações as analisam fracionadamente. As áreas primárias e secundárias analisam a imagem do objeto imediato, enquanto as áreas terciárias e de integração processam a imagem dentro de contextos anteriores, de vivências passadas, etc. Isto tudo se passa antes da imagem do objeto tornar-se "consciente".

Pode-se dizer, sem preocupação quanto às objeções sistemáticas de cunho epistêmico, que o "objeto" impressiona nossas terminações sensíveis (terminações nervosas periféricas especializadas em recepção de sensibilidade específica-visual, tátil, auditiva, etc) e estas enviam mensagens para as áreas primárias, secundárias e terciárias do cortex sensorial, formando assim a "imagem do objeto". Da etapa de projeção terciária para diante ocorrem intensas comparações dessa imagem com outros fatores da experiência, quer com relação àquela classe de imagem, quer com relação a classes a ela agregadas por experiência prévia contingente ou por relação significante aprendida. Somente ao final deste longo processo, que tem uma clara delimitação em termos de atividade eletroencefalográfica, é que ocorre o aparecimento da imagem na consciência. (Esta fase mostra claramente um maior contingente de estruturas e regiões em atividade elétrica). A etapa da "consciência" é última e vem acompanhada de uma série de análises subjacentes. Diz-se que há "apercepção" do objeto no caso; expressão cunhada para mostrar que além da percepção passiva, ocorrem vários níveis ativos de cotejamento da "imagem perceptual" com a realidade prévia do sujeito percipiente. A "consciência" representa um passo além da simples "imagem do objeto imediato". Nas áreas primárias e secundárias já se delineia a "imagem do mundo". Na "consciência", poderíamos dizer metaforicamente, é que surge uma "imagem mediata do mundo", algo tão individual quanto cada sujeito, embora tão uniforme quanto às coações biológicas da espécie.

 

a) a imagem da "imagem do mundo"

Esta maneira de chamar aquilo que aparece na "consciência", embora possa parecer simples jogo de palavras, procura dar conta do fato que aquilo que se nos apresenta no campo da consciência é uma reinterpretação de uma representação que , por sua vez, é também interpretação do dado sensorial à luz da informação prévias do sistema.

A noção de "imagem da imagem" tem ainda algumas outras características:

i) Leva em conta uma série de fatores que ultrapassam a imagem propriamente dita, ligando-a a outros contingentes de reforço, vinculados ou não à história pessoal do sujeito percipiente.

ii) Utiliza uma "linguagem" de apresentação e codificação diversa da "linguagem fisicalista-neuronal", embasante do processo em todos os níveis.

Com base nas características i e ii podemos formular algumas indagações interessantes:

A. Se todas as transformações neurais se processam coagidas por uma mesma gama de leis - aquelas que dizem respeito aos sistemas físicos-neuronais -, por que a "consciência" opera com uma linguagem diferente da linguagem "fisicalista" do processo embasante? Explico: serão os mesmos referentes e apenas linguagens de descrição diversas ou o "conteúdo" descritível pela linguagem fenomenológica da consciência" é diferente do processo neural descritível pela linguagem fisicalista da neurofisiologia?

B. Se as leis que regem o Sistema Nervoso Central são de caráter determinístico, ou determinístico-estocástico, por que haveria de emergir na "consciência" a representação de "liberdade" e de "vontade"? Seríam elas correlatos semânticos para o fluxo estocástico de informação que se processa ao nível infra-consciente? A última explicação quer dizer simplesmente que o comportamento, embora condicionado por uma multiplicidade de variáveis, longe de operar "ao acaso", pode ser tratado como um sistema estocástico, visto ser regido em última instância pelas leis da física neuronal. Quanto ao problema da relação entre liberdade e imprevisibilidade não devemos confundir a incerteza da posição de uma partícula, num dado instante, com sua suposta "liberdade" de "ir e vir", com sua possibilidade de agir de outra maneira que não a obediente às leis físicas.

Devemos portanto acrescentar às capacidades da "consciência", além de fazer "imagens de imagens", também a de tratar a multiplicidade das variáveis infra-conscientes como "vivência-de-vontade". O sistema determinístico neuronal que subjaz à consciência é também o que a faz "pensar-se" livre para escolher "conteúdos", "atos" e "propósitos". É estranho que haja transmutação de linguagem, da linguagem físico-neuronal infra-consciente para a linguagem ordinária-mental da "consciência", e que além disso ainda haja a agregação de predicados novos tais como "liberdade", contraditórios com os sistemas físicos. Tudo aquilo que é regido por alguma forma regular de concatenação de partes, por algum vinculo de causalidade, viola, a meu ver, a idéia central de liberdade, contrariando a previsão possível e nômicamente fundada. Creio que ocorre uma agregação genuína de "pseudo-predicados" no campo fenomenal-mental da "consciencia" o que a torna supostamente capaz de agir "livremente" ao nível da percepção de si e de seus estados.

 

Quando se abre o cérebro de um indivíduo consciente, o que é possível fazer sob a ação de anestésicos locais, e se inserem eletrodos que estimulam regiões bastante específicas, tem-se acesso a dois campos de observação: um que é a observação "in loco" de estruturas anatômicas funcionando; outro que é o relato do indivíduo acerca dos estados que experimenta

De posse de instrumentos sofisticados posso descrever apenas as equações elétricas que denotam o funcionamento do SNC naquele dado instante. Não descrevo palavras, imagens, contextos nem emoções, mas apenas alterações ondulatórias numa ou noutra região anatômica. Pergunto ao sujeito o que está sentindo ou pensando. A resposta me vem sob a forma de palavras e, para o sujeito demandado, sob a forma de conteúdos da consciência. O sujeito enquanto tal é o único participante desses conteúdos que eu, mesmo de posse de sofisticados instrumentos de medida, não discrimino ou posso captar, contentando-me apenas com seus "referentes" elétricos localizados.

A linguagem ordinária está profundamente comprometida com os conteúdos da série consciência-fenômeno-introspecção. Sirvo-me dessa linguagem ao tentar estabelecer uma correlação sistemática entre "estados conscientes vividos e descritos" e "alteração eletro-neuronal" concomitante. A vivência de "conteúdos da consciência" somente é possível para o sujeito em si que experimenta sua unidade. Nós nos devemos contentar com dois outros níveis: o da linguagem ordinária que os descreve ou o da linguagem físico-neuronal que descreve os eventos cerebrais subjacentes. O "fisicalismo" pode apreender toda a gama de alteração dos "referentes", mas a linguagem e o "fenômeno" da "consciência" somente são acessíveis totalmente ao sujeito "em-si". Qual a razão para que o sujeito experimente sensação tais como liberdade e vontade, quando o que vemos em nossos instrumrntos de medida eletrofisiológica é um "todo" que se comporta de acordo com leis físicas? Os mais apressados ontologicamente imputam esta aparente cisão de predicados à diversidade de "substâncias". A discrepância de predicados e de linguagens descritivas de tipos de fenômenos embasa esta multiplicação das entidades. Voltemos a outras considerações a esse respeito:

i) O cérebro como um todo é um sistema plástico e móvel dentro de certos limites impostos por sua "forma a priori" biológica.

ii) O cérebro (SNC) é condição necessária para a "consciência".

iii) Supõe-se que a porção infra-consciente da atividade cerebral opere dentro de preceitos determinísticos típicos de sistemas eletrônicos similares. Estes determinismos podem ser de vários matizes, havendo lugar até mesmo para certas formas de "acaso". Cabe salientar como ponto nodal, no entanto, que mesmo o "acaso" em sistemas físicos é passível de alguma forma de tratamento legal.

iv) A "consciência" é um predicado do cérebro humano.

v) A consciência opera com linguagem ordinária-mentalista enquanto seus "referentes" neuronais somente são descritíveis em linguagem neuronal-fisicalista.

vi) A consciência "se crê" livre e plena de vontade.

vii) A consciência é privada, não havendo até o momento experimento que correlacione suficientemente, e sob a forma de identidade-explicativa, estado neuronal e conteúdo consciente. Podemos, quando muito, afirmar formas de ação ou de representação (motoras, visuais, etc), mas não o conteúdo destas.

Decorre destas afirmações que, ainda que se trabalhe sob rígida ontologia mono-substancial materialista, poder-se-ía dizer que predicados da "consciência-linguagem" tais como "indeterminismo", "privacidade", "inacessibilidade quanto aos conteúdos para o observador externo, seja sob a forma de descrição físico-neuronal, seja sob a forma de descrição mediada por linguagem ordinária", "liberdade", "vivência de atos volitivos", etc, seríam predicações não tradutíveis-redutíveis em linguagem fisicalista o que nos colocaria na difícil tese do monismo de essência com dualismo de predicados.

A questão da emergência é problemática. Primeiramente torna-se complicado supor que havia "novidade" no arranjo das partes tal que os agregados não se expliquem pelas propriedades dos elementos constituintes. Porém no momento o que nos importa ressaltar é que a emergência mental insere predicados não-redutíveis ao neuronal (em tese) e mais, contraditórios, em relação ao físico. Liberdade, vontade, indeterminismo são predicados emergentes da "consciência" e, a meu ver, incompatíveis com um sistema físico. Como pode a predicação de um estado complexo ou de um agregado contrariar predicados do estado simples? Podemos dizer que a água é transparente e que a molécula de água não é capaz de exibir esta propriedade isoladamente. Outra coisa no entanto é dizer que a molécula de água é não-transparente e que a água o é! O esquema é válido para todos os predicados comumente adstrito à consciência. Nenhum neurônio é livre, cheio de vontade, consciente, etc. A consciência que brota da reunião de uma massa de neurônios é. Esta aparente contradição na emergência predicativa das funções molares da consciência me parece ser uma de suas grandes características adaptativas. Essa tese é central e será desenvolvida em outros pontos deste trabalho.

 

b) Princípio de contradição, lógica e consciência

 

Um dos grandes achados da Psicologia contemporânea é de que, ao contrário do que muitos pensavam, os seres humanos não utilizam um único princípio lógico, ou uma única lógica, nas suas situações problemáticas cotidianas. Violam-se constantemente cânones lógicos tradicionais e o resultado, antes de ser aberração, na média conduz a soluções satisfatórias face aos requisitos.

