Biologia e eleição

Henrique Schützer Del Nero

 

 

Num recente artigo na prestigiada revista Nature (11/06/98), Martin Nowak e Karl Sigmund ("Evolution of indirect reciprocity by image scoring") mostram, com modelos matemáticos, que a reciprocidade indireta (fazer o bem a alguém que não reencontraremos para poder saldar a "dívida") tende a tornar-se a estratégia predominante de vida em sociedade, superando tanto a cooperação indiscriminada quanto o egoísmo contumaz.

Isto é, fazer o bem não importa a quem, tende a tornar-se o modelo de ação social ao longo de 150 gerações. Tão distante da bala na agulha de quem não respeita limites morais e físicos. Tão distante do que prometem os incautos que numa só gestão pretendem instaurar lucro, qualidade e justiça.

O bem, diz o artigo, é algo que só se estabiliza como o ethos de uma sociedade, se o deixarmos amadurecer por longo tempo, gerações que façam da cooperação sua estratégia social.

Jesus, em certa passagem, diz aos discípulos que estava nu e deram-lhe de vestir; tinha fome e deram-lhe de comer; tinha frio e deram-lhe de vestir. Os discípulos retrucam que jamais o haviam encontrado antes, muito menos o alimentado ou o vestido. A cada vez que fizerem por um dos meus, na verdade farão por mim, resume o Messias. Essa é a base da cristandade e também do artigo de Nowak e Sigmund, esses guiados pela biologia evolutiva e pela matemática da teoria dos jogos. Não é a reciprocidade nesta vida, nem o reencontro com o beneficiário de nossa ação passada, que justifica a solidariedade, mostram os cientistas. O que justifica o bem e a cooperação (dentro de certos limites) é uma propriedade dos sistemas complexos, não-lineares, que faz transmitir através de um caráter, score no dizer do artigo, a mão estendida para o semelhante aflito. Não se colherão os louros ou o lucro na geração que faz o bem, ficando para o futuro fechar a conta de créditos e débitos acumulados. No artigo da Nature, isso pode demorar 150 gerações, mas não desanimem os leitores, porque a espécie humana já andou algumas várias, sendo que o respeito ao semelhante e algumas formas de altruísmo compulsório – socorrer vítimas, por exemplo – já figuram entre muitas das disposições quase intocáveis de nossa moral e direito.

Essa propriedade que transmite de geração para geração uma estratégia perante o semelhante, que garante a sensibilidade e a justiça como vitórias futuras, é uma característica cientificamente comprovada e poeticamente encarnada na figura do Jesus da parábola ou do Estado de nossos sonhos, fiéis depositários de ações individuais que se tornam, pelo decurso do tempo, o caráter de um povo.

Moral, religião e Estado são todos nomes que damos a coisas abstratas, a reinos que não se parecem com as coisas deste mundo, valores que moram onde a traça e a ferrugem não corroem.

A biologia evolutiva nos ensina, inclusive com modelos matemáticos, que a cooperação, o bem, a sensibilidade, a indignação e a coragem são atributos da nossa espécie lutando pela preservação e não apenas imposições morais ou religiosas. Os sábios costumam intuir pela razão e pela sensibilidade que a igualdade e a bondade são elementos chave para a coesão dos grupos.

Moisés guiou o povo judeu até a Terra Prometida e não habitou nela. Verdi, no coro "Va, pensiero" de sua ópera "Nabucco", retrata a marcha do povo judeu num dos instantes mais belos da música universal. O canto que entoam é o Salmo 137 – "às margens dos rios da Babilônia nos sentávamos e chorávamos saudades de Sião". Não é à toa que o salmo se chama "Saudades da Pátria". O dever do profeta e do líder é instaurar a marcha para o futuro, o altruísmo como ação, sendo depositário da procura e muitas vezes estando ausente no momento do encontro.

Josias de Souza escrevia em sua coluna dias atrás ("Onde está o social", 25/06/98) que FHC fizera Lula cair. Lula subira na intenção de voto, mas o que se viu então foi um PT batendo na tecla da privatização e outras celeumas. O povo, naquele instante, parecia querer colo e seu recado foi claro. Não o colo dos cartórios, dos direitos adquiridos e de tanta reclamação perante o Estado, como se o Estado não fôssemos todos nós. O povo queria apenas um candidato que o embalasse no choro de saudades de Sião.

A biologia pode ser o arauto de discernimento neste momento em que debatemos o futuro. Pode nos ensinar que a renúncia pode ser a única via para que ganhemos todos. Pode nos ensinar que a solidariedade é a única via de que dispomos. Não é terceira via de Blair, Jospin e FHC. É o que a ciência nos parece querer provar, a despeito da surdez de nossa razão e emoção e, também, da festa que fazem os incautos com o insucesso dos regimes que sonharam a igualdade como valor.

Que os candidatos possam, como o profeta, guiar-nos para a terra de Sião. Lá haverá de ter, graças à ciência que previu e provou, água para o aflito, pão para o famélico e decência para o povo. Candidatos, ouçam um pouco a biologia evolutiva e não esse credo liberal imediato. No decurso de pouco tempo e com as variáveis e parâmetros errados, de fato o amoral, o insensível e o espertalhão parecem o ideal a perseguir. Nem se vexam mais as pessoas, tão distante estamos da moral de nossos pais e avós. É hora de recolocar a questão da decência e da igualdade amparados, não apenas na indignação de nosso sentimento, mas no poder de nossa razão e ciência. Não é mais hora de falar de igualdade como fé ou opinião, mas de uma ciência que mostra, como 2 e 2 são 4, que não pode haver futuro nem equilíbrio com criança morrendo aflita por um pedaço de pão.