Sofrimento ano III

Henrique Schützer Del Nero (Conto inédito – 1983)

 

Num minuto apenas percorrem o ar, o choro, o estampido, a morte, a vida, a transmutação do ser vivente. Elos frágeis contam em poucas linhas um pouco do inexorável destino da criança chorosa no colo da mãe. Antes, pouco tempo antes, a dor, tão intensa, fazia-a chorar também. Agora é a alegria, ou talvez mero alívio. A festa toma conta de todos. O abraço eterno. O abraço eterno comemora o nascido pequeno. Faz-se grande em pouco tempo, hão de dizer aqueles que apenas contemplam observadoras a individualidade imposta pelo laço cordão agora roto. Fora um junto da mãe. Por instantes confundira o destino e a própria alimentação com o corpo que agora o expulsa. Vai viver! Grita a vida. Vai sofrer sua própria história, que seus traumas já são agora o resto que meu útero expulsa. Gritos na porta do hotel de humilde fachada na travessa de uma rua da grande cidade. Ouviu-se um tiro. O que pode ser a esta hora do dia? Bandido são muitos, mas um tiro apenas é pouco. Terá sido alguém? Quem sabe o estranho morador de um fim de semana apenas no quinto andar. Correm ver. Correm ver os parentes tão logo recebem o telegrama que anuncia o novo ser, prenúncio da era de Deus feito homem, infante carente que pede a todos, apenas, que o deixem viver. Do nascido ser sobra agora o sangue espirrado no tapete da casa de interior. Todos comentam que foi uma bala de grosso calibre. Quando entraram já não havia corpo vivo, somente os restos da placenta da mãe que albergavam em seus pontos vitais certeiro que havia muito acabara com a vida.

Estranho ser que errante caminha com apenas um ano. Chora no instinto que busca o peito da mãe. O senhor pode me fornecer os papéis para que possa executar o inventário do morto? Não tinha muito na vida. A família já vem vindo do interior para cuidar do corpo morto. Dizem que pretendem enterra-lo por lá. É costume antigo colocar todos os corpos da família na vala comum do cemitério São Januário Pai de Deus. Vem uma procissão de mulheres da cidade vizinha chorar o morto, tão logo chegue no trem da antiga Companhia Paulista. Agora é outro nome. Piorou muito desde que o pai fechou o tampo de sua mesa de gerente de estação em Tambuã em seu último dia de trabalho. Aposentou-se no limite do prazo permitido pela lei. Trabalhou alguns bons anos de graça para espanto geral. Mas a ferrovia funcionava bem nesta época. O trem, sempre limpo, chegava impreterivelmente no horário. Hoje ao mínimo atraso depredem-se estações. Atento anota as reclamações em um pequeno caderno preto com friso dourado, que guarda até hoje como recordação da época passada. Ah! bons tempos aqueles quando os trens não atrasavam.

 

O senhor deverá deixar dois dias pagos, responde com ar autômato e cansado o porteiro do nostálgico hotel. Não me parece ter muito serviço durante o dia e confesso que até esboça um ar de estranheza, quando alguém manifesta desejo de permanecer ali por mais tempo que algumas horas. Há toda a estrutura que justifica o preço baixo. Os hóspedes, na maioria clientes de prostitutas das vizinhanças, não demoram a usar as dependências. Depois saem apressados. Alguns ainda tentam, em vão, abraça-las a cata de um último beijo, uma última carícia. Não está incluído no preço mas algumas satisfazem o desejo para assegurar o retorno. Pago o quarto, voltam para a solidão de seus postos estratégicos. Muitas vezes não aparecem no hotel. Noites fracas. O quarto tem banheiro. O café não está incluído. Por favor não escreva dados pessoais na ficha, apenas um nome qualquer. Temos por norma não perguntar nada a nossos clientes. Ante o pedido para que ao menos anexe um telefone à ficha, consente o porteiro e observa o homem, trinta e poucos anos, pálido, barbas longas, colocando um número qualquer. Não imagina que em poucas horas, talvez dias, terá que remexer os papéis para encontrar o único elo de ligação possível com um mundo exterior que brinda aquele hotel com um ser estranho com o nome trocado, e que solicita poder deixar um número de telefone para que, caso necessitem, localizem a correspondência real em meio a todo o imaginário local.

Feita a autópsia, revela-se como "causa mortis" hemorragia cerebral incontrolável causada por projétil de arma de fogo calibre 32. Interessante é que a análise da amostra sanguínea mostra ainda intoxicação por barbitúricos que naquela quantidade teria sido suficiente para matar um instante depois. A hora da morte, segundo constará para sempre nos arquivos do Serviço de Verificação de Óbito da Prefeitura local, é alguns instantes antes da movimentação que tomou conta da rua, tão logo se ouviu o estampido. A morte teve lugar exatamente alguns instantes após o referido som. Nos comentários secundários, uma nota explica que algumas horas antes os tecidos já estavam impregnados pela dose da droga ingerida e que, a julgar pelas lesões, mesmo que o projétil tivesse escolhido área menos vital, o comprometimento do sistema nervoso já seria, então, irreversível. A seqüela esperada, em um caso destes, é a perda total da consciência, obrigando o corpo, agora sem percepção e reação ao mundo exterior, a viver indefinidamente ligado a aparelhos que artificialmente criam vida passiva, tal qual no útero materno. Felizmente não houve necessidade de se adotar tal medida. O corpo, já decomposto, fora tirado da artificialidade materna já tinha tinha tempo e agora, vítima do projétil calibre 32, reassumia-se vida.