Diante disso, podem-se propor variadas teses: a de que a racionalidade é múltipla, a de que a lógica que comanda o SNC édiferente da que comanda a vida mental, etc. Suponha-se, à guiza de exemplo, que a lógica do SNC seja obediente aos princípios da Lógica clássica e que a lógica do mental seja paraconsistente. Poderíamos supor que a irredutibilidade se dá pelo fato de que o princípio que descreve as transformações no nível neuronal é diferente do princípio que comanda as transformações no nível mental. A dificuldade se dilui quando investigamos a consciência. Através dela somos capazes de deixar que uma atitude siga seu curso inconsciente, automático, ou se necessário, mudamos o padrão para um domínio mais restrito. Explico: a consciência decide através de uma série de exames qual a lógica melhor adequada para a solução de um dado problema.

Portanto ainda que suponhamos que a lógica que rege os automatismos neuronais é diversa da lógica do indivíduo psicológico, devemos aceitar que se a consciência escolhe entre ambas as lógicas em suas operações, então deve ter ela "conhecimento"de ambas. A consciência é nesse sentido o depositário de todos os princípios possíveis. O estudo da redução passa necessariamente por essa constatação. Conhecida a consciência, sua função e princípios, se terá, ato contínuo, um domínio em que tanto a lógica neural quanto a lógica mental coexistem.

 

É possível fazer uma leitura algo forçada do princípio de contradição que me parece ilustrativa de uma das funções da consciência.

Um enunciado, nas lógicas clássicas, não pode ser verdadeiro e falso. Suponha-se que estamos trabalhando com animais que, por instinto de sobrevivência, ao ouvirem o ruído de um predador específico para sua espécie, fujam ou esbocem imediatamente uma reação de defesa. O animal diante da possibilidade de ser ou não um predador, de estar apto ou não para o ataque, etc, tem duas opções: interpretar a situação como sendo a iminência de um predador que virá a exterminá-lo ou, ao contrário, ser um não-predador de ruido semelhante àquele, um erro sensorial, etc. Suponha que este animal esteja diante de outra presa e que diante do estímulo citado deva decidir se foge, abandonando a caça, ou se fica, privilegiando a hipótese de "a" ser "não-a", fato que então não representa perigo e nem redunda na perda da caça recém conquistada. Pela dinâmica dos instintos e pela observação ingênua do mundo animal sabemos que o animal acossado interpreta quase sempre "a" e "não-a" como idênticos, ou melhor, não examina ou privilegia jamais a hipótese de não-a, abandonando o local e a presa diante da possibilidade de perigo. Chamo isso de "violação instintiva do princípio de contradição"ou de semântica adaptativa, onde os valores de verdade se impõem igualmente tanto para "a" quanto para "não-a", desde que haja perigo na interpretação. Se há risco não se costuma considerar, para efeito de ação, o não-risco de perigo.

O sujeito consciente é aquele que tal como nós examina as múltiplas possibilidades diante da constradição. Não diria que o faz todo o tempo, pois comumente agimos rápida e extra-conscientemente diante do perigo com comportamentos próximos ao do animal descrito. Há ganho adaptativo em se considerar a possibilidade do perigo como perigo real, porém há maior ganho, do ponto de vista de médias estatísticas, se levarmos em conta o possível e o provável como sujeitos a exame e a decisão controlada. Do ponto de vista individual isto pode não representar muito, mas se multiplicarmos as ocorrências potencialmente perigosas, a evasão constante representará perda desempenho. A avaliação dos "riscos", o exame cuidadoso das implicações possíveis desta ou daquela ação trazem maximização dos desempenhos do indivíduo e da espécie como um todo. Se um mecanismo pudesse fazer o sistema de segurança máxima dos instintos de preservação trabalhar com o cruzamento de informações e a ponderação probabilística teríamos perda da segurança individual, mas melhor desempenho médio da espécie no que tange à capacidade de conservar suas "presas recém-conquistadas". É justamente esta capacidade que me parece ligada à consciência: a investigação de hipóteses contrárias, o cruzamento de informações, a ponderação de riscos estatísticos e, finalmente, a decisão, por vezes inibidora do instinto de fuga. A consciência interpreta desta forma o princípio de contradição, adjudicando às proposições opostas valores de verdade calcados em ponderações relativas e riscos decididos. Por vezes se engana, mas estatisticamente temos enorme ganho no desempenho médio. Temos assim dois alicerces básicos da atividade consciente: avaliação de implicações diante de contrários e decisão, eventualmente contra-instintiva, com o fito de possibilidade de ganho.

O primeiro pilar, qual seja, a ponderação de possibilidades estatísticas pode ser simulada em computadores mas o segundo - decisão -, não é reprodutível em máquinas, não parecendo ser um tipo natural tradutível em linguagem fisicalista.

Diria então que a consciência opera com uma "semântica" contra-instintiva, dentro dos moldes do princípio de contradição, maximizando desempenhos em função de informações passadas, conscientes ou não, e tendo sobretudo a "vivência da decisão livre"como apanágio.

Concluindo podemos asseverar que o processo infra- consciente ocorre dentro dos moldes da análise de dados e tratamento estatístico destes, porém a "decisão" e sua concomitante "impressão de liberdade"são características típicas da "consciência". Ora, qual será o ganho adaptativo de uma estrutura que desconhece os processamentos sub-liminares e agrega ao vetor estatístico resultante a impressão de uma "decisão livre e individual"?

c) A consciência como engano adaptativo e funcional

 

Podemos ver, diante do exposto, que a consciência opera uma gama variada de predicados, sendo que muitos deles são perfeitamente realizáveis em sistema físicos (computadores). Parece que apenas atributos tais como liberdade, vontade e decisão são os mais problemáticos de se pensar reproduzidos por máquinas.

Imaginemos então a "consciência" como intérprete da "imagem do mundo", privada de contato com a linguagem neuronal subjacente, bem como com a multiplicidade de cálculos estatísticos infra-conscientes. Aquilo que brota em seu campo de existência é apenas a "impressão"de agir, desconhecendo eventuais cálculos que engendrem tendências preferíveis no nível infra-consciente. Mais ainda, por vezes é lícito supor que determinados impasses estatísticos devam ser tratados por uma escolha metodológica que costumamos chamar de "normas de conduta de valores". Diante de impasses o sistema nervoso deve ter "juízes" capazes de, no "silêncio da lei", criar "jurisprudência". Tanto normas e valores, tratados aqui como proposições necessárias, quanto decisões ex posto, contingentes, servem de modelo do que pudesse ser a função da consciência no sistema. Os amantes dos devaneios linguísticos poderiam ver aqui uma analogia interessante: a "consciência" como ente da "prudência". "Agir conscientemente"e "agir prudentemente" são de certa forma sinônimos na linguagem corrente.

Porém, não é esta a linha argumentativa. O que aconteceria se percebessemos que aquilo que chamamos de "vontade e de decisão" são apenas a confrontação de um cálculo probabilístico infra-consciente tratado de acordo com determinado enfoque metodológico? Estreitar-se-ia certamente a noção de sujeito livre. A liberdade, a meu ver, seja ou não um tipo natural, é o grande impasse na redução da "consciência" à "neurifisiologia". Se não for um tipo natural, como já vimos autores que defendem que as categorias do senso-comum e da psicologia do senso-comum não o são, qual é exatamente sua função? Por que a "ilusão" da decisão e da liberdade da consciência, desconhecendo as determinações físicas que a ela subjazem, tem tanta importância na vida comum e mesmo na história do pensamento? Creio que é engano pensar em tais categorias como tipos naturais; porém ainda que sejam recortes não-naturais, impossíveis de tratamento legiforme, são entidades ou conceitos artificiais com profundo caráter adaptativo.

A "consciencia" - ente, categoria, predicado ou função emergente -, deve representar ganho evolutivo e adaptativo para o homem, particularmente naquelas "funções" de difícil reprodução, até o momento, em máquinas. Imagine-se uma máquina teleológica, programada para obtenção de determinado fim, que não exibisse "consciência", nem tivesse a "impressão de agir livremente". Mais ainda imagine-se que se pudesse reproduzir todas as variáveis concorrentes na gênese causal dos "comportamentos" desta máquina. Contrastando com esta hipótese, pensemos um pouco nas características do Homem e no tipo de sociedade em que vive. Embora frágil do ponto de vista físico, se comparado com outras espécies, em grupo obtém resultados que representam um corte brutal em relação a todas as outras forma de vida em grupo. Não podemos dizer que seja melhor ou mais adaptado que outras espécies, porém é fato que é o mais complexo e sofisticado.

A noção de sujeito de responsabilidade, de decisão, de ação livre, etc, são vivências conscientes, desconhecedoras de determinismo neurais infra-conscientes, me parecem ser as pré-condições para a formação de um tipo de sociedade e de cultura como a humana. Ainda que estas "vivências da consciência" sejam enganos do ponto de vista da linguagem fisicalista, do determinismo e da causalidade, representam o salto que propicia a construção de uma sociedade complexa baseada no noção de contrato entre as partes. Ora, a noção de contrato é incompatível com o determinismo, com a ausência de liberdade e de personalidade. Todas estes pré-requisitos contratuais, e.g., sujeito e liberdade, desapareceriam se fossemos capazes de discernir no campo da consciência as complexas computações que a engendram. Seria impossível erigir um sistema jurídico e moral se a noção de "compulsão" detrminísta, ainda que estatística, interviesse. A noção de liberdades e outras a ela agregadas, todas vivências conscientes, me parecem ser enganos do ponto de vista físico, irredutíveis em linguagem fisicalistas, afrontadoras do9s princípios de causalidade, etc; porém são vitais para que possamos a partir delas erigir determinadas noções fundamentais para a formação da sociedade. Se nos percebessemos títeres de operações vetoriais estatísticas realizadsa num meio físico-neuronal não seríamos capazes de organizar nossa sociedade nos moldes em que o fizemos. A consciência é nesta leitura como que um intérprete que crê ser indivíduo, livre, cheio de vontade e capaz de decidir.Isto embasa nossa linguagem, nossa sociedade, nosso direito, nossa cultura. Voltarei a essa tese no final do trabalho mas creio que o ponto central se resume em ser a "consciência" ou parte dela uma função "enganada" que propicia um salto qualitativo brutal no que tange a fazer do físico uma pessoa; da confrontação das probabilidades um valor; da ação motora uma atitude; do logos uma ethos. A "consciência" é então o predicado emergente, enganado, que permite que o físico se confunda com aquilo que muitos creram ser espírito, mas que significa apenas sujeito responsável e criador, jurídica e socialmente apto.

