O Estado de S.Paulo

09/05/95

Internet, nova mente?

 

HENRIQUE SCHÜTZER DEL NERO

 

 

 

 

Navegar é o nome do processo de busca de informação nas redes de computadores reunidas na Internet. Criar é a máxima que justifica a vida. A expansão dos limites à criação, agora globalizados, pode fazer nascer novos conceitos. Talvez criemos uma nova era nas relações mundiais. Talvez tenhamos saneamento básico, soluções para a fome, educação e participação. É preciso refletir, porém, sobre as armadilhas que a rede acoberta.

A maravilha da tecnologia criou o computador e agora conecta o mundo num mesmo locus virtual. Virtual porque em todo lugar e em lugar algum. Onde houver dois ou mais micros conectados em seu nome, lá estará essa divindade etérea do século 21.

Utopia também designa lugar algum. A rede virtual recria a utopia da liberdade, igualdade e fraternidade via satélite. Utopia de um espaço sem fronteira, da evanescência do Estado, do indivíduo, das amarras totalitárias da censura ao direito de reunião. A realidade não terá mais corpo físico, nem distância, nem tempo. Instantânea, propiciará qualquer reunião, por isso mesmo talvez as extinga. Confraternização máxima que, no limite, pode se desfazer enquanto tal. Homogeneidade que heterogeniza, igualdade que distingue, proximidade que distancia.

Esse pode ser o resultado da Internet. Amparados pela linha telefônica, escolhemos o tema do diálogo. Quiçá seja avanço, pesquisa, discussão. Quiçá, perversão, conspiração, sociopatia virtual.

Se os centros de pesquisa se comunicam, trocando dados sobre infecções, a rede serve ao progresso. O que dizer, no entanto, das listas neonazistas, racistas, dos manuais on-line sobre a fabricação de bombas que proliferaram na rede após Oklahoma? Ou da seita japonesa Ensino da Verdade Suprema arregimentando em cada canto do planeta quem se identifique com o seu ideal apocalíptico? O gás sarin pode ser discutido por especialistas dispersos, aumentando-lhe a eficácia, sobtraindo-lhe a decência, o valor e a causa. Essa multidão de aberrações sociológicas, racistas, perversas, sociopatas pode agora ganhar direito de reunião num anonimato virtual. A tecnologia sem ciência é danosa porque aliena o usuário. Esquece-se do feitio nobre do conhecimento, entregando-se ao menos nobre consumo de sua aplicação high-tech. A ciência que gera a tecnologia corre o risco de se perder, tornando a tecnologia fim, um efeito deletério gerado pelo abandono do ideal que a concebeu.

Saudamos a Internet, esperançosos e preocupados: não havia mais espaço para a memória biológica. Criou-se o computador e agora a rede expande pelos quatro cantos a nossa lembrança. Nossa identidade torna-se endereço eletrônico. Tomara nosso destino não seja o passado. A Internet talvez signifique o surgimento de uma nova consciência, característica suprema da mente humana. Desde a década dos 50 se forja uma nova ciência da mente: a ciência cognitiva. Nela trabalham médicos, engenheiros, psicólogos, físicos, matemáticos, lingüistas e filósofos em busca de um conhecimento mais sólido sobre as funções cerebrais que propiciaram o surgimento do ser psíquico e social. Mas em paralelo ao avanço tecnológico da Internet proliferam magia e ignorância. Ao lado do computador repousam a pirâmide que energiza, o manual de auto-ajuda, o guia astrológico, a numerologia e o sincretismo. Todos esses meios podem agora, democratizados pela Internet, criar atraso on-line, terrorismo eletrônico, invasão e expropriação de informação, deformação sob a aura de conhecimento.

A nova ciência da mente corre atrás do público clamando por apoio. Talvez possamos ter ainda nossa Década do Cérebro, reclamava Raul Marino,Jr. em artigo no Estado, descrevendo o esforço americano de atender ao cérebro humano pelo aporte considerável de recursos votado pelo Congresso após mensagem do então presidente George Bush, em 1989. Assim surgiu a Década do Cérebro no EUA. Marino ressalta a necessidade de participarmos desse movimento, quem sabe no afã de fazer do próximo o Século da Mente.

Antes de o Brasil ter a sua Década do Cérebro já coloca um pé no século da mente virtual. Tomara não seja século demente, cheio de terror, apocalipse precipitado pela reunião anônima, pela proliferação planetária do ódio, do rancor e da destruição.

Esquecer-se de uma nova ciência da mente, do esforço por compreender a origem da consciência individual e coletiva, passando à etapa seguinte, a da disseminação via rede de nossa grandeza e também de nossa pequenez, pode gerar problemas que merecem discussão e providência imediatas.

Dessa comunicação mundial surgirá uma nova consciência, plural, virtual, pulverizada e distribuida nos meios mais díspares e heterogêneos. O garoto do sertão, mal alfabetizado e mal nutrido, poderá visitar o Louvre, em Paris, e o Museu de História Natural de Nova York. Se isso servir para criar uma consciência global, ideal de vida comum, de igualdade perante fóruns virtuais que esse novo "estado" pode criar, veremos concretizada a utopia de igualdade transacional, transterritorial e transpessoal. Dela pode surgir um ser virtual sem fronteiras e sem limites físicos, capaz de disseminar verdade e progresso. Mas se esquecermos essa mente que mal entendemos, teremos feito pouco do conhecimento. Disseminando pela Internet nossa ignorância afoita, não teremos um novo Homem, mas só o pequeno ser que criou a desigualdade, a guerra, a injustiça, a opressão, a fome e a segregação. De novo, numa idade de trevas que se pretenderam luz, a consciência dispersa e alienada pode estar à deriva de quem a subjugue, minoria que insiste: navegar não é preciso, conectar é preciso.

 

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- Henrique Schützer Del Nero, psiquiatra, é coordenador do Grupo de Ciência Cognitiva do Instituto de Estudos Avançados da USP

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