 

O quarto é pequeno. Uma cama de casal, já velha, coberta com um colcha de lã vermelha e azul, ocupa o centro. Ao lado estão dois pequenos criado-mudo. O banheiro de ladrilhos brancos, alguns já quebrados, tem apenas um chuveiro e uma privada. A pia e um espelho redondo, trincado de lado a lado, ficam no quarto. O próprio porteiro acompanha o hóspede e lhe mostra as acomodações. A mala muito pequena poderia ser carregada sem dificuldade, mas certamente não se encontraria com facilidade o número do quarto, pois não há uma correspondência entre o mesmo andar. São um seqüência do outro, assim somente o sonolento porteiro pode achar rapidamente o número 15. Os freqüentadores assíduos , estes não acompanho, mesmo porque, muitas vezes, já iniciam as carícias no caminho. Há até quem faça nas escadas. A porta já está fechada. Sentado na cama Marcos Santiago - este é o nome que consta em letra de forma no registro da portaria - olha a janela.Nào se vê muito através dela, senão as cinzas de alguns prédios muito próximo. É preciso chegar mais perto e debruçar-se, para ver um pequena ruela lá embaixo.

 

O caixào de Marcos Santiago - aliás Helio Afonsin - foi transportado naquele mesmo dia para a cidade de Tambuã. O trem saiu com um atraso de quinze minutos da velha estação da Luz em São Paulo. A família esperava toda. A casa, preparada para o velório, tinha na geladeira a comida necessária para a noite. Viria ainda muita gente para ver o corpo. Na sala principal uma cristaleira antiga já se enchia de doces feitos pelas vizinhas laboriosas.

Assinados todos os papéis, liberou-se o corpo. O pai de Helio sentiu uma leve angústia, ou talvez nostalgia, ao ver o empregado da ferrovia que assinava os papéis no mesmo lugar de sua antiga mesa. Hoje a mesa não é a mesma. Houve uma reforma, coordenada pela assessoria do governo, e se padronizou um tipo único de mesas para todos os escritórios de gerência nas estradas de ferro da rede federal. Hoje são de metal, funcionalmente superiores, e ainda resistem melhor ao fogo. O caixão estava fechado. A mãe de Helio não pode estar presente. Trancada em um quarto da pequena Santa Casa local, encontra-se sob vigilância médica, visto que a reação à noticia inesperada fora interpretada como potencialmente patológica. Um carro antigo foi trazido para levar o corpo. As pessoas seguiram-no, em sua maioria, a pé, enquanto outras tantas já o aguardavam, em casa.

Marcos Santiago é o nome escrito com letra infantil no enorme caixão preto postado diante da casa branca de uma pacata rua de interior. Helio percebe a irrealidade do fato, quando verifica que o nome representa a figura de um sobrinho seu. Consciente do absurdo da cena, percebe tratar-se de sonho. mas no entanto insiste no mesmo, procurando entender a seqüência. O caixão está fechado e logo acima do nome há uma cruz onde, conforme já dito, encontra-se escrito com letras de forma, tal qual aquelas escritas por crianças, semi-alfabetizadas, Marcos Santiago (a porção "AGO" do nome, como não houvesse espaço, está esprimida e ligeiramente caída). Nome desconhecido, num instante personificará a figura do menino de oito anos filho de uma de suas irmãs. No interior da casa todos choram. A mãe recomenda cuidado com a irmã. Não sabia que o filho tinha doença incurável e já há três anos padecia do mal que agora acabara por matá-lo. O mal não se explica qual seja. Fica tudo como se fosse inesperado. Sua morte já era há tempo certa, quando o médico de São Paulo chamou o pai e disse não haver mais nada que se pudesse fazer. Melhor seria retornar a Tambuã e morrer ali. Todos sabiam, menos a mãe, que no choro convulso parece mostrar que apenas o inesperado da evidência é que torna insuportável. O choro dos outros nada tem de patalógico. A resignação diante da evidência materializada durará apenas alguns dias, até que possam retornar a seus afazeres habituais, deixando na lembrança o ser que, agora morto, descansa no caixão fora da casa. A evidência do descarte da vida remete-o para a simbólica porta fechada do lado de fora da casa.Helio acorda assustado ainda assim. Não cpmpreende o porquê do sobrinho ter o nome trocado e, ainda anos depois, se lembra daquele nome desconhecido - Marcos Santiago - associando-o à morte fantástica de uma criança que hoje é um moço, terminando os estudos de Agronomia na escola da cidade vizinha e que, agora, chora socialmente a morte do tio.

Marcos, sentado na cama, olha o lento escurecer pela janela. Vem-lhe à mente recordações da infância. Por um instante pensa em telefonar para a casa e falar com os pais. Seria inútil porque ainda hoje, o interurbano é precário e suas vozes seriam abafadas pela distância. Faz pouco tempo deixou em casa a criança pequena. Mariana nasceu tem apenas cinco meses. É a primeira filha. Os primeiros anos de casamento não trouxeram crianças, por decisão sua, que, receoso quanto à estabilidade do mesmo, procurou ter um pouco mais de certeza do que iria oferecer ao filho. Nascida a menina vieram todos do interior para vê-la. Foi a última vez que viu a família. Os pais, já velhos, se alegraram com a última neta. Houve até um jantar no dia em que retornariam a Tambuã. Helio esteve todo tempo indiferente ao riso e aos gestos dos presentes. Houve instante em que até esboçou contrariedade pelo fato de ter de estar ali, em meio a tanta gente, falando alto e comendo sem parar. Seu sorriso social esboçou-se levemente no instante da despedida, e os pais, abraçou friamente respondendo amém às bençãos da mãe e assentindo com a cabeça aos conselhos do pai. A mulher, do outro lado da mesa, estava distante já fazia tempo. A paz que alcançara, suporte para a estabilidade responsável com que consentira a si próprio na hora de optar pelo nascimento da filha, chamava exaustão e apatia. De fato a distância da mulher era a harmonia apática e morta de alguns anos de casamento. Não havia mais porque se preocupar com o destino de algo que já não era. Ora, se não era mais não podia mesmo terminar ou fracassar e assim Mariana tinha agora o ambiente ideal para nascer e crescer.