 

 

III.7. Consciência e fenômeno

O problema mente-corpo é recente nesta formulação na história da filosofia remontando a Descartes, porém alguns de seus temas já se encontram presentes desde o pensamento antigo. Voltando aos gregos, encontramos a filosofia cética que recusa qualquer instância de verdade, convidando o leitor a promover uma suspensão de todo juízo veritativo (epoché) por impossível e dogmático que é. A única certeza que se tem é do fenômeno, do "aparecer", e toda a conduta se deve pautar por ele e pelos usos e costumes, sem qualquer indagação acerca do que a ele subjaz. Descartes retoma a questão cética quando se indaga qual a garantia diferenciadora entre a realidade da percepção e a representação onírica.

O pensamento cético opera interessante transformação da região de positivação do conhecimento. Negando qualquer certeza e verdade às proposições ordena que tudo venha acompanhado da expressão "aparece-me".É justamente esta locução "aparece-me..." que instaura duas "entidades" distintas: o fenômeno e o para quem este "aparece", i.é., para um sujeito. Não teria sentido falar em aparecer sem que houvesse um sujeito percipiente. O corpo, para o cético, não passa também de "fenômeno", porém certamente há um lugar para onde todos os "fenômenos"convergem e se positivam: a "consciência". Ela é, portanto, a "região"onde se descortinam o "mundo" e o próprio "corpo", todos eles "fenômenos".

Para o pensamento cético todas as proposições de conhecimento são equipolentes (têm igual valor) e nos movemos num mundo onde apenas o "fenômeno" constitui certeza irrecusável. A influência desta escola de pensamento sobre nós foi avassaladora e muito do que se construiu posteriormente no que tange à relação mente-corpo se deve a esta distinção entre fenômeno e "consciência".

Muitos sistemas filosóficos se construiram na tentativa de fazer frente aos argumentos céticos. Em Descartes a região da certeza que responde à impossibilidade do conhecimento é a noção de "consciência de um sujeito". O "pensar"e o "perceber-se" sujeito do pensamento e do descortinamento do fluxo fenomenal, instauram a clivagem ontológica necessária para que algo adquira estatuto de ser. O "ego" cartesiano já está sugerido nos escritos céticos quando vemos que o operador "aparecer" se faz acompanhar do pronome, "aparecer-me", colocando o sujeito consciente como "receptáculo" para o fenômeno. Mas se não se pode ter certeza de nada, se a diafonia (juízos conflitantes) não se resolve senão pela epoché, como podem existir duas regiões distintas de positivação no universo: fenômeno e sujeito consciente (ego) ? Se a "consciência" é também fenômeno por que não a apreendemos dos outros seres que para nós também são fenômenos? A noção de fenômeno e de "aparecer", bem como a solução do ego cartesiano, introduzem um dualismo subreptício uma vez que distinguem duas hierarquias de "entidades" - as puramente fenomenais e as capazes de, em sendo fenômeno, também os perceberem enquanto tais. (A mente e particularmente a consciência são justamente essas regiões da "fenomenalidade" que gozam do privilégio de serem fenômeno e ao mesmo tempo condição para o aparecer destes). O corpo, enquanto suporte da consciência, não passa de fenômeno e a consciência sem corpo, porque fenômeno, é a região especial desse universo aparentemente "monista-fenomenal", onde se descortina a fenomenalidade. O fenômeno só o é se for para uma consciência, não tendo sentido em falar dele se não se falar daquilo que o pode apreender. O fenômeno então goza de uma predicação oposta à da consciência. Um aparece para outro que o recebe. Ora, se não temos identidade de predicados não podemos asseverar que tudo é fenômeno. Há duas regiões de atributos distintos, portanto "consciência" e "fenômeno" não podem ser idênticos.

Interessa-me mostrar que as noções de representação em oposição ao objeto que a engendra, de essência e aparência, de objeto e fenômeno, de consciência e corpo, são todos pares opostos que dão lugar em um ponto ou noutro a multiplicações substanciais (dualismo). O "mentalismo" subreptício do operador "aparecer"é justamente o situar uma esfera de recepção para o "fenômeno" - a "consciência do sujeito -, que é descontínua em relação ao corpo mediato, também fenômeno, sendo imediatidade pura. Grande parte dos argumentos contrários à redução da consciência ao corpo, ou do mental a este, rugem deste operador fenomenal cético que, pretendendo suspender os juízos, cria uma assimetria fundamental num mundo pretensamente homogêneo. A consciêncianão pode ser fenômeno pois possui atributos que estes não possuem. Não poderá ser fenômeno tampouco pois não pode ser percebida pelas outras "consciências" nem poderá ser "consciência da própria consciência" pois, se for fenômeno que é um "para uma consciência", não poderá ser simultaneamente um para algo e o próprio algo. Se tiver, no entanto, a propriedade de ser um para-algo e um algo, será fenômeno diverso dos outros que são apenas para-algo.

 

Procuramos mostrar neste item que noções tais como imediatidade, irrecusabilidade, imaterialidade, condição de suporte da certeza, da objetividade, etc, são predicados que se costuma agregar à consciência e me parecem encontrar eco primeiro nas páginas céticas acerca do fenômeno e do "sujeito impírico". Só há fenômeno se houver "consciência" e ambos não são idênticos. Eis uma das portas por onde entra o dualismo, quer de essências, quer de predicados.

 

III.8. Consciência e linguagem

 

Exceto pela capacidade linguística não há diferenças qualitativas relevantes entre os sistemas nervosos dos animais superiores (mamíferos, vertebrados)

Podemos encarar "consciência" sob dois prismas: enquanto tela fenomenal, imagética, e como propósito, vontade, decisão, teste.

"a diferença entre a ameba e Einstein é que embora ambos façam uso do método de experiência e eliminação de erros na esperança de aprender, a ameba detesta errar, ao passo que Einstein é acicatado por isto"

 

Se tomarmos as considerações acima em conjunto será lícito supor que tanto a consciência quanto a linguagem são dois predicados adaptativos aparentemente exclusivos do Homem. Pode-sedizer que, embora não sejam em absoluto idênticas ou sinônimas, há um certo parentesco entre ambas, visto surgirem simultâneamente na mesma espécie animal. Sugeri em um tópico anterior (Cf. III. 5) que tanto a capacidade refinada de expressão linguística, quanto a lembrança consciente, se dão em estágios etários semelhantes. Outra coincidência fundamental. Referi-me também à relação entre aprendizado, capacidade de manipulação de unidades semânticas e estados de consciência. A pobreza verbal parece ser parente de uma consciência parca. Os comportamentalistas (behavioristas) ao tentarem reduzir a explicação dos estados internos, mentais, às suas manifestações externas esbarram violentamente na consciência que, sendo um predicado mental, externa muito pouco seus conteúdos, salvo pelo uso intencional da linguagem. Os sinais externos desta estão longe de fazer juz à gama de predicados que comporta. Imagine o leitor que se está olhando para uma pessoa imóvel e de olhos fechados. Quais seriam os sinais externos e observáveis que pudessem habilitar o observador a dizer qualquer coisa a respeito dos "estados de consciência" do sujeito observado em questão? O uso da linguagem é fundamental neste escrutínio. Qualquer redução da "consciência" a seus "observáveis" passa necessariamente pelo uso da linguagem que descreve e externa seus estados. Porém, como citamos anteriormente (Cf. III. 5), há sempre a possibilidade da dissimulação, da mentira e de outros artifícios, intencionais ou não, que adulteram a relação entre sinal externo, linguístico ou não, e referentes conscientes internos.

Outro abismo igualmente considerável é a tentativa de redução da "consciência" a padrões de atividade neuronal. Imagine-se que pudéssemos conectar o sujeito observado em questão a um elotroencefalógrafo e medir-lhe a atividade elétricas em regiões específicas. Poderíamos, quando muito, dizer que determinadas condições necessárias de cunho neurológico estão presentes para asseverar que o sujeito está consciente, mas nada poderíamos dizer acerca dos conteúdos que experimenta. É bem verdade que podemos delimitar com este procedimento algumas áreas de atividade e seus correlatos de classe. Explico: posso dizer que há atividade em áreas visuais ou em áreas auditivas, mas não conseguimos dizer que imagens ou sons alí ocorrem. O problema dos conteúdos, ou membros individuais de uma classe (p. ex. na classe das imagens, qual imagem), está intimamente ligado à descrição linguística e intencional do sujeito. Porém, como vimos em outra parte deste capítulo (Cf. III. 5), a linguagem capaz de descrever estados internos, é aprendida contingentemente após o nascimento, o que torna débil a garantia de relação necessária entre seus termos e os referentes internos que descreve.

A consciência, portanto, ou parte dela, aquela possível de equívoco, visto lidar com porções contingentes da da linguagem no afã de descrever relações necessárias no mundo, é a que me interessa aqui, porque juatamente também é ela- a consciência- que representa metas e conteúdos e tenta a todo custo testar hipóteses e engendrar soluções. Este predicado da consciência, qual seja seus conteúdos e linguagem falha de que se utiliza no afã de evitar o solipsismo absoluto, é que deve ser cotejado com a capacidade linguística, predicado essencialmente humano, de delimitação neurobiólogica clara na escala evolutiva.

