Ciência Cognitivas

(Folha de São Paulo, caderno Mais - edição especial- Entenda a sua Época; guia feito por 22 especialistas com 97 termos e expressões que orientam sobre os temas dominantes da cultura e da ciência na atualidade)

 

Henrique Schützer Del Nero

especial para a Folha

 

 

CIÊNCIAS COGNITIVAS

 

Ciência Cognitiva é a alcunha genérica para um conjunto de esforços interdiciplinares visando a compreender a mente e sua relação com o cérebro humano. Desse esforço fazem parte as seguintes grandes áreas: as neurociências, a psicologia, a linguística, a filosofia e a inteligência artificial. O projeto cognitivista é amplo o suficiente para abarcar diferentes enfoques e modelos. devem-se distinguir alguns eixos centrais nessa comunhão de credos científicos.

Primeiramente, há um denominador comum histórico de reação ao behaviorismo ou comportamentalismo, doutrina psicológica e filosófica que domina a primeira metade do século 20. O behaviorismo, ao tentar erigir uma psicologia científica, procurou subtrair dela o apelo aos intermediários invisíveis -- a mente e seus processos. Purgado da contaminação por entidades não-observáveis, o estudo da mente seria doravante o estudo do vomportamento observável e mensurável. Entre o estímulo ambiental e a resposta comportamental poderia haver o que se quisesse, porém supunha-se que esses intermediários fossem mente ou cérebro, seriam desnecessários para explicar as leis que relacionavam o estímulo, a resposta e os condicionamentos sobre eles. O projeto ruiu, embora tenha dado frutos interessantes.

Em seu lugar surgiu, por volta dos anos 50, um reavivamento da doutrina segundo a qual a mente é um aparato processador de informação e que basicamente manipula símbolos ou representações por meio de regras lógico-computacionais. Grande parte do sucesso dessa primeira grande guinada para os modelos computacionais da mente deveu-se ao aparecimento de programas de computador capazes de provar teoremas matemáticos. A mente seria, então, nessa chamada inteligência artificial simbólica, o resultado da operação computacional por meio de regras e de símbolos mentais, devidamente traduzidos em algoritmos.

Por intermédio das leis lógicas poderiam construir-se programas que simulassem as leis mentais, simples cadeias de inferências válidas. A mente nessa visão seria um programa (software) e o cérebro um meio físico (hardware), não-exclusivo, daí poder-se replicar o processo em outros meios físicos --- nas máquinas.

Essa versão simbólica da inteligência artificial cedeu lugar --- embora continue em franca atividade, modelizando principalmente processos linquísticos --- a uma classe rival de modelos, chamados redes neurais ou inteligência artificial conexionista. Nelas não há divisão de nível entre o programa e o meio físico, e a possibilidade de aprendizado é mais consistente com o que o ser humano realiza na sua constante exposição a exemplos, a partir dos quais retira suas generalizações.

Recentemente outros modelos invadiram a cena da modelagem da mente e do cérebro sob o rótulo de ciência cognitiva. Entre eles cabe citar o uso de sistemas dinâmicos não-lineares, que podem exibir bifurcações e caos, sistemas quânticos, que supõem haver base quântica --- não algorítmica --- na consciência, e também as idéias de vida artificial, com a construção de robôs que aprendam interagindo com os outros e com o meio ambiente.

 

- Redes neurais

São arquiteturas computacionais que pretendem imitar o modo de processamento de que cérebros lançam mão para resolver inúmeros problemas. Surgidas na década de 50, ficaram relativamente desacreditadas até os anos 70, quando passaram a constituir modelos rivais de inteligência artificial simbólica.

A classe de tipos de redes neurais dedicada a simular o pensamento e a inteligência é chamada de inteligência artificial conexionista. Sua construção real (por meio de neurônios artificiais) ou a sua simulação em computadores digitais se dá graças a um artifício: colocam-se muitos "neurônios" conectados, dialogando de diferentes maneiras. O grande elemento que distingue as redes neurais de outras arquiteturas computacionais (como o computador que usamos em nossa casa e trabalho atualmente) é que não há distinção entre software (programa) e hardware (placa e processador). Os múltiplos neurônios artificiais conectados em rede são capazes de passar por uma fase de treinamento em que, dado um determinado problema, vão aprendendo a melhor maneira de ajustar a força de suas conexões de tal forma a resolvê-lo.