Sabia bem que naquela noite teria de suportar a mulher falando de sua família. O pai, homem rústico, certamente a desagradara com seu espontâneo jeito de dizer as coisas. A mãe, em suas domésticas perguntas, bisbilhotara a noite toda quanto a forma com que a incompetente esposa conduzia a cozinha do apartamento. Helio deve comer bem. A esposa se queixará a noite toda, enquanto o outro espera pacientemente até que possa revidar. Certamente haverá jantar com a outra família e então ele reclamará dos sogros que, com sua mania de superioridade material, indagam se o salário está dando para sustentar os desejos da filha ou se é preciso que voltem a comer na casa deles, para econimizar o dinheiro da comida.

Marcos apaga a luz deixando apenas os reflexos coloridos que entram pela janela iluminar o cômodo. Há algumas boates lá fora que , a esta hora, já começam a se preparar para a noite movimentada de sexta-feira.

 

Eu te abençôo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Helio Afonsin, que a paz esteja contigo todos os dias de tua vida e que habites a casa do senhor em virtude e em graça. Helio batizado, confessando seu pecado feito do tamanho do mundo e redimido pelo sangue de Cristo, imolado na cruz da humana falibilidade. No seu enterro não houve festa religiosa, proibida pela Igreja por ordem do bispo, que, ao ficar sabendo das intenções do padre de desconhecer a causa, ordenou que se realizasse. Já são muitas as transgressões impunes ao corpo de Deus, para que se possa fazer o exercício do perdão se sobrepôr às normas instituídas. O enterro não teve padre, mas teve canto de algumas mulheres que repetiam sem cessar: Com Deus, com Deus, eu lá estarei. Dizem até que Deus estava presente porque havia mais de três pessoas invocando seu nome e pedindo Sua graça e perdão para o pobre Marcos, aliás Hélio, morto pela sua mão. O padre inconformado acompanhou calado o enterro e não ousou manifestar sua opinião de repúdio à ordem superior. Mais tarde diria à mãe, com confissão, que tinha certeza de que Deus seria mais benevolente com Helio, que o fora a Igreija. Esta, infelizmente, não tinha perfeito domínio da graça do perdão, pois antes devia delimitar o exato divisor de águas entre a vida virtude e o pecado omissão.

 

 

Faz tempo a gente se conhece. Helio não deixe que o medo o impeça de me contar seus segredos. Desabafe e faça um bem para si. O pecado é mais grave quando temos que suportá-lo em silêncio. Helio reticente não pode, de imediato, falar sobre seus sentimentos e embora sinta-se tentado pela doce amizade do padre do outro lado do confissionário, bem sabe que no final será julgado mesmo assim. Interessante sensação a sua, quando em casa, sentiu que não haveria ninguém que vigiaria sua punição. Cumprida a obrigação, comungará, e ao retornar à casa deverá pagar com alguns poucos versos o pecado de seus últimos dias. Olhando no espelho ousa dizer que Deus não será capaz de puni-lo se mentir para o padre na vez seguinte, jurando ter cumprido à risca tudo o que lhe foi ordenado. Passado algum tempo, percebe que sua relação com a Igreja não passa de uma aparência de harmonia de seus pecados com a fiel observância dos castigos habituais. Algumas vezes a freqüência dos mesmos impacienta o padre, que procura ensiná-lo que a virtude não está em reconhecer e pagar pelos pecados, mas, antes disto, esquecê-los e, em não podendo fazê-lo, diminuí-los. É difícil explicar ao menino que a naturalidade com que os cometia deve ser substituída por uma rigorosa premeditação de um bem, que não o chegava a tocar, nem sensibilizar. Antes é preciso fazer o bem com tristeza no coração, para que se possa criar um coração do qual, um dia, brotarão apenas coisas boas. O pecado o distancia de Deus. O perdão estabelece um aval para que se possa voltar a uma pureza impossível e então se possa novamente imitar o Pai. Helio repete cada dia mais vezes diante do espelho, que Deus é capaz de impedí-lo de comungar, mas não é capaz de roubar sua liberdade de dizer que não existe. Onde está Deus, quando se conversa com o espelho que reflete fielmente minha imagem invertida? O sorriso de seu lábio é o embuste de sua falta de coragem de cuspir na cara do padre, quando este afirma que muitos de seus atos são os de um depravado. Certa vez pensou em afirmar para toda a cidade que vira o padre se masturbano, enquanto uma mulher contava suas intimidades com o marido. Seria mentira, mas certamente tal a verossimilhança em potencial, que deixaria por algum tempo pairar a dúvida sobre a idoneidade daquele homem que o julgava piedosamente todas as quintas-feira à tarde.

Sua consulta será quinta-feira às três da tarde. Por favor não se atrase porque já há outra pessoa às quatro. Reticente, de início, Helio jamais pensou procurar um analista. Seu pai sempre dizia que era coisa pra louco. Sua mãe certa vez fora mais longe. Disse não entender como poderia uma pessoa pagar tanto dinheiro, para contar seus problemas, se havia tantos bons sacerdotes prontos a ouví-los.

