Caminhos

Henrique Schützer Del Nero (Conto inédito –1983)

 

Às vezes penso. Para por alguns instantes e passo a refletir quanto tempo deve demorar até que um estrangeiro se habitue a nossa terra.

São Paulo é uma cidade cheia de encantos, que nem mesmo seus moradores sabem conhecer. Há magia em suas pequenas e sujas entranhas. Nós já a aprendemos a amar. É preciso boa dose de boa vontade para se tentar encontrar a saída deste amaranhado de ruas e avenidas que se confunde, e a seus peregrinos também!

Lá estou eu perdido e encantado com pontos de rara beleza. São feios, cinzas e cheios deste céu encoberto que ainda aviva mais em tudo aquilo o seu grau de desespero. Esqueço por instantes meu caminho e me ponho a admirar um prédio escuro de um ponto qualquer do Glicério. Não sei dizer quantas famílias moram naquele lugar. Afirmo que são muitas. Há roupa estendida pelas janelas. É um lugar humilde da bela cidade. Não se contrapõe aos imponentes bairros de outras porções da magnífica metrópole, de esquinas sujas, de perigos velados, de homens solitários que às vezes telefonam para a mais nova invenção de nossos dias: o socorro aos suicidas. Certamente não haveria viabilidade econômica em manter tal serviço em um lugar pequeno mas, é claro, na grande cidade se podem salvar muitas vidas, pagando uma voz que responde sempre "alô" do outro lado de um número qualquer.

O prédio é novo mas parece antigo. É cinza. Certamente não foi brindado com um projeto arquitetônico e urbanístico. Não se preocuparam com as chamadas áreas verdes. Não há dinheiro. Isto é privilégio dos moradores de outras partes da cidade triste, que nestes pontos não é tão triste. Mas também as crianças nestes locais não têm liberdade. É perigoso. Vez ou outra lê-se nos jornais o crime do bairro rico, o assalto, a chacina de uma família que calmamente via televisão, quando subitamente se defronta com o invasor. Domina a todos. Sevicia a dona de casa e diante do olhar perplexo, patético, impotente de todos, prega dois tiros no dono da casa. Pai também, pai de filhos agora órfãos que haverão de lembrar todos os dias da vida aquela cidade perigosa, que esconde tanta coisa por detrás de suas linhas esguias, de prédios altos, de fumaça que polui cada segmento de seu corpo disforme. Cresceu rápido demais; nós não a podemos conter. Sua ira imatura despeja sobre nós as consequências de um tempo mal dimensionado.

O prédio está ali. Há algumas fábricas nesta região que fazem o ar se escurecer ainda mais. Eu conheço alguém que mora naquele prédio. Sim... talvez seja aquela mulher morena de meia idade... como era mesmo o nome?... que veio trabalhar para meu pai há alguns anos. Acho que o nome era Maria... não importa. Lembro que a trouxe para este lado numa noite em que trabalhou até mais tarde. É acho que era Maria...

Era bem alto seu apartamento. Convidou-me para um café. Prédio de tantos apartamentos por andar. Diferente de outros nos Jardins. É lá é diferente - quando se diz o número do apartamento em seguida ao número do andar, já é sinal de que não é dos melhores prédios. Nos melhores só há um por andar.

Aquele era o décimo ou décimo primeiro andar; acho que algo como 1052... Não sei. Tenho uma vaga lembrança. Olhava pela janela enquanto preparava o café. Não se vê muito. Há pelo menos mais três blocos que cortam a visão.

O café está pronto. Eu o tomo, agradeço a gentileza e me retiro. O carro está parado em frente. Até minha casa são uns quinze minutos. Passo por outros prédios cinzas, entrecortados por uma via elevada que visita os terraços do primeiro andar dos prédios antigos e humildes. Já tem dez anos, ou talvez mais, que a construíram. Quanta revolta. Não se pode mais dormir! O barulho é infernal na janela dos moradores do primeiro andar. Mais tarde resolveu-se fechá-la entre meia noite e seis da manhã. Estranho, as vezes fazem um pouco de justiça também para os humildes habitantes deste primeiro andar de prédios velhos e sombrios. Nos jardins jamais teria ocorrido. A obra seria suspensa. O prefeito demitido. O zoneamento alterado. Lá é apenas a Avenida São João. Mas também se fez justiça. Eles também podem ter silêncio: entre meia noite e seis da manhã!

O prédio é cinza. Acho que é exatamente este o bloco em que mora a senhora que levei a anos atrás. Não me lembro mais. Não foi suficiente para me marcar. Não se constituiu um hábito. Afinal, fui apenas uma vez aquele lugar de prédios escuros e de muita fumaça.

Pergunto, tal como o estrangeiro que estranha a terra, onde é a saída para o litoral. Um velho senhor de olhos fundos, de rugas na testa, de roupa humilde, me aponta um caminho. Tem um ligeiro sotaque italiano. Deve ser italiano, como tantos outros que vieram para cá há tantos anos. São Paulo, o paraíso ideal de uma estrada que começara do outro lado do mar. O início foi triste, penoso, mas o futuro do imigrante seria sempre melhor. Terra de novas esperanças, de possibilidades muitas, de riquezas fáceis. O homem tem um olhar nostálgico. Aponta-me a estrada. A mesma estrada que o trouxe do litoral para cá há 50 anos. O navio era sujo, pobre. Alguns tiveram de passar