Biologia, eleição e seleção

Henrique Schützer Del Nero

Em recente artigo na prestigiosa revista "Nature" (11/06/98), Martin Nowak e Sigmund Karl mostram, com modelos matemáticos, que a reciprocidade indireta (fazer o bem a alguém e ver a sociedade recompensada, no futuro, por essa ação) tende a tornar-se a estratégia predominante perante o semelhante, superando tanto a cooperação indiscriminada quanto o egoísmo contumaz.

Segundo o estudo ("Evolution of indirect reciprocity by imaging score"), fazer o bem não importa a quem tende a tornar-se o modelo de ação social ao longo do tempo. Tão distante da bala na agulha de quem não respeita limites morais e físicos. Tão distante dos que crêem compatíveis modernidade e exclusão, estabilidade e individualismo. O bem, diz o artigo, é algo que só se estabiliza como o ethos de uma sociedade se o deixarmos amadurecer por longo tempo.

Jesus, em certa passagem, ensina que teve fome e lhe deram de comer; teve sede e lhe deram de beber; estava nu e lhe deram de vestir. Os justos, no entanto, indagam que jamais fizeram essas coisas ao Senhor. "Em verdade vos digo: cada vez que o fizestes a um desses irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes." (Mateus 25, 35-40) Essa é a base da cristandade e também do artigo de Nowak e Sigmund, esses guiados pela biologia evolutiva e pela matemática da teoria dos jogos.

Não é a reciprocidade nesta vida nem o reencontro com o beneficiário de nossa ação passada que justificam a solidariedade, mostram os cientistas. O que justifica o bem e a cooperação (dentro de certos limites) é uma propriedade dos sistemas complexos, que faz transmitir através de um caráter – score no dizer do artigo –, a mão estendida ao semelhante aflito. Não se colherão os louros ou o lucro na geração que faz o bem, ficando para o futuro fechar a conta de créditos e débitos acumulados.

O artigo da "Nature" informa que isso pode demorar 150 gerações, a partir de uma população em que todas as estratégias de ação individual – desprendidas e egoístas – apresentam-se em iguais proporções. Não desanime leitor, pois a espécie humana já contabiliza algum avanço nessa direção, sendo que o respeito ao semelhante e algumas formas de altruísmo compulsório – socorrer vítimas, por exemplo – já figuram entre muitas das disposições quase intocáveis da moral e do direito.

Essa propriedade que transmite de geração para geração uma estratégia perante o semelhante, que garante a sensibilidade e a justiça como vitórias futuras, é uma característica cientificamente comprovada e poeticamente encarnada na figura do Jesus da parábola ou do Estado de nossos sonhos, fiéis depositários de ações individuais que se tornam, pelo decurso do tempo, o caráter de um povo.

A biologia evolutiva nos ensina, inclusive com modelos matemáticos, que a cooperação, o bem, a sensibilidade, a indignação e a coragem são atributos da nossa espécie lutando pela preservação e não apenas imposições morais ou religiosas. Os sábios costumam intuir pela razão e pela sensibilidade que a igualdade e a bondade são elementos chave para a coesão dos grupos.

Moisés guiou o povo judeu até a Terra Prometida e nela não habitou. No coro "Va, pensiero" da ópera "Nabucco", Verdi retrata a marcha dos judeus num dos instantes mais belos da música universal. O canto que entoam é o Salmo 137 – "Às margens dos rios da Babilônia nos sentávamos e chorávamos saudades de Sião". Não é à toa que o salmo se chama "Saudades da Pátria". O dever do profeta e do líder é instaurar a marcha para o futuro, o altruísmo como ação, sendo depositário da procura e muitas vezes estando ausente no momento do encontro.

Josias de Souza escrevia em sua coluna dias atrás ("Onde está o social", 25/06/98) que FHC fizera Lula cair. Lula subira na intenção de voto, mas o que se viu então foi um PT batendo na tecla da privatização e outras celeumas. O povo, naquele instante, parecia querer colo e seu recado foi claro. Não o colo dos cartórios, dos direitos adquiridos e de tanta reclamação perante o Estado, como se o Estado não fôssemos todos nós. O povo queria apenas um candidato que o embalasse no choro de saudades de Sião.

A biologia pode ser o arauto de discernimento neste momento em que debatemos o futuro. Pode nos ensinar que a renúncia pode ser a única via para que ganhemos todos. Pode nos ensinar que a solidariedade é a única via de que dispomos. Não sabemos se é exatamente a terceira via de Blair, Jospin e FHC, mas parece ser o que a ciência quer mostrar, a despeito da surdez de nossa razão e emoção e, também, da festa que fazem os incautos com o insucesso dos regimes que sonharam a igualdade como valor.

Uma nota final pode ainda auxiliar no recente debate sobre a derrota da seleção e sobre a crise de Ronaldinho. Nosso ethos é ansioso e egoísta. Dependemos das iniciativas e valor individuais e ficamos discutindo o que teria sido do time não tivesse adoecido o Barão de Mauá-centroavante. Fracassamos porque estamos acostumados a esperar que a vitória venha numa "tacada", do lampejo e da genialidade de um só. Não sabemos o que é espírito coletivo, nem objetivo comum. Fracassamos, ensina também a biologia, diante de uma equipe gerações à frente; talvez sem talentos individuais como os nossos, mas que há dois séculos fez a Revolução Francesa e, há pouco mais de 50, organizou a resistência ao nazismo. Perdemos uma final de Copa do Mundo, não porque nosso talento individual não vale, mas porque, diante dos valores republicanos, nossa equipe ainda se ressente dos vícios de colônia sem noção de Estado como representação solidária do bem comum.