Helio angustiado espera sua vez e, cético, pensa ter sido um erro querer solucionar algo que se desarranjara tinha muito tempo. Todos os lugares eram apenas variações temporais de um mesmo sentido oculto. Todas as pessoas eram personagens diferentes de um mesmo papel. Todos os segundos eram a impressão falsa de progresso e, no entanto, em seu estático desvelamento não faziam senão corroborar o sentido que tudo esclarecia: viver era dor.

A bula do remédio recomenda expressamente que qualquer alteração na quantidade ingerida deve ser precedida de orientação médica. A advertência quanto ao risco da droga não parece ser simples salvaguarda institucionalizada entre as indústrias, que falam horrores até de uma aspirina, temendo processos monstruosos pelo imponderável colateral indesejado de um intenção restauradora. Além do mais, receita retida e vigilância policial confirmam tratar-se de droga potente e perigosa. Depois outro. Tomara o cuidado de ficar algum tempo sem tomá-lo, para que quando decidisse, tivesse quantidade considerável em mãos. Não houve uma lágrima, um suspiro, uma reação entre uma tomada e outra. O automatismo da cena parecia demonstrar a indiferença valorativa de alguém que escova os dentes toda manhã em frente ao espelho. Poderia se dizer que, quanto ao raso de emoção, a cena mais parecia suas noites, penosas, quando ainda tentava encontrar prazer no sexo da mulher. Gemia falsamente para que pensasse prazer, evitando assim a ladainha posterior da frustrada mulher que já não entendia a suspensão do prazer. De fato, melhor fora comparar com estes momentos, que com o escovar de dentes matinal, que muitas vezes ainda o fazia vibrar, quando, tomado de súbita euforia, encontrava em seu riso o atrativo possível que perdera no papel de marido e de pai. Ingeriu todas. Depois deitou-se um pouco e pensou se pelo menos sentiria dor. Havia tempo não sentia mais o prazer da dor. O vazio das horas arrastadas traziam apenas indiferença, tédio e, por vezes, uma fugaz onda de desespero que implorava por um fim próximo e redentor. Redimir-se através do ato da dor, seria ao menos acabar com a vida pela antítese da felicidade dos que o tinham visto nascer. Ao menos a coerência da inversão de vida e de morte seguir-se-ia do par gozo e fim.

Ajoelhado, experimentou por instantes emoção angustiada e pediu perdão aos pais. Depois pediu perdão a Deus, o mesmo que matara havia anos, quando finalmente decidiu cuspir no padre depois de ouvir palavras duras em resposta às suas mais sinceras dúvidas. Já não era o pecado que importava. Era a perda do gozo do mesmo.

Assustado com o pedido da esposa, Helio, por alguns instantes, parou de fazer o movimento instintivo, já se aproximando do êxito final. Bateu de leve a primeira vez. Depois um pouco mais forte, até que percebeu que o prazer aparente que propiciava sobrepujava de muito sua limitação intencional de não causar dor. A dor a fazia delirar. Pediu que revidasse e a esposa, de imediato, o estapeou com toda a dureza que jurara ao padre jamais tratá-lo. Ambos atingiram um orgasmo desconhecido e selaram assim em sua vida a nova evidência, que, transpondo o limite da expectativa concebida moralmente, trazia mais prazer que carícias e trocas de sussurros apaixonados. Estes eram para os namorados, para o início irresponsával da arte da vida conjugal, quando ainda não se procura confundir o medo e a morte com a vida que se pretende dominar. A dor era capaz de excitá-los ainda, numa época em que o amor já começava a acabar. O desconhecido cheiro, agora enfadonha presença diária, deveria criar a saída honrosamente guardada no recolhimento de um quarto e, assim, salvar por mais uns instantes o agônico corpo, que fora dois e que, na presença da troca de intenções agora explícita, começava a se decompor. Houve um dia em que decidiram parar, pois aquilo que, de início, fora apenas umas marcas escondidas dias depois, começava a ser ferida que, tão profundamente marcada por correntes e algemas, não pararia jamais de sangrar.

Hoje já não sofrem mais e, nas raras vezes em que vão para cama juntos, fazem-no o mais depressa possível, virando em seguida para o canto sem dizer palavra. Com os olhos fechados, Helio, muitas vezes, tem de pensar em outra pessoa para poder manter a ereção. Ficam meses sem nem sequer se beijar. O contacto de seus lábios, o mesmo que já foi capaz de causar a sensação doce de um sentido alcançado, agora provoca náuseas. Certo dia vomitaram ambos. Culparam, de imediato, a comida que possivelmente estragada, os fez prevenir meses a repetição do prosaico momento.