Esse problema pode ser, desde o reconhecimento de uma face até a solução de um impasse decisório que envolva conceder um empréstimo bancário. Como não há um conjunto de regras claras para programar um computador no caso de conceder ou não um empréstimo, usa-se uma rede neural que vai, aos poucos, sendo treinada para imitar um professor experiente.

É um erro supor que essas redes sejam similares ao cérebro humano. Seduzem porque não têm uma arquitetura rígida que divida processador e memória com endereço fixo. O cérebro humano, se utilizasse o mecanismo de memória de que se utilizam os computadores atuais, perderia arquivos inteiros ao mínimo derrame cerebral ou mesmo pelo simples envelhecimento.

Na rede neural os programas e memórias estão distribuidas pelas conexões. Também o fato de que modificamos a força de conexão de nossos neurônios pelo aprendizado e o condicionamento parece servir de apelo para que essas redes se assemelhem conosco. Porém essas redes são inúmeras, demoram muito tempo para aprender com exemplos e devem, para executar mínimas tarefas que pudessem ser chamadas de mentais, receber entradas já sob a forma de símbolos mentais.

Vai daí que, se auxiliam na compreensão do processo de ligação complexa entre os símbolos, não por intermédio de regras, mas de regularidades estatísticas, não auxiliam na compreensão do processo pelo qual redes neurais cerebrais formam, a partir de sinais elétricos, símbolos mentais.

Embora extremamente úteis e interessantes na solução de um sem-número de problemas, baseiam-se numa visão relativamente simplista do céreb ro. Como arquiteturas são apenas uma maneira de tentar solucionar o clássico problema das funções compostas para o qual a matemática - aquela de fazer contas na unha - não teve jamais solução analítica satisfatória.

 

 

- Consciência

A consciência é um dos últimos grandes mistérios para a ciência. Embora povoada de idéias, sensações, emoções, vontade e liberdade, é considerada função mental dificilmente explicável em termos cerebrais. Argumenta-se que, mesmo que se explique que a sensação de dor de um indivíduo em um dado instante corresponde a um determinado padrão de funcionamento cerebral (por exemplo, o disparo de potenciais nas fibras de dor), ainda assim serão problemas diferentes --- a dor vivenciada pelo sujeito e o disparo de corrente elétrica nas fibras nervosas --- porque o sujeito sabe que sente dor e não sabe que as fibras condutoras de dor estão funcionando naquele momento (distinção entre significado e referência de uma proposição).

Para que se possa encaminhar cientificamente o problema da consciência, é preciso dividi-lo em duas ocorrências diversas: a primeira diz respeito ao modo como o cérebro produz o fenômeno da consciência; a segunda, como o indivíduo experimenta a sensação de estar consciente de algo. A ciência contemporânea tem uma boa hipótese para o modo como se dá o surgimento da consciência: populações de neurônios reunidos em pequenos grupos (assembléias) são responsáveis por detectar partes de cada objeto, cena, idéia, sensação etc. Fazem-no, gerando potenciais de ação, corrente elétrica, que funciona como se fosse um oscilador vibrando numa determinada frequência.

Em certas situações, diferentes assembléias de neurônios, representando cada uma das partes de um objeto (ou uma idéia ou qualquer outra coisa que povoe o mundo mental), entram em sincronismo, como se fosse rádios sintonizados. O problema da vivência de consciência pelo sujeito é considerado mais difícil, havendo quem acredite ser impossível resolvê-lo cientificamente. Creio que a vivência de consciência é uma propriedade semelhante à transição de fase por que passa a água quando aquecida além de 100oC. A água evapora e mudam as características perceptíveis do sistema.

Grandes quantidades de assembléias neuronais sincronizando podem suscitar fenômeno idêntico, levando o sistema a exibir a propriedade da auto-inspeção ou consciência subjetiva. Mais ainda, essa concepção é compatível com algum grau de controle da porção cerebral consciente sobre a porção não-consciente, o que explicaria mecanicamente a vivência de vontade e de liberdade sobre a ação.

 

 

Henrique Schützer Del Nero é o coordenador do grupo de ciência cognitiva do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP e autor de "O Sítio da Mente: Pensamento, Emoção e Vontade no Cérebro Humano".