O binômio consciência-linguagem é, a meu ver, representativo dos dois traços fundamentais do Homo sapiens. Não subsumem apenas representação, intencionalidade, etc, mas operam de forma adequada, contra-intuitivamente, categorias tais como liberdade, responsabilidade e juízo. Esses paradigmas da linguagem, clivada entre sujeito e predicado, e da consciência como identidade de um sujeito que não se reduz ao seu corpo, percebendo-o como "fenômeno", é o que possibilita a diferença "entre a ameba e Einstein" de que fala Popper, tornando possível um determinado padrão de organização social, cultural e moral. Tanto a consciência quanto a linguagem se nutrem mutuamente, sendo a primeira condição para grande parte dos significados da segunda, e esta por sua vez condição para a expansão dos conteúdos daquela atráves do aprendizado. Embora as coações organísmicas "a priori" sejam muitas para ambas, o processo de interação torna qualquer tentativa de legalização de seus conteúdos um "céu de Laplace". A imagem de uma explosão em uma gráfica que disperssasse todos os tipos e a possibilidade destes se agruparem em um poema como "Divina Comédia" é ótima para mostrar a relação entre as leis físicas e os conteúdos da consciência. A redução de "conteúdos" é praticamente impensável, embora as coações formais do processo de "consciência" e de "linguagem" nos possam enriquecer o porquê desta quase-impossibilidade, sem que tenhamos para isso que aludir à emergência e ao dualismo substancial.

 

 

III.9. Consciência e contra-factualidade

 

A capacidade de operar sobre condicionais e estabelecer-lhes valores de verdade me parece ser também prerrogativa ou predicado da consciência. Sentenças do tipo "se a então b" possibilitam duas interpretações. Podemos estar trabalhando com proposições que digam respeito a conexões típicas ou legiformes onde as condições de verificação de verdade estejam incluídas no domínio das asseverações particulares. Imagine-se que a sentença, "se abandono uma pedra acima do chão, esta cairá", seja submetida a uma interpretação de valor de verdade. A sua inclusão no domínio da lei geral da gravidade e da queda dos corpos tornará possível o trabalho por simples inspecção. Até aqui podemos pensar numa máquina que executasse esse escrutínio entre proposições gerais e particulares. Não haveria, por ora, necessidade da consciência. Porém há outra situação dos condicionais que torna o trabalho algo mais complexo. Algumas proposições gerais tidas como verdadeiras dependem de um esforço indutivo e intencional sobre proposições particulares para que se estabeleçam. Poderíamos ainda assim pensar em uma máquina desprovida de consciência que operasse generalizações a partir de "experiências" passadas, porém é difícil imaginar uma máquina que propositalmente perquira enunciados legiformes, quando estes não são generalizações de situações particulares da experiência, mas se antepõem aos fatos passados. Quer dizer, aquelas proposições gerais que não ferissem o conteúdo de proposições particulares seriam passíveis de programação, mas aquelas que supusessem um trabalho contrário às categorias ou teorias prévias, implicando reprogramação teórica contra-intuitiva seriam, a meu ver, não-simuláveis em máquinas até aqui conhecidas.

Esta relação, entre "consciência" e contra-factualidade, pode suscitar um sem-número de objeções. Não pretendo responder às questões possíveis, mas apenas marcar uma função que me parece essencial da consciência, qual seja, a capacidade de operar com condicionais, imputar-lhes valores de verdade e sobretudo rever generalizações anteriores que não dêem conta de resolver novos problemas, criando um novo "esquema conceitual", ou uma nova "ontologia" menos intuitiva. Mais ainda, a capacidade de utilizar e criar termos que transcendem toda a experiência empírica possível dentro dos limites de uma ontologia, criando um novo esquema de interpretação do "dado", requer, a meu ver, uma consciência ciente da tarefa, do objetivo e das armadilhas que o senso-comum pode armar no afã de fazer supor a nova ontologia inverossímel. A consciência permite então que trabalhemos com geometrias não-euclidianas e com suas aplicações na física teórica, engendrando enunciados preditivos e verificáveis, embora à primeira vista absurdos. A capacidade portanto de operar para älém da experiência possível", dentro dos limites de um determinado pano de fundo conceitual, e de rever esquemas conceituais anteriores tidos como verdades necessárias, como no caso da geometria euclidiana, são avanços biológicos de profundo valor no escrutínio do meio circundante e, a meu ver, impossíveis de se imaginar sem a faculdade da consciência.

 

 

III.10. "Consciência" e ciência

 

III.10.1. Considerações gerais

 

Este tópico trata de algumas relações e achados de ciência empírica, no caso neurofisiologia, neuropatologia e neuropsiquiatria. Como a orientação desta investigação é a da epistemologia naturalizada, estes dados podem lançar alguma luz sobre as questões gerais.

 

 

III.10.2. Estruturas cerebrais e consciência

 

Como já disse anteriormente (Cf.III.2) a noção de "localizaçaõ" de funções mentais em determinadas estruturas cerebrais é problemática. A partir de lesões secundárias a traumas, tumores, "derrames" (acidente vascular cerebral- AVC), etc, podemos fazer mapas que correlacionam a área lesada e a disfunção "psicológica" posterior. Esse procedimento, embora de muita valia, não levou à perfeita caracterização das funções e de seus correlatos anatômicos, pois o que temos em mãos por vezes é apenas uma condição necessária, mas não suficiente, para estabelecer a relação. Podemos dizer que o sujeito não esboça a função "a" se não tiver a estrutura "b" funcionando, o que está bastante distante do ponto de vista lógico e ontológico de dizer que "a" seja idêntico a "b".

Numa passagem bastante feliz um eminente neurofisiologista contemporâneo retrata o problema do localizacionismo da seguinte forma:

"Nenhuma função psicológica pode existir em um segmento do cortex por si mesma. Comumente dizemos que a visão está localizada na área visual, uma parte do lobo occipital; mas isto não significa que o processo como um todo (processo da visão ou mesmo das imagens visuais) possa ocorrer no lobo visual. O que isto significa é que uma parte essencial do processo lá ocorre, e somente lá"

Não tem sentido, portanto, tentarmos discriminar quais estruturas anatômicas cerebrais são responsáveis pela consciência. Bem entendido não poderemos dizer que estruturas são identicas à consciência, o que não nos impede de saber quais são as estruturas sem as quais o "fenômeno" não ocorre. Isto tem importância no campo da refutação de proposições ontológicas que garantem separação entre "mente-consciência" e corpo, e.g, "A consciência e o corpo são coisas distintas" e "Sem as estruturas a, b, c... do corpo não se vê jamais, ou não há consciência". Jamais se verá a consciência sem que paralelamente haja um cérebro funcionante, salvo em alguns muitos autores que a supõem pairando acima de toda experiência perceptual. (John ECCLES, Wilder PENFIELD, para citar apenas alguns neurofisiologistas de inspiração dualista)

Antes de falar das estruturas que são condição necessária para a manutenção de estados "conscientes" gostaria de comentar esta última colocação: uma proposição empírica do tipo "O sujeito a somente exibe ‘consciência’ quando b está presente" pode refutar uma proposição do tipo "A ‘consciência’ é uma substância diferente do corpo"? Minha resposta é de que toda a asseveração empírica particular pode refutar uma proposição metafísica geral, desde que se garanta que os termos em questão são os mesmos, i.é, "consciência" tem o mesmo significado em ambas as sentenças.

Este trabalho se pauta pela seguinte afirmação: as evidências empíricas refutam que haja atividade mental sem que haja atividade cerebral, portanto toda e qualquer objeção "essencial" não se segue pelo exposto anteriormente.

 

As unidades neurais que são condição necessária para que tenhamos "consciência" parecem ser aquelas do cortex associativo, bem como algumas estruturas sub-corticais como o corpo striatum (particularmente o putamen e o caudado). O que isto quer dizer? Qual o significado de colocar alguns poucos nomes técnicos como condição subjacente ao fenômeno da consciência?

O cérebro exibe determinadas dissimilitudes anatômicas, permitindo que encontremos dois padrões de organização mais ou menos independentes:

"De uma lado as áreas primárias recptivas do cortex exibem localização de função numa pequena escala. Isto será chamado de localização ‘punctual’, um termo que deixa deliberadamente aberta a questão de se o neurônio isoladamente é a unidade funcional fundamental onde a informação é estocada. De outro lado muitas das várias divisões cito-arquiteturais do cortex associativo, e também do caudado e do putamen, parecem operar como unidades funcionais amplas, onde o neurônio isoladamente não desempenha por si respostas de grande significação funcional para o animal como um todo".

O significado desta passagem é claro: parece haver dois padrões cito-arquiteturais no SCN, fazendo com que noções tais como "localização" e "holismo" sejam igualmente verdadeiras e não-excludentes. Não podemos localizar funções complexas em uma única unidade neuronal, mas podemos reconhecer nesta importância vital para aquelas.

As estruturas que subjazem à consciência enquanto fenômeno global são aquelas que se relacionam de forma múltipla entre si, ou seja, há um grande número de conexões entre módulos de neurônios. A noção de "módulo" é bastante importante pois podemos ter uma estratificação hierárquica tal que módulos primários realizam determinada função, módulos de módulos outra, e assim sucessivamente. A cada nível ocorrem determinados predicados próprios. A consciência seria então, no limite, um predicado de n-ésima ordem na escala modular. Acrescente-se a isto a noção de "omni-conexão": áreas de conectividade intensa do cortex como as que foram anteriormente descritas se comunicam com um sem-número de outras unidades. O número de conexões celulares, via exônio, sob a forma triaxonal, no cérebro humano é de aproximadamente 8 x 109. O que significa, portanto, omni-conexão? Literalmente, a possibilidade de conexão de uma unidade com todas as outras. O fato de estarem potencialmente conectadas umas às outras em regiões que exibem anatomicamente esta propriedade parece ser o sbstrato anátomo-funcional da consciência.

"... à medida que a consciência é mantida, não há limite teórico às associações que podem ser feitas entre porções, aparentemente não relacionadas, de informação tida na mente. Isto não significa que todas as associações esttísticas possíveis são, necessariamente, detectadas por um ser consciente. Algumas associações são mais óbvias porque estatisticamente mais significativas, ou mais concretas ou menos dispersas no tempo... Apesar disso a enorme potencialidade de interação entre porções de informação, inicialmente separadas, parece ser a propriedade definida da consciência... Sem isto, numa mente hipotética, onde todos os grupos de informação permanecessem separados, dificilmente se poderia usar o termo ‘consciência".