Marcos, deitado na cama, sente aos poucos o entorpecimento passageiro da dose excessiva de drogas. O quarto roda, o movimento assume o estático dos móveis que, passivamente, contemplam a gênese absurda do paradoxo de algo que em dose maior leva à demência em lugar do perdão. Perdão à loucura, ao excesso de sentimento, à dor que, demasiado evidente, rouba a falsidade do sentido daquilo que não tem. A mesa do quarto, pequeno criado-mudo, paira num limite de normas intransponíveis e, ainda assim, possíveis, visto a imaginação delirante concebê-las. Difícil fora concatenar a um só tempo, a evidência do possível mundo e probabilidade normal de ocorrência do variável e incomum. Marcos, pessoa incomum que traduz dor onde pretenderam ler vida. Marcos, que, em lugar de sonhar com o metro quadrado a mais de sua propriedade de campo, cede ao inevitável paradoxo da liberdade sacrificada em proveito da gênese igualdade. Não fora por outro motivo que, crente poder achar solução para uma instância moral de interrogação valorativa, procurara, em vão, na incongruente ideologia a resposta impossível. O estéril da vida criação se transforma semanticamente na previsão humana da igualdade perante um Estado, que não faz senão por recriar à imagem e semelhança a figura da matéria que o inventa. Logo veio o desencanto, pois a ideologia era apenas mais um passo num infindável caminho, que arduamente revela seu despido sentido. A tentativa de valor esbarrava na própria ausência de referência que o pudesse reclamar e endossar. Deus fora a moral inicial e, na prédica criticável do paroco da cidade, vira o início de um ideal que mais tarde se mostraria em vão. A moral que reclamava por um Deus, para afastar de si o mêdo da duplicidade neurotizante, em nome do bem da multiplicidade e variedade, abarcada pela figura de Deus, acabava por recriá-lo simplesmente moral. E moral angustia. É a própria gênese da decisão que valoriza o futuro petrificado na circunstância presente. Passado o presente, este, já corporificado na figura do tempo, não mais pode ser atingido pelo metafísico julgamento do futuro. No desengano da semântica separada temporalmente, o partido, qualquer que fosse, será apenas instância intermediária entre a intenção da resposta e a evocação posterior da nulidade da mesma. Marcos desencantado abandona as velhas idéias e, no vazio momentâneo do desencanto ainda fresco, procura desesperadamente a moral que volte a prever o valor da coisa-mundo. A coisa-mundo, no entanto, brinda-o com a simples evidência do Deus morto, do crucifixo pendente na razão de cada um de nós, com o paradoxo da negação de Pedro que, no entanto, nega por todos nós, enquanto condição humana. É o filho do Homem que pretende roubar nossa única centelha divina - a angústia. Deus, angustiado, pretende restaurar o domínio do pecado e enquanto os móveis voam à frente do incrédulo e atônito olhar, dá ao Homem a única saída honrosa: a morte.

Hélio volte já aqui. A mãe irritada chama a criança pronta a repreendê-la por alguma arte. Não há meio de permitir que a liberdade do instinto se manifeste além de certos limites. Como será possível mais tarde o comportamento frente aos outros, se pretender tratar o mundo como uma extensão de seu recolhido e recatado quarto. Não, há uma verdade que poderá habitar a permissividade do inexpugnável ser da consciência pura e outra que deverá observar as regras, como se não houvesse senão tênue correspondência entre ambos. Difícil dia aquele em que os pais foram obrigados a disevidenciar os fatos ocultos do quarto de portas trancadas, para repassar aos filhos a idealidade utópica de uma moral morta como os pais que as transmitiram. Há muitos ratos na casa e todas as noites, antes de ir para a cama, o pai de Helio coloca ratoeiras estratégicas, fartas de queijo, para que no próximo dia possa subtrair, do infinito incomensurável, o número de mortos seduzidos pelo convidativo queijo suíço. Não seria possível ter número tão expressivo de baixas a cada noitese não usasse como isca enormes nacos de queijo, comprado no armazém de seu Pedro, que afirma importá-los diretamente da Europa, embora, explicação mais plausível, seja de que é produto de qualidade superior feito aqui mesmo na cidade. Os ratos o apreciam. Seus olhares mortos, petrificados na cena final do planejado gozo, deleitam a família que vê, na vitória do dia vindouro, a glória da razão sobre o natural. Natural haver ratos em tamanha montanha de madeiras velhas, que servem de estrutura à casa donde Hélio passa seus dias de infância, e que, apesar de incansáveis reformas, conserva ainda a mesma estrutura dissimulada de antes. A calha principal, viga para todo o teto dos quartos, ainda é a mesma da época dos antigos moradores, e embora o engenheiro da Prefeitura insista na necessidade de trocá-la, pelo risco de desabamento após a época das chuvas, nunca se encontra dinheiro para fazê-lo. Dinheiro há, mas enquanto não se tornar factível a consequência, não se pensará em alterar o rumo das causas. O único lugar que, segundo o perito, ainda tem condições de suportar é a madeira que passa por cima do quarto do casal, desde que se façam algumas pontes de escoramento para outros pontos da casa. Na delícia dos momentos de prazer e na confusão da intimidade do pecado, despido da vigilância punitiva, conserva-se no entanto, reticência em fazê-lo, com medo que, vindo tudo abaixo, carregue-se também o cômodo, ilha única de segurança circunstância em meio a tanta previsão irreal. É preciso crer que a estrutura agüenta e, afastado o temor diante do pessimismo da razão que reclama por reformar, novamente se poderá dormir em paz sem mudar uma palha do lugar, salvo pela exterminação diária de ratos que, segundo crença popular, são os grandes responsáveis pela deteriorização temporal das estruturas de madeira da velha casa.

 

