Estudos Avançados, maio 1994

 

 

Ciência cognitiva:

uma epistemologia

para o futuro

 

Henrique Del Nero*

 

Pensar é calcular proclamou Hobbes há séculos. De metáfora em metáfora prossegue a ciência. Se no século 19 proliferavem entidades internas para explicar a mente, reação oposta assaltou a psicologia no início do século 20. O comportamento tornou-se o fiel dignatário, expulsando a mente de cena. Tudo passou a ser condicionamento. Por volta de 1950, reação uníssona declarou o fim do behaviorismo. Resgatou-se a mente, a representação interna entre o estímulo e a resposta, erigindo-se uma ciência que propunha normas de unificação das entidades mentais. Regras de conexão e manipulação de átomos mentais passaram a ser algoritmos, conjuntos finitos e bem determinados de regras de operação. O pensamento tornou-se computação, sinônimo de cálculo.

Pensar é computar e os programas da máquina da nova era hão de espelhar inteligência artificial homóloga à nossa. Se há entidades, é preciso distingui-las quanto à essência e quanto ao modo de apresentação. A tradição da ciência cognitiva caminha no leito estreito da ambigüidade nominal: a essência é una; o modo de apresentação é diverso. O cérebro, portanto, é a única essência, de acordo com o materialismo da nova ciência; os predicados ou propriedades mentais, porém, hão de ser emergentes, ou não-traduzíveis em linguagem de neurociências. O mental, complexo que é, emerge da computação dos átomos neuronais. A complexidade, termo em voga nesta virada de século, é o artifice da transmutação do sinal elétrico do cérebro na forma do pensamento.

a doutrina oficial, alto clero da ciência cognitiva nos primeiros dias, propõe que o pensamento é cálculo sobre entidades, que são símbolos. Não se deve procurar símbolos no cérebro, sendo eles os primitivos da psicologia, que agora resgata a intermediação como norma. O estímulo adentra o sistema e se transmuta em representação. No sistema ocorre a forja da mente. Cautelosamente, os pro-pugnamtes da nova ciência optam por circunscrever no pensamento o objeto a ser modelado, quantificado e formalizado.

Nesse primeiro momento saúdam-se os programas de Newell e Simon, capazes de provar teoremas, e a lingüistica de Chomsky, cheia de formalismo sub-reptício a endossar a forma da linguagem e sua condição de priori selecionado na evolução biológica. Pensamento, ou cognição, é o que unifica homens e máquinas, sendo-lhes a razão formal, regra de inferência e outras tantas. A forma que embasa o pensamento é a mesma nos dois casos. Não havendo portanto distinção que possa se manter entre um computador ideal e o cérebro humano.

Se na primeira leva da ciência cognitiva a mente é pura representação e o pensar um manipular símbolos de acordo com regras, cômputos e algoritmos, depois, surgem idéias de alguns dissidentes reavaliando a importância do cérebro, não bastando imputar-lhe a condição de órgão complexo que enseja a emergência da mente. São propostos novos modelos na ciência cognitiva, constituídos por multidões de unidades de processamento, "neurônios" que se conecta, através de junções, tal como se dá no cérebro, e que hão de tratar a informação através de múltiplos canais de aporte vetorial. Entra-se com uma série de números numa dessas unidades e a resultante dependerá de interações e do tipo de facilitação que a própria unidade impõe ao fluxo de informação. Essas são as redes neurais, ou modelosconexionistas, mais próximos do cérebro quanto à suposta norma de processamento complexo de informação.

A ciência cognitica reúne, portanto, ambas as correntes, rivais quanto à forma do processamento. As redes neurais, modelos conexionistas, não representam guinada em direção ao cérebro, salvo pela longínqua hipótese de interação complexa entre populações de unidades conectadas. As entidades que constitui a entrada e a saída são os mesmos primitivos mentais, símbolos emergentes que desconhecem a norma de codificação que lhes possibilita ocorrer no cérebro subjacente à mente. Uma terceira maneira de ver a cognição que não pecasse pela busca incessante da regra clara, esquecendo-se de que também as entidades mentais são oriundas de processos cerebrais, deveria empreender uma genuína tentativa de identificação das entidades e do processamento com o aparato complexo embasante.

O grupo de Ciência Cognitiva do IEA procura estabelecer um universo de surgimento de entidades e regras de processamento através da compreensão da matemática que descreve o comportamento do neurônio real. Se o potencial de ação através do qual se dá a transmissão de um sinal elétrico entre os neurônios tem amplitude monótona e quase invariante, se o disparo é do tipo tudo ou nada, fato que induziu os primeiros cientistas a imputar-lhe uma lógica digital, tipo 0 ou 1, a quantidade de disparos codifica uma freqüência não digital, como se fosse um código de barras que marca preços e outras informações em produtos nas prateleiras.

Um neurônio dispara assim uma série de potenciais que se traduzem em quantidades quase definidas de neurotransmissor, sendo a freqüência de um disparo elemento fundamental para se compreender os fenômenos de interação espaço-temporal entre eles. a matemática que analisa esses fenômenos pode ser a teotia de sistemas dinâmicos, para pequenas quantidades de osciladores - uma comparação possível para descrever os neurônios -, ou a termodinâmica, para um campo de osciladores acoplados. caos no primeiro caso e turbulência no segundo são fenômenos que podem ocorrer para certos valores de parâmetros.

Essa terceira maneira de enxergar a cognição vê no processamento e na entidade a ser processada a resultante da complexa interação entre osciladores. As classes de objetos passam a ser equações diferenciais e define-se para certos valores no espaço de parâmetros a bifurcação como detector de limites entre conjuntos computáveis. Esta última é a chamada computação topológica, baseada na suposição de que o cérebro humano é filo e ontogeneticamente um aparato capaz de computar topologias, aspectos qualitativos relevantes do conjunto de soluções de uma equação.