Por que mecanismo pode esta interpretação da noção de consciência ser representada no nível objetivo?... consciência existe porque existem estruturas nas quais, em virtude da organização interna, todas as partes (neurônios) estão em contacto sináptico potencial co toda outra parte. Em tal rede a existência de conexões no nível micro-anatômico não significa que a associação de cada grupo de entradas relacionadas será necessariamente detectada pela rede, mas significa que existe o potencial de detecção... Nesta rede hipotética não é necessário que todo neurônio esteja literalmente em conexão com outro: conexões poli-sinápticas podem propiciar a rápida passagem de um sinal para todas as partes da estrutura. Assim. embora cada neurônio possa ter saídas sinápticas capazes de influenciar alguns milhares de outros neurônios mono-sinapticamente, poli-sinapticamente, o neurônio, pode influenciar milhares de milhões de outros tri-sinapticamente (20003 = 8x109, o último número sendo comparável ao número de neurônios no cérebro frontal). O dado anatômico essencial é de que não deve haver parcelamento ou separação de canais de fluxo de informação... tal estrutura será referida a partir de agora estrutura imni-conectada.

Se existirem mecanismo para formar impressão permanente (lasting imprint) de cada porção de informação, todas estas porções codificadas serão capazes de interação e correlação com todas as outras. Informação aprendida seria então armazenada de uma maneira holográfica, sem relação punctual entre informação e localidade de armazenamento... Pode ser objetado que, se o cérebro tem a capacidade de reconhecer porções de informação em tais redes omni-conectadas, deve haver alguma forma de ‘homúnculo’ que anote as várias combinações de conexões que representam cada porção de informação. Sob certo aspecto isto é verdadeiro. Entretanto, um homúnculo definido desta forma seria uma ilusão e uma besta fantasmagórica (elusive and ghostly beast), sem localização anatômica restrita no cérebro. Seria defendido em termos puramente fisiolóicos e particularmente envolvido nos processos de aquisição de memória. Nenhum homúnculo que se respeitasse se satisfaría com ter uma fisiologia sem uma anatomia própria."

Ficam claros então pontos que merecem atenção em qualquer estudo micro-anatômico das condições físicas subjacentes à consciência. A microscopia eletrônica dá conta de que estruturas, tais como as descritas na citação anterior, existem de fato, podendo ser a chave para a explicação de um fenômeno tão complexo e espraiado quanto a consciência. Se o leitor se perguntar o que fazem considerações como esta num trabalho de filosofia, será melhor fechar "o livro da experiência", não apenas a ingênua, mas sobretudo aquela dirigida por teorias, e voltar a um estilo de reflexão "apriorista" e imutável que jamais se beneficia dos avanços do conhecimento científico. Este texto não trabalha com uma hipótese especulativa que diga respeito à conexão múltipla; trabalha outrossim com uma evidência de que há realmente conexão múltipla. Temos no engendramento deste fato, teoria, observação, mensuração, confrontação, etc. Não me parecem coisas semelhantes afirmar a conexão múltipla de "tudo que hä" e chamar de omni-conectada numa determinada região do universo que é localizável, verificável, etc. Se tomarmos como verdadeiras proposições deste tipo devemos guardar outro estatuto para a verdade de cunho puramente especulativo e argumentativo- verdade metafórica talvez. Giordano Bruno não pode ser entendido como antecessor de Galileu pois há uma diferença qualitativa entre os dois, ainda que supostamente estejam defendendo o mesmo. A diferença radical entre dado experimental e experiência comum ou ingênua é que a primeira é guiada e testada à luz de hipóteses e deduções, podendo ser até mesmo contra-intuitiva, enquanto que a segunda se serve do senso-comum e dos absurdos que a "tradição" nele tenha mantido.

 

 

III.10.3. Comissurotomia, consciência e semântica

 

Comissurotomia é uma secção total ou parcial, um "corte", no corpo caloso, estrutura cerebral de aproximadamente duzentos milhões de fibras que conectam quase totalmente o hemisfério cerebral esquerdo ao direito. (Após a ruptura completa das conexões via corpo calosohá ainda alguma ligação entre os hemisférios através de fibras no colículo superior, tálamo, hipotálamo e gânglios da base). É feita em alguns casos de epilepsia e em certos tumores. Os resultados destas cirurgias foram estudados a fundo durante as últimas décadas, constituindo preciosa gama de informações acerca da divisão de funções entre os dois hemisférios cerebrais.

O hemisfério direito está mais ligado a atividades espaciais enquanto o outro tem função precipuamente analítica, porém cumpre salientar aqui que, graças a um aparato especial e a peculiaridades anatômicas nas vias de acesso, podemos fazer chegar informação a apenas um dos dois hemisférios. Posso colocar uma "imagem" na área visual esquerda apenas, sem que a área visual direita, porque desconectada pela comissurotomia, receba qualquer "impressão ou informação.

Outro achado fundamental decorrente da investigação em indivíduos comissurotomizados foi a de que a consciência, ou pelo menos sua "experiência subjetiva", está restrita na grande maioria das pessoas ao hemisfério esquerdo, hemisfério este que também abriga os centros de linguagem (área de Wernicke). Eis mais uma das razões que me fazem supor haver estreita correlação entre consciência e linguagem. A afirmação quanto aos centros linguísticos no hemisfério esquerdo é parcial: as língua ocidentais de cunho "analítico" lá se apresentam, porém as orientais, ideográficas, se utilizam de área de linguagem de hemisfério direito.

 

Não entraremos em detalhes técnicos quanto ao método utilizado para teste em pacientes comissurotomizados. Tomando um desses sujeitos, acordado e atento, posso fazer chegar a qualquer um de seus campos visuais, esquerdo e direito, a imagem que quiser. Apresento-lhe ao campo visual esquerdo, sito no hemisfério esquerdo, a imagem de uma cadeira. Imediatamente relata ele estar vendo uma cadeira. Em seguida faço chegar a mesma imagem ao campo visual direito, no h.direito, e ele relata que sente apenas um vago "clarão" ou uma "sensação de cor", mas não é capaz de descrever o objeto em questão. No hemisfério esquerdo, a imagem imediatamente se torna consciente, fato que não ocorre no outro hemisfério.

Posso complicar ainda mais o experimento. Façó chegar ao h.direito a imagem de seis cartões com uma sequência de cenas que possibilitam a unificação em uma mesma história ou narrativa. O indivíduo, sem relatar qualquer experiência consciente quanto ao "conteúdo" dos cartões, relata não estar vendo nada, porém ao pedir-lhe que me conte uma história que lhe vem à mente, conta algo que muito se assemelha à ordenação da história possível dos cartões. (As histórias contadas nesta situação têm desvio estatístico significativo em relação a histórias contadas "ao acaso" por pessoas íntegras a quem não se apresentou qualquer sequência de cartões). Duas outras situações de reconhecimento: faço chegar ao h.direito três imagens de cartões - de um gato, de um cachorro e da palavra "gato". Peço que escolha dois cartões por alguma associação. Escolhe figura e palavra corretas, ainda que não tenha consciência do conteúdo. Cartões com cenas de inverno e de verão são apresentados e, em seguida, a palavra para uma delas. O agrupamento novamente se dá corretamente. No entanto, quando apresento palavras apenas nos cartões tais como "mamãe", "ama", "nenê", etc, o indivíduo se torna incapaz de construir frases simples e bem concatenadas. Poderíamos encher um livro com todas as experiências possíveis e com detalhes técnicos da montagem de cada experimento. Fugiria no entanto do propósito aqui delineado. O que se pode depreender destes dados é de que há representação de objetos e mesmo de linguagem no hemisfério direito, sem que concomitante se esboce consciência de tal fato, porém a capacidade linguística algo mais complexa, que possibilita a construção de frases simples, está abolida no hemisfério que carece da consciência do que está à sua frente.

O experimento que me parece mais interessante é o de apresentar ao campo visual direito a fotografia de uma mulher nua. O sujeito relata sentir uma vaga sensação de embaraço, ruborizando a face, podendo se fazer acompanhar até mesmo de ereção, mas não sabe descrever o que está vendo. O h.direito reconhece o padrão visual e o contextualiza dentro de uma série de "expectativas e reações" até mesmo "morais", porém não tem qualquer consciência do que esteja vendo.

O resultado avassalador dos experimentos com pessoas comissurotomizadas é o de mostrar que há intensa atividade de reconhecimento não-consciente, que a perda da consciência não abole aquela atividade, porém que a capacidade de agrupamento linguístico concatenado depende em última instância de estruturas do hemisfério esquerdo, no qual também se situa a experiência consciente. A identidade de local não implica identidade de referente, pois o hemisfério é grande o suficiente para agrupá-las, porém é sugestivo de algum grau de interdependência. Mais ainda: não há necessidade de consciência para se fazer o reconhecimento de cenas, nem para agregar a elas conteúdos e reações de ordem moral e de costumes. (Infelizmente não temos informação de qual seria a reação de um índio diante da fotografia da mulher nua, porém ouso dizer que seria diversa da de uma pessoa conservadora e pudica).

O processo de "reconhecimento" de uma imagem, quer dizer, a capacidade de fazer brotar de uma série de sinais um agregado que conota um determinado conceito, que o contextualiza numa rede de implicações triviais ou relevantes para a "cosmovisão" daquele sujeito, é bastante complexo e pode se dar sem que haja consciência agregada. Dizendo de outra maneira, a consciência é algo para além de um processo já extremamente complexo de "semantização e conceituação" de sinais sensoriais. Caprichosamente, no entanto, parte deste processo, aquele que possibilita o ordenamento frásico e linguístico complexo somente ocorre ali - no hemisfério esquerdo - onde também ocorre a consciência.

ECCLES propôs uma divisão, segundo o esquema popperiano, do mundo em três partes a fim de tratar essas instâncias diversas. O mundo 1 é aquele dos objetos físicos e de seus estados, compreendendo a matéria e a energia do cosmos, estrutura e ação de todos os seres vivos e artefatos materiais (instrumentos, máquinas, livros, obras de arte, etc.). O mundo 2 é aquele dos estados de consciência, compreendendo o conhecimento subjetivo e as experiências de percepção e de pensamento, emoções, intenções, memória, sonhos, e a imaginação criativa. O mundo 3 é aquele que compreende o conhecimento objetivo: herança cultural codificada em substratos materiais, sistemas teóricos, argumentos e problemas científicos.

Sem nos determos prolongadamente no esquema conceitual de Popper, vê-se claramente que a noção de consciência é fundamental na transição do mundo inanimado para o mundo da cultura. Não me parece haver teoria do ser que possa prescindir daquela noção, embora por algum tempo algumas escolas tenham considerado o tema como pseudo-problema (positivismo, behaviorismo).

Eccles lista aproximadamente as funções de cada hemisfério cerebral (há neste tocante alguma controvérsia na literatura recente, mas não caberia aqui enumerá-las) :

Hemisfério esquerdo: ligação com a consciência, capacidade verbal, capacidade de descrição, linguística. Ideativo, conceitual, analisador de detalhes, analítico em relação ao tempo, opera aritméticamente de modo similar ao dos computadores.

Hemisfério direito: sem ligação com a consciência, praticamente não-verbal, holístico, geométrico, espacial, captador de padrões e sentidos pictóricos.

Estas funções são todas aproximadas, mas dão conta de uma especificidade de tal modo que tornam o holismo funcionalista radical falso. O localizacionismo, particularmente para uma função como consciência também é risível. Importa notar que a consciência não é um fenômeno localizado, nem fundamental para uma série de atividades de reconhecimento e de ação. Qual é então a exata importância desta noção de "consciência" ou de "experiência consciente"? Nas palavras de SPERRY, um dos maiores estudiosos de comissurotomia:

"...o hemisfério ‘menor’, mudo - parece ser um passageiro silencioso e passivo que deixa a condução do comportamento principalmente para o hemisfério esquerdo. Portanto, a natureza e a qualidade do mundo mental interior do hemisfério direito silencioso permanece inacessível à investigação, requerendo medidas de teste especiais com formas não-verbais de expressão...(sobre consciência) :...um sistema consciente por seu lado, percebendo, pensando, lembrando, raciocinando, desejando e sentindo; tudo característicamente no nível humano e que, ambos os hemisférios, esquerdo e direito, podem simultaneamente estar conscientes em diferentes, mesmo mutuamente conflitantes, experiências mentais que se processam em paralelo. Embora predominantemente mudo e geralmente inferior em todas as performances envolvendo linguagem, razão linguística ou matemática, o hemisfério menor é, apesar disso, claramente o centro cerebral superior de certos propósitos. Se lembrarmos que na maioria doos testes é o hemisfério esquerdo desconectado que é superior e dominante, podemos rever rapidamente algumas das atividades do hemisfério direito. Primeiramente, claro, como se prediria são as funções não linguísticas e não matemáticas, envolvendo principalmente apreensão e processamento de padrões espaciais, relações e transformações. Parecem ser holísticas e unitárias mais que analíticas e fragmentárias, orientacionais mais que focais e envolvem apreensão concreta perceptual mais que raciocínio abstrato, simbólico e raciocínio seqüencial".

Não podemos, portanto, confundir uma série de habilidades que costumamos pensar "conscientes" com a própria consciência e, mais ainda, devemos pensar nas características de determinadas transformações do hemisfério esquerdo que, por acaso, vêm seguidas de duas outras capacidades precípuas desse hemisfério: consciência e linguagem.

 

 

I I I.10.4. Alguns outros dados experimentais

 

 

Outro experimento importante sobre a correlação entre eventos cerebrais e seus correlatos psicológico-experienciais foi executado por LIBET e colaboradores.

Há uma intensa "despolarização"em fibras pré-frontais (áreas que organizam comportamentos de meta ou finalísticos) um segundo ou mais antes que a pessoa execute qualquer ato. Um potencial positivo ocorre nessas áreas alguns milesegundos (mais ou menos 350 ms) antes que o indivíduo descreva ter consciência da ação que pretende realizar. Essa alteração cerebral, anterior à "tomada de consciência" da ação voluntária, pode ser descoberta através de um experimento relativamente simples: coloca-se o indivíduo diante de um giroscópio que exibe uma imagem rodando em sentido horário com uma certa velocidade, pedindo apenas ao sujeito que "quando quiser" aponte com o dedo o local em que está a imagem. Mede-se, através de eletrodos, a atividade elétrica em todas as regiões cerebrais concomitantemente a todas as fases do teste. Quando o sujeito aponta o facho de luz, tendo sido expressamente orientado para que o façá no exato moment em que "queira" ou "se represente conscientemente"a ação, já ocorreram antes duas alterações de atividade elétrica, com morfologia diversa, nas áreas pré-frontais, um segundo e 350 milesegundos respectivamente. Apesar disso, apenas no momento do ato é que o sujeito relata "ter consciência" de sua vontade de apontar o facho de luz.

Esse experimento, em que pese uma série de objeções possíveis, traz à tona a questão vital da atividade cerebral específica que antecede à "tomada de consciência"de um ato consciente e voluntário. Podemos refletir sobre o que seja "vontade" e "liberdade" num sistema neuronal determinístico, ou por que a "consciência" não percebe que há preparação prévia de uma ação antes que se "dê conta" da "espontaneidade" e "liberdade" do ato ou de sua representação.

A sequência completa de eventos que sucedem a ação é a seguinte:

1) um potencial negativo na área pré-frontal começa a aparecer aproximadamente 1 segundo antes do movimento da mão apontando a imagem; 2) a primeira ação é uma rápida "sacade" (movimento rápido dos olhos não perceptível conscientemente) que fixa os olhos no objeto-alvo; 3) balanço do corpo em sua base, tornando o centro de gravidade desse apropriado em relação aos pés; 4) e 5) movimentos posturais da musculatura das pernas e do tronco (pela mesma razão concernente ao centro de gravidade) ; 6) início do movimento dos músculos do ombro; 7) outro potencial fortemente negativo no cérebro; 8) o corpo como um todo faz uma rotação; 9) o braço é estendido para contacto com o alvo; 10) o contacto é obtido após 2 segundos do primeiro potencial de alerta ou de preparo.

De toda essa sequência apenas o olhar direcionado e o movimento dos braços são conscientes. Os outros, em que pese fazerem parte necessária da ação completa, são não-conscientes. Mesmo quando a meta ou a ação são "aparentemente" livres e casuais, ocorrem alterações cerebrais preparatórias que antecedem a parcela que emergirá na consciência.

Duas perguntas se impõem após esse experimento acerda das características da interação entre mente e cérebro ou mesmo sobre a interação entre cérebro e consciência: se a consciência é livre, por que há eventos elétricos que a antecedem e, concomitantemente a ela, organizam todas as etapas da ação? Não seria então ela, a consciência, apenas um epifenômeno de todo o processo?

Não sabemos, portanto, qual ou quais são as funções precípuas da consciência que não se pudessem realizar em sistemas dela desprovidos, porém predicados tais como "liberdade" e "vontade livre", se incoerentes face ao sistema físico-neuronal que a ela subjaz, se mostram capitais na forja do nível social interativo. Não são mais corpos físicos desprovidos da liberdade, coagidos pelas leis da física, que interagem, mas um "sujeito moral" imputável civil e penalmente, livre-contratante, jurídica e socialmente apto.

O ser coagido pela cadeia causal e determinística de um pólo frontal que antecipa toda "vontade possível" não pactua, não contrata, não é objeto de imputação e sujeito de responsabilidade. A ignorância consciente de cadeia causal subjacente ao nível neural é o elemento necessário para que o nível social se organize a partir de um "suposto sujeito" e não de um "títere real" de sua eletrofisiologia cerebral. A consciência é então o elo que adultera o "real" embasante, desvencilhando-nos, objetos que somos, de nossa condição físico-química e das amarras de uma causalidade intrínseca, e nos faz supor "livres", propiciando a formação de um novo padrão predicativo, supostamente emergente, qual seja o do "ser social".

 

 

III.10.5. Patologias da consciência

 

Este último item é de suma importância pois coloca o problema da consciência sob o prisma de suas anomalias ou disfunções. Por vezes a delimitação de um conceito se faz pelo exame de sua negação, ou a definição do que seja algo se dá pela caracterização daquilo que ele não é. O habitual recurso à ontologia negativa, comum em todo o conhecimento, e o estudo das "patologias", são faces da mesma moeda que propiciam o entendimento da função. Como se disse desde o início o conhecimento do ser só é possível pelo conhecimento de sua função.

Dois tópicos serão brevemente apresentados: o das patologias neurológicas da consciência e o das patologias psiquiátricas. Quisera não fazer distinção entre as duas disciplinas, visto que o objeto de estudo é o mesmo- o cérebro humano-, porém seus sistemas de linguagem descritiva e explicativa são, por ora, bastante distintos.

 

A. Alterações neurológicas da consciência

 

As alterações neurológicas da consciência se devem a um sem-número de causas. Importante salientar que as causas podem ser de duas espécies: intra-cerebrais ou extra- cerebrais. As primeiras se dão em casos de tumores, infecções, alterações vasculares, malformações, etc. As segundas basicamente nos remetem a inúmeras pertubações no organismo como insuficiência circulatória, ação de drogas, ação de substâncias tóxicas (como no caso da falência hepática), etc.

Os estados de alteração da consciência variam desde o simples estreitamento de seu "campo", com leve desorientação temporo-espacial, até a abolição da mesma nos casos de coma. Entre esses dois pólos há uma série de estados torporosos onde é comum ocorrerem falsas impressões, alucinações, delírios, etc. Isso me parece servir de evidência indireta para a identificação da consciência com o cérebro. Pode-se argumentar em contrário aludindo a um sem-número de outras doutrinas, tais como o paralelismo psico-físico, porém creio que fazê-lo é ferir dois princípios fundamentais, quase idênticos em termos de conteúdo e de prescrição: o princípio da parcimônia de Ockham e o princípio de simplicidade de Galileu. O primeiro diz que não devemos "admitir desnecessariamente a pluralidade, ou em vão fazer-se por muitas coisas o que se pode fazer por menos" . O segundo diz que a natureza não faz por via complexa aquilo que pode fazer por via simples.

É importante ressaltar que os estados de eclipsamento da consciência costumam se fazer acompanhar de formações ideativas complexas e de pseudo-percepções. A perda de referência tempo- espacial leva a pessoa à agitação diante dos menores estímulos. Isso significa que o "sistema" não tolera "interpretações" diferentes das habituais, ou seja que tende a interpretar todos os dados que a ele chegam mantendo, ou tentando manter, alguma identificação com referentes costumeiros e previsíveis. Essa parece ser uma das funções da consciência, qual seja, harmonizar, dentre a plêiade de "aportes" sensoriais, a interpretação mais adequada a um determinado padrão de expectativa. Essa função se evanece durante o sonho: Hobbes já descrevia o efeito do calor que faz a "consciência onírica" interpretar como sendo a imagem de um inimigo. Vê-se, dessa forma, que quando a consciência se eclipsa, como no sono, a "interpretação" tende a privilegiar a região mais significativa em relação à sobrevivência, esquema primeiro e fundamental de interpretação dos dados provenientes do meio circundante.

Pode-se dizer que a consciência não é necessariamente um intérprete fiel do real, mas talvez algo que o "adultera" tornando-o adequado às expectativas. Quando se investiga a natureza abitual da "forma ingênua e instintiva da verificação e da confirmação", vê-se claramente que o dado serve de reforço a protótipos ou esquemas anteriores. Há pouco lugar, no campo da "consciência ingênua" para a inovação. Isso lembra a noção de paradigma em ciência de Thomas KUHN e o quanto são difíceis as revoluções científicas que afrontam um determinado estado de coisas aceito pela comunidade científica. Penso que uma das funções-chave da consciência é da adequação da diáspora fenomenal em esquemas explicativos, não necessariamente coerentes, consistentes e conseqüentes. A busca pela inovação, pelo rompimento com um esquema anterior, também requer o uso da função consciente que rechaça o intuitivo, o aparentemente óbvio e conhecido. Serve ela então a dois senhores distintos: no mundo da psicologia comum guia os sentidos pelos usos e costumes; no mundo da criação e do avanço, se antepõe ao "óbvio ilusório" e perquire mais agudamente o que seja o "real".

 

B. Alterações psiquiátricas da consciência

 

Em última instância toda alteração psiquiátrica é uma alteração da consciência e de seus conteúdos. O distúrbio da percepção nas alucinações, da representação nas pseudo-alucinações, da ideação nos delírios, do humor nas depressões e manias, do juízo e da crítica em muitos quadros psicóticos, da orientação e do campo da consciência nos estados de "delirium", e outros, são afinal das contas alterações de uma consciência que os relata, através da linguagem, ao médico interlocutor. Há alguns sinais exteriores de alteração psiquiátrica, tais como o "fácies" característico de algumas afecções, porém na quase totalidade das situações é a história subjetiva, contada pelo paciente, e a história objetiva, contada pelas pessoas que o conheciam previamente, que acabam por levar ao diagnóstico. A nosografia e a nosologia psiquiátricas se baseiam portanto na fenomenologia enquanto psicologia descritiva

Não temos um corte radical e preciso entre o normal e o patológico, sendo por vezes guiados por noções genéricas como adequação e plausibilidade. Quando nos relatam que "todos o estão perseguindo", perguntamos quis as razões para isso, como se evidencia esse fato, quais as possibilidades de engano, etc. As respostas do indivíduo normal não são aquelas que proíbem qualquer forma de perseguição, mas sim aquelas que dão conta de uma série de ligações de plausibilidade e, quando inverossímeis, também o sujeito que relata as coloca em dúvida, admitindo a hipótese de que "seus sentidos e pensamentos possam estar enganados". Lembrando Popper, o ser humano, ao contrário de detestar errar, procura ver o engano em todas as formulações de certeza que profere. Todas as patologias psiquiátricas, ou grande parte delas, tendem a ser alterações dessa capacidade de encarar a possibilidade de uma certeza ser um engano.

Karl Jaspers diz que há distúrbios tão bizarros no fluxo ideativo que não carece investigar-lhes o conteúdo. A forma já é patológica. Esse é o caso, segundo ele, das "percepções delirantes" que, ao contrário, das idéias delirantes, dos delírios catatímicos, etc, se mostra anômala em virtude exclusivamente "de sua forma": estabelece-se ligação entre duas unidades significativas que não guardam entre si qualquer elo possível de relação e adjudica-se a essa "unidade" um caráter revelatório e inquestionável. Por exemplo, um indivíduo chega assustado dizendo haver uma conspiração contra ele. Ao ser indagado de como soube do fato, relata que quando subia uma escada avistou um cachorro. Ao ver que seu rabo se mexia, percebeu que estava sendo perseguido. Importante salientar: nada mais há no discurso que endosse a suposta perseguição e o indivíduo jamais aceita que esses fatos relatados não se constitum num elo para uma percepção de um estado de coisas tal como "ser perseguido". Jaspers vê nessa concatenação de "unidades significativas" (a expressão é minha) o sinal suficiente para que não se tenha sequer que indagar se há realmente um conteúdo tal como se relata no delírio, no caso "uma conspiração". Esse estabelecer relação de significação e entendimento entre unidades tão estranhas é patológico pela forma. Não concordo totalmente, mas a argumentação fugiria do objetivo desse trabalho. O que o autor pretende é ter encontrado uma função da consciência ou do juízo, qual seja a de estabelecer que "unidades significativas" podem conjuntamente "significar". Não entrarei na longa discussão sobre esse particular, porém é patente para o leitor que, a despeito de argumentos técnicos, a consciência normal percebe que há vinculações que pode, e outras que não se pode, estabelecer. Creio que Jaspers se utiliza de uma noção de validade, em contraposição à noção de verdade, na construção de sua hipótese. Do ponto de vista formal poderíamos ter uma proposição onde o antecedente falso implicasse um conseqüente verdadeiro, permitindo portanto que a implicação não fosse impossível em virtude de sua forma. Noções tais como plausibilidade e redutibilidade me parecem mais adstritas a uma concepção que Jaspers tem de limites para a correta construção das sentenças significativas verdadeiras. A sentença da implicação entre o mexer do rabo do cão e a perseguição pode ser encarada como significativa e falsa- nesse caso a refutação não se daria em virtude da forma-, ou não-significativa, idéia que me parece ser a do autor . Isso, no entanto, faria com que todas as sentenças de valor poético e até mesmo algumas supostamente filosóficas, assignificativas, perdessem valor comunicativo e até mesmo levassem aqueles que as proferissem para os consultórios psiquiátricos.

Importa, porém, salientar que a consciência certamente é o artífice dos julgamentos de plausibilidade e de adequação de certas ligações. Infelizmente, se essa última afirmação é verdadeira para Einstein, não o é totalmente para um homem comum que crê nas "propriedades curativas" de uma erva. Nem por isso tomamo-lo por "doente", salvo ignorância se tornasse caso psiquiátrico.

 

 

III.11. Conclusão

 

Espero ter mostrado nessas páginas um pouco do porquê de ser a "consciência" um dos principais predicados do "mental". É "mental" por excelência, representando o terceiro vértice de um triângulo que tem outros dois: corpo e mundo. Certamente com ela "pensamos" e, mais ainda, graças a ela "somos", como disse "sujeitos", "identidades" e não simples fluxo causal. Se isso é um engano, nem porisso deixa de ser adaptativamente relevante.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

 

 

ABE , J. e PAPAVERO,N. (1991) : Teoria intuitiva dos Conjuntos. São Paulo: Makron Books

ANDERSON, James e ROSENFELD, Edward (ed) (1989): Neurocomputing (Foundations of Research). MIT Press

ANDERSON, John (1983): The Architecture of Cognition. Harvard University Press

ARBIB, M. (1971): "Conscousness: The Secondary Role of Language" in The Journal of Philosophy vol. LXIX number 14

ARMSTRONG, D. M. (1976): A Materialist Theory of the Mind Routledge and Keagan Paul.

AUSTIN, John (1985): " Outras Mentes " in Os Pensadores. Ed. Abril.

BACHRACH, Arthur (1972): Fundamentos Experimentais de Psicologia Clínica. Ed.Herder e EDUSP.

BARKER, Stephen (1976): Filosofia da Matemática. Zahar Editora.

BERTALANFFY, L. (1950): "An Outline of General System Theory" in The British Journal for the Philosophy of Science Vol.I number 2

BERTALANFFY, L. (1973): Théorie générale des systemes, Paris:Dunod

BLACKMORE, Colin e GREENFIELD, Susan (1989): Mindwaves (Thoughts on Intelligence Identity and Consciousness). Basil Blackwell.

BLOCK, Ned (ed) (1980): Readings in Philosophy of Psychology. vol.1 e 2. Harvard University Pree.

BORST, C. V. (1970): The Mind-Brain Identity Theory. Macmillan Press Ltda.

BROBOW, Daniel (ed) (1986): Qualitative Reasoning about Physical Systems. Mass: MIT Press.

BUNGE, M. (1961): Causalidad, Ed.Universitaria de Buenos Aires

BUNGE, Mario (1980): The Mind-Body Problem (Psycho-biological Approach. Pergamon Press.

CAUSEY, R. (1972) : "Attribute-identities in Microreductions" in The Journal of Philosophy vol.LXIX number l4

CHANGEUX, Jean-Pierre (1985): O Homem Neuronal. Publicações Dom Quixote. Lisboa.

CHANGEUX, Jean-Pierre e CONNES, Alain (1989) : Matiere à Pensée. Editions Odile Jacob.

CHURCHLAND, Patricia (1986): Neurophilosophy (Toward a Unified Science of the Mind-Brain). MIT Press.

CHURCHLAND, Paul (1985): "Some Reductive Strategies in Cognitive Neurobiology". in MIND vol.XCV number 379

CHURCHLAND, Paul (1988): Matter and Consciousness . MIT Press.

CHURCHLAND, Paul (l989): A Neurocomputational Perspective (The Nature of Mind and the Structure of Science). MIT Press

CHISHOLM, Roderick (1972) : "Franz Brentano" in The Encyclopedia of Philosophy. Paul Edwards (ed). McMillan Publishing Co.N.Y.

DAVIDSON,Julian e DAVIDSON, Richard (1982) : The Psycho-biology of Consciousness. Plenum Press.

DASCAL, M. (1983) : Pragmatics and the Philosophy of Mind 1. John Benjamins Pub.Co.

DESCARTES, René (1983): "Meditações" in Os Pensadores Ed.Abril.

DESCARTES, René (1983): " Discurso do Método " in Os Pensadores.Ed. Abril.

DEWEY, John (1958) : Experience and Nature. Dover Publications Inc.New York.

DRETSKE, F. (19830) : Knowledge and the Flow of Information. Mass.: MIT Press

EDELMAN, Gerald (1987) : Neural Darwinism ( The Theory of Neuronal Group Selection). Basic Books Inc.Publishers.

FEIGENBAUM, E. e FELDMAN,J. (1963) : Computers and Thought. Mc.Graw Hill, New York.

FEIGL, Herbert(1958) : "The ‘Mental and the Physical’" in Minnesota Studies in the Philosophy of Science, vol.II. University of Minnesota Press. Minneapolis.

FEIGL, H. e BRODBECK, M. (ed) (1965) : Readings in The Philosophy of Science. Appleton-Century Crofts.

FEIGL, Herbert; SELLARS, Wilfrid e LEHRER, Keith (1972) : New Readings in Philosophical Analisis. Appleton Century-Crofts. New York.

FEYERABEND, Paul (1987) : "Explanation, reduction and empiricism" in Philosophical Papers I.Cambridge University Press.

FEYERABEND, Paul (1970) : "Materialism and the Mind-Body Problem"in BORST,C.V. (1970). MacMillan Press.

FLANAGAN,Owen Jr.(1986) : The Science of the Mind. MIT Press.

FREGE,Gottlob (1978) : Lógica e Filosofia da Linguagem.Editora Cultrix e EDUSP.

FODOR,Jerry (1975) : The Language of Thought. Harvard University Press.

GARDNER, Howard (1987): The Mind’s New Science (A History of The Cognitive Revolution). Basic Books Inc.

GAZZANIGA, Michel (1989) : "Organization of the Humain Brain" in Science, vol.245 pg.947-952.

GLEICK, James (1990) : Caos: A criação de uma nova ciência. Editora Campus

GOTTLIEB, D. (1976) : "Ontological Reduction" in The Journal of Philosophy vol. LXXIII number 3

GOULD,Stephen Jay(1987) : Darwin e os Grandes Enigmas da Vida. Liv. Martins Fontes Editora.

GOULD,Stephen J.(1977): Ontogeny and Phylogeny. Harvard University Press.

GRÜNBAUM ,Adolph(1972) : "Free Will and Laws of Human Behavior" in FEIGL,H.(ed) (1972).

GUNDERSON,k.(1972): "Content and Consciousness and the Mind-Body Problem"in The Journal of Philosophy vol.LXIX number 18

GURWITSCH, Aron (1979): El Campo de la Conciencia (Un analisis fenomenológico). Alianza Editorial.

HAUGENLAND,John (1987) : Artificial Inteligence (The very Idea). MIT Press.

HEBB, D. (1949) : The Organization of Behavior. New York:Wiley

HEBB, D. (1980) : Essay on Mind. NJ: Lawrence Erlbaum Pub.

HOBBES, Thomas (1983) : Leviatã. In Os Pensadores.Ed. Abril.

HOOKER,Clifford (1981): "Towards a General Theory of Reduction" in Dialogue vol.XX 1-3

HULL, D. (1972) : "Reduction in Genetics - Biology or Philosophy?" in The Journal of the Philosophy of Science vol.III number 8

HUME, David (1967): A Treatise of Human Nature. Oxford University Press

JASPERS, Karl (1982) : Psicopatologia Generale. I1 Pensiero Scientifico Editore.Roma.

KANDEL, Eric e SCHWARTZ, James (ed) (1985) : Principles of Neural Science Publishing Co.Inc.

KEMENY,John e OPPENHEIM, Paul(1956) : "On Reduction" in Philosophical Studies vol.7

KOYRÉ, Alexandre (1973): Études d’Histoire de La Pensée Scientifique.Éditions Gallinard.

KRAUSE,D. (l991) : "A Filosofia da Ciência de Newton C.A. Da Costa". Coleção Documentos IEA-USP. Série Lógica e Teoria da Ciência 9.

KRIPKE,Saul(1984) : "Escerpt from ‘Identity and Necessity’" in BLOCK,Ned (1984).

KUHN, Thomas (1982) : A Estrutura das Revoluções Científicas Ed.Perspectiva.

LALANDE, André(1951): Vocabulaire Technique et Critique de la Philosophie. Presses Universitaires de France.

LEWIS,Clarence Irving (1956): " Mind and The World-Order" (Outline of a Theory of Knowledge). Dover Publications.

LIEBERMAN ,Philip(1984) : The Biology and Evolution of Language.Harvard University Press.

LORENZ,Konrad e POPPER,Karl (1990) : Lávenir est ouvert. Flammarion

LYCAN,William(1987) : Consciousness. MIT Press.

MACPHAIL,Enan (1982) : Brain and Intelligence in Vertebrates. Clarendon Press.Oxford.

MARCEL,Anthony e BISIACH, Edoardo (1988) (ed) : Consciousness in Contemporary Science. Clarendon Press.Oxford.

MARKS,Charles (1981) : Comissurotomy Consciousness and Unity of Mind. MIT Press.

MEEHL,P. e SELLARS,W. (1956) : "The Concept of Emergence" in Minnesota Studies in The PHILOSOPHY OF SCIENCE vol.I Univ.of.Minn.Press

MILL, John Stuart (1950) : Philosophy of Scientific Method. The Hafner Library of Classics.

MILLER,Robert (1981) : Meaning and Purpose in the Intact Brain (A philosophical,psychological and biological account of consciousness processes). Clarendon Press.

MONTGOMERY, R. (1990) : "The Reductionist Ideal in Cognitive Psychology" in Synthese vol.85 number 2

MORIN, Edgard (1986) : La Conaissance de la Conaissance. Paris : Seuil

NADEL, Lynn e al.(ed) (1990) : Neural Connections, Mental Computation. Mass: MIT Press.

NAGEL, Ernest (1961) : The Structure of Science. Harcourt, Brace and World,Inc.

NELSON, R. (1976) ; "Mechanism, Functionalism and the Identity Theory" in The Journal of Philosophy vol.LXXIII number 13

NICKLES, T. (1973) : "Two concepts of Intertheoretic Reduction" in The Journal of Philosophy vol.LXX, number 7

OCKHAM,William(1985) : "Obras Selecionadas" in Os Pensadores Ed.Abril.

OPPENHEIM, P. e PUTNAM, H. (1958) : "Unity of Science as a Working Hypothesis" in Minnesota Studies in the Philosophy of Science vol.2.

PAP, A. (1952) : "The Concept of Absolute Emergence" in The British Journal for the Philosophy of Science vol.III no 8

PIAGET, Jean (1926) : A Representação do Mundo na Criança. Editora Record.

POPPER,Karl ( 1975 ) : Conhecimento Objetivo. EDUSP e Ed.Itatiaia.

POPPER,Karl e ECCLES,John(1981) : The Self and Its Brain (An Argument for Interactionism). Springer International.

POPKIN,Richard (1983) : La História del Escepticismo Desde Erasmo Hasta Spinoza. Fondo de Cultura Económica.

POSNER, M. (ed) (1989) : Foundations of Cognitive Science Mass.; MIT Press.

PRIGOGINE,I. e STENGERS, I. (1991) : A Nova Aliança. Editora Universidade Nacional de Brasília

PUTNAM, Hilary (1986) : Mind, Language and Reality. Cambridge University Press.

PUTNAM, Hilary (1989) : Representation and Reality. MIT Press

PYLYSHYN, Zenon (1986) :" Computation and Cognition" (Toward a Foundation for Cognitive Science). MIT Press.

QUINE,W. (1966): "Ontological Reduction and the World of Numbers" in The Ways of Paradox.

QUINE, W.V. (1974) : La Relatividad Ontologica y Otros Ensayos. Editorial Tecnos.Madri.

QUINE, W.V. (1985) : In Os Pensadores. Ed. Abril.

RORTY,Richard (1983): Philosophy and the Mirror of Nature. Basil Blackwell,Publisher.

RUMELHART, David e McCLELLAND, James(1988) (ed) : Parallel Distributed Processing (Explorations in the Micro-structure of Cognition). Volume 1: Foundations.Volume 2: Psychological and Biological Models. MIT Press.

SARTRE, Jean Paul (1943) : L’Être et le Néant. Gallimard.

SCHAFFNER,Kenneth (1967): "Approaches to Reduction" in Philosophy of Science vol 34 no 2.

SEARLE, John(1984) : Minds,Brains and Science. Harvard University Press.

SEARLE, John (l987) : Intentionality (An Essay In The Philosophy of Mind). Cambridge University Press.

SHANNON, Claude e WEAVER, Warren (1949) : The Mathematical Theory of Communication. Univ.of Illinois Press.

STICH,Stephen (1983) : From Folk Psychology to Cognitive Science. MIT Press.

STONIER, Tom (1990) : Information and the Internal Structure of the Universe. Springer-Verlag

STOUGH, Charlotte (1969) : Greek Skepticism (A Study in Epistemology). University of California Press.

STROUD,Barry (1985) : The Significance of Philosophical Scepticism. Clarendon Press.Oxford.

SUPPES, P. (1969) : Introduction to Logic. Van Nostrand Reinhold Company

VILLANUEVA, E.(ed) (1990) : Information, Semantics and Epistemology. Basil Blackwell

von WRIGHT, G.H.(1987) : Explicación y comprensión. Alianza Editorial.

YOUNG,J.Z. (1987) : Philosophy and the Brain. Oxford University Press.

YOUNG, J.Z. (1981) : Programs of the Brain. Oxford University Press.