Tambuã, cidade pequena, a poucas horas de trem de São Paulo. Atinge-se facilmente o centro da cidade, vindo da estação, caminhando lentamente pela rua principal. Há hoje em dia comércio mais desenvolvidos, o que na época da infância de Helio se limitava a algumas poucas lojas, abarrotadas de mercadorias importadas. A família costuma comprimentar os conhecidos na praça principal, aos domingos, logo que termina a missa. O hábito é tão enraizado que constitui ofensa não presentear a população de amigos com as novidades da aparência semanal de cada um dos seres que constituem a invariável fauna de habitantes locais. Helio preso pelo braço, desfila no primeiro dia de sua vida consciente para que todos o observem coisa. Muito antes de saberem aquilo que pensará das coisas, já terão criado o mundo de expectativas em relação aos seus atos, posto ser filho de quem é, e responder pelas relações temporo-espaciais peculiares aos seres moradores da travessa terceira da rua principal - a contar a partir do Largo da Matriz - nascidos há apenas alguns meses. A continuidade das instituições humanas é o único argumento capaz de assegurar mérito em suas essênciaas. Pior fora sem elas, pois o preço da personalidade é a solidão. A autenticidade liberta, logo se coroa de angústia silenciosa que acaba por duvidar de suas próprias razões diante da reprovação coletiva aos atos de coerência. Helio parte da cidade libertando-se dos braços da família que o seguram, enquanto titubeante aprende andar. O paradoxo do ato se reveste da impossibilidade de ruptura radical sem que se tenha de desdenhar o tempo que separa a dócil inocência da revolta explosiva do adolescente, que reclama sua identidade. Esta, infelismente, perdeu quando, seguro nos braços da mãe, aceitou, ser exposto ao olhar marginal daqueles que, na contemplação da figura envolta em lençóis, já começavam a roubar-lhe a forma ideal, presenteando-o, em troca, com o estrito caminho de possibilidades reais. Helio está seco, tal qual cacto no deserto, enquanto sua mãe o exibe para a multidão que, ciente de sua responsabilidade confessa minutos antes, durante a comunhão, ajuda a mãe a segurar o filho jovem que quer partir para a grande cidade e, ainda pequeno, não percebe que carece dos braços alheios que o seguram, impedindo-lhe a queda.

 

Uma depois da outra, as imagens de uma infância fria e inóspita povoam o corpo semi-entorpecido de Marcos, que olha distante a janela que deixa entrar apenas sombras da luz vermelha de um luminoso da boate principal da rua. a rua de tambuã, de terra nessa época, solta poeira vermelha quando passa o único carro da cidade: um velho Ford que, comprado pelo fazendeiro mais rico da região, serve de espetáculo para as crianças da cidade que jamais sonharam com tal máquina. A alavanca faz com que o movimento se dê após o esforço incomensurável do franzino homem moreno de chapéu de palha na cabeça, que orgulhoso desfila sua propriedade ante o pasmo olhar de uma interiorana ingenuidade. Manhãs quentes aquelas de mornas recordações. O marasmo do ar brinca de esconde-esconde com os amigos da rua. Os pais sentados na varanda esperam que a brisa da tarde refresque seu comportamento indolente e letárgico. Ás vezes passa uma ave por cima da rua. Parece que até elas não suportam o terrível sol do meio-dia, quando a mente se liberta da criatividade e se envolve na massa quente que é a vida dessas horas. O vizinho de baixo saúda de longe, tirando o chapéu imprescindível, enquanto tinge o branco do linho do terno de vermelho terra. Hábito fiel, é sinal de elegância, o terno de linho branco, passado cuidadosamente a vela pela laboriosa preta, filha de escravos, que como mais ninguém sabe deixá-lo impecável. Depois vem o pó, secura intensa, e quebra o branco, encardindo o tecido que fatalmente voltará ao tanque, para novamente, no movimento repetitivo, ser branco e limpo. Tardes tristes e mornas. Marcos lembra, envolto no escuro do quarto, contemplando os objetos que já não têm a forma completa, e que na suspensão de valor mais se assemelham agora ao incerto perfil das coisas debaixo do sol infernal de meio-dia em Tambuã. Com tanto calor não há vida. Desidratados de sentido vital aguardam, homens e objetos, a noite.

O sonho da cidade grande, da libertação final, termina no velho cômodo alugado de uma pensão suja. Marcos enfrenta tempos difíceis para poder estudar em São Paulo. O trem, partindo, diminui aos poucos o choro da mãe e as recordações do pai. Sempre juntos, preocupam-se com o filho que parte. Dizem que agora se perde de vez sem ter a cidade a vigiá-lo. Como criança rebelde parecia ter o estranho prazer de desafiar o habitual. Habitual, estranha palavra que nem sequer penetra o precário vocabulário das mulheres que se preocupam com o lento afastar do trem. É difícil estudar em São Paulo e o pai, um pouco por limitação material, e também inconformado com a partida do filho em hora que não julga conveniente, dá-lhe o mínimo necessário para o sustento. Retruca que, assim, evita que caia em farras e logo se torne um boêmio. Em Tambuã não há boemia. Às dez da noite os últimos casais se retiram da praça principal e voltam às suas casas. Não há perigo de assaltos, mas a moral manda que a noite seja respeitada como o inimigo possível das intenções claras e pensadas.

Logo no início da nova era da libertação, muda-se o clima. O sol já não há, não queima nem esquenta como nas tardes quentes da infância em Tambuã. A janela não mostra paisagem muito melhor que o carro que vez ou outra levanta poeira na recordação menina. O sol aqui se chama solidão que, na fria relação de seres esquivos, amedrontados pelo desconhecido recém-chegado, lhe negam o discurso, o pão de suas casas, o conforto do lar. As portas se fecham mais rápido na grande cidade e sobra apenas o cinza e a sujeira das ruas do centro, onde as velhas pensões guardam nos quartos as muitas histórias solitárias da migração libertadora, que encontra fim no início do contacto cinza de São Paulo. Cidade suja. Faz muito frio nos meses de inverno que até assusta a lembrança do hábito morno de tambuã. Lá, nas noites de inverno, aguenta-se bem o peso do lençol. Nas outras nem mesmo isto. Mas é preciso esperar até que se possa ganhar a confiança de algumas pessoas. Quem sabe fazer amigos, beber junto. Por enquanto, sobra a mesa vazia de um bar central, a cerveja fria que ajuda a passar o tempo e acostuma a realidade com a idéia da solidão. a moça, bem vestida, se interessa pela feição do rapaz moreno, já ensaiando uma barba negra, de tez clara, de cabelos que começam a faltar. Ouve-lhe os projetos e, no encantamento do desconhecido, se esquece de lembrar aquilo que só conhecerá num futuro imponderável. Não há mais novidades, não há mais o gozo daquele primeiro dia em que até um moço do interior podia evocar-lhe o prazer embutido na perplexidade da descoberta. Sobra sempre, no futuro, a vida desvelada e a eterna sensação que lembra as tardes quentes de tambuã. A barreira das posses não é senão impulso, quando se quer acreditar no desfecho de uma plausibilidade impossível. Antes, é o desafio; depois, sobra como simples argumento, seguido de outros, para a fracassada relação. Não é suficiente nem bastante. Coroa apenas o corpo que não pode jamais se unir a outro sem com o tempo reaprender-se solidão. O olhar do futuro sogro, persegue incansável a referência de futuro na intenção profissional. O estudo pode bastar, desde que se tenha a necessária ambição, para fazer dele o meio de conquista da coisa que não se tem. Inteligência não basta. Idéias também não, salvo quando, desprovidas do sentido puro e descomprometido, levam a um fim material. A sogra se transforma na vidente do futuro da filha ao lado de uma pessoa que não conhece toda a gama de razões que devem mover um ser, quando se senta diante de garfos e facas de tamanhos diversos. Berço não se ensina. O rústico interior afeta a compreensível preocupação do país, que sussurram entre si não ser a melhor escolha, embora não possam evitar o casamento entre pessoas tão ligadas. Esquecem de ver o futuro que desune o corpo que não nasceu para se unir, culpando a cor descombinada das meias de um moço ingênuo que não as sabe planejar.

A vida continua a mesma nas travessas da grande cidade. O morno interior dá lugar ao cinza frio da fresta da janela por onde Marcos olha, na manhã do dia seguinte. Entorpecido pelo sonho da noite não divisa no símbolo velado a emoção que partiu. O engulho faz com que vomite e uma a uma são expulsas as pílulas semi-digeridas. O azêdo na boca lembra das tantas vezes que, na tristeza do vazio de seus planos, volta para o quarto e planeja acabar com tudo. Há momento em que diante do espelho ensaia o revólver na testa,mirando a estética do fim, imaginando o corpo dali a instantes, agora sem sua presença consciente, contemplado pelo desesperado dono dos quartos que teme venham complicações. Haverá até o exclamado suspiro da senhora que limpa o quarto, que saudosa do recém-partido lembra da gentileza da relação. Mas neste instante a morte ainda não vem. A emoção com que olha a derrota o impede de terminar a luta. Ainda há dor pela solidão. Ainda há indignação diante da hipócrita aparência com que se conforma o mundo que deixou pra fora do quarto, quando fechou a porta do hotel. Por que nem todos têm fim igual? Na sua infinita pobreza de espírito estão resguardados da angústia que reclama pela bala certeira. A moral, este monstro que o persegue, ajuda-os a viver. Não esperam muito mais que os vermes que hão de lhes roer a carne. Nem com isto se angustiam, porque, já podres em seus princípios, nem sequer se perguntam por razão. Mortos todos na praça principal de Tambuã decompõem-se há anos sob o sol quente de verão. Não sentem o cheiro de sua carne porque aquilo já se incorporou às suas vidas. São, no entanto, incapazes de sentir solidão. Mortos todos fazem companhia uns para os outros. Hélio se despede de sua infância, dos costumes da velha cidade, e parte para outro lugar que lhe devolva a evidência da tirania do ser prisioneiro das convenções. Sem elas, afinal, o que resta? Resta angústia. Morto Deus, o que resta? Nada, nem o pecado que só anda junto como o Pai que o abençoa e o cria à sua imagem e semelhança diante de um espelho que faz apenas por invertê-lo. Deus e o diabo sentam-se frente a frente na escada fora do quarto, e lá dentro resta a dor que, esquecida na incompreensão do mundo, agora só se chama apatia.

Marcos carrega a arma trazida consigo para o caso da droga não lhe trazer o fim almejado. A reação de repúdio gástrico lembra, ainda uma vez, o instinto tolo que se apega à vida da forma, quando a essência já se perdeu. Lá está Marcos contemplando o descompasso da natureza e da evidência do mundo. O vômito no chão não é capaz de roubar-lhe a porção ingerida, mas é capaz de fazê-lo acordar na manhã seguinte, passados os sonhos, tal qual faz há anos. Quantas vezes pediu a Deus que o privasse de ver a manhã do dia seguinte. Que o matasse no sono que é um pouco da morte, na sua consciência suspensa e que, tão real quanto ela, mostra um mundo invertido e subjetivo, onde nossa crença não ousa penetrar.

 

O pai de Hélio pede a palavra e ante ao incrédulo olhar dos presentes inicia um discurso. Os pais da noiva abaixam a cabeça, envergonhados da reação dos presentes. Já fora difícil planejar tudo de forma a conter os arroubos de uma família de interior. Os noivos ainda no gozo da esperança, continuam, por ora, imunes ao temor da aparência. Riem do hábito em desuso. A mãe da moça passa mal. Quanta falta de finura! Foi a única vez que tiveram contacto as duas famílias. Depois o casal as visitava em separado, como que num movimento que faz com que o animal procure a fonte da dor, achando lá o alimento da sua crença. Nada como o conjunto de circunstâncias que moldam os grupos dentro de certas premissas de ser, para que se possa tomar o próximo como verificador de uma maneira de ver o mundo. Hélio volta à casa em busca de sua certeza quanto ao impróprio da vida. Quisera fazer-se outro, partindo do trem do fim do dia para o cinza da cidade grande. Lá, no entanto, só mudam os termos da afirmação comum de um mundo delimitado pelas normas e por sua hipócrita observância. Um mundo os separa. É longa a estrada entre São Paulo e Tambuã. Os filhos, porém, são as marcas vivas, contando que as histórias se repetem. O engano da felicidade, a pretensão de retidão, se une num corpo agônico que, malgrado as muitas formas exteriores, traz em si o mesmo câncer que o devora nos quartos fechados, de onde só se ouvem os gritos, aonde a moral se despe de si e assume a aparência dos ratos que tudo observam. Hélio caminha pela cidade. A profissão lhe traz os benefícios necessários para comprar o pão que lhe adia o fim. Melhor fora jejuar. A idéia de criatividade morre na mesa que contém projetos estéreis de transformação de banheiros. Os azulejos, pintados de múltiplas cores, substituirão os antigos trincados. Ah! feita a avaliação cumpre avisar os donos da casa, que seria necessário, antes de revestir as paredes com papel importado, quebrá-las a cata de um vasamento que coloca em risco a estrutura. Não o fará, porém, pois saba da dificuldade de explicar-lhes o perigo daquilo que não vêem, e além do mais, sabe que preferem gastar o dinheiro, a duras penas guardado, com algo que dê aparência de belo e novo. A casa agora é bela, enquanto os ratos riem da estrutura que comem sem ninguém importunar. Hélio anda só pela cidade evitando o convíveio com a esposa que já lhe causa náusea. A filha pequena fora uma possibilidade, mas agora descrê até das reformas. As estruturas devem cair para jamais se erguerem novamente. Louco o que ainda crê. Responsável seria, se a matasse, levando-a consigo em sua redenção para o nada. Não tem coragem. Deixe-a viver como os outros; com eles não há vida mas também a dor é mais branda. Negada a essência, não resta mais corpo para abarcar a angústia. A carta escrita, por obrigação, lembra do mundo, tentando fazê-lo ouvir ao menos as razões. Dificilmente as entenderão, porque os ouvidos já morreram, sobrando apenas a autoritária voz.

 

Às três em ponto Hélio entrou no consultório do psiquiatra recomendado por um amigo. Três anos depois sairia pela última vez de uma terapia intensa que, diariamente, o levou ao mais profundo de sua personalidade. Sofria quando se referia ao caminho andado. Recomendava-o, embora paradoxalmente estivesse hoje muito pior que quando iniciara o tratamento. Agora não há mais dor, porque não há mais corpo para sofrer. A ânsia da descoberta termina no fim de um caminho vazio. O sentido inexpugnável causa sensação de impotência e os mecanismos íntimos criam um mundo que julgam ser verdadeiro. Nele trabalham. Com ele riem e sofrem. Depois vem a verdade e com ela o nada. Não há mais dor nem riso. Há o agradecimento eterno aquele que me mostrou o sentido. A estrada não leva senão ao abismo. Os outros andam sempre em círculos que progressivamente aumentam at[e que "escorregam e caem por acaso". Mais sério é lançar-se reto, encontrando no raio o fim e não evitando-o pelo perímetro da falsa ilusão. O ponto final é sempre o mesmo. A verdade se desvela quando, concomitantemente à destruição da carne, ou talvez até anteriormente, há o desmantelamento do sonho. Deus está lá embaixo. Alguns ainda acenam para Ele, quando o vêem em meio aos destroços. Tamanha a paz ilusória em que morrem, não percebem que também ele morre, e continua morrendo sempre a cada vez que o mistério da vida se faz morte, que o prêmio da estrada se faz abismo... Hélio se despede e lembra do sonho de antes. O nome de Marcos Santiago, gravado em sua mente, reinterpreta o caixão que diante da porta da casa, simbólico, evidencia a morte presente na soleira da porta. Agora já não há dor... "Com Deus, com Deus agora eu vou morar..."

Marcos, sentado na cama esboça um sorriso, suspira. Dirige lentamente o revólver à testa. Ouve-se um único estampido. As pessoas que chegam em seguida já encontram o ser inerte, curvado diante da arma. O sangue escorre de um único orifício chamuscado. Procuram o nome no registro. O gerente adverte que dificilmente será o verdadeiro, conforme orientação sua para evitar complicações. O porteiro, no entanto, lembra que Marcos pediu para anotar um telefone quando preencheu a ficha. O número é estranho, pequeno. Consultada, a telefonista logo descobre ser o número de cidade do interior. A voz que responde ao chamado está longe, muito longe, apagada pela má qualidade da ligação. O corpo de Hélio é transportado naquele mesmo dia, após a autópsia, para Tambuã. A cidade o espera. Há tanta gente na casa que, quando chega o caixão, por instantes, não há espaço, e os transportadores o deixam na porta da casa. O prefeito da cidade comparece e pede que o deixem ali, para que todos o vejam e, sabendo de sua história, passem a dar ouvidos àquelas senhoras que, ainda hoje, caminham pela praça da Matriz e seguram seus filhos pelos braços, impedindo-os de cair, chorando quando partem.

O enterro sai da casa acompanhado por muita gente. O sol fortíssimo reflete no caixão negro e incomoda a vista dos presentes. O padre da cidade acompanha de longe, enquanto passa um carro, um dos muitos da cidade, levantando poeira da última rua que ainda resta para pavimentar. O cemitério fica nela. O marasmo da tarde quente invade os seres que, silenciosos, parecem esperar que a brisa da noite possa lhes trazer um pouco de paz. Uma senhora canta em ladainha, entremeando com as palavras o choro profissional: "com Deus, com Deus, agora ele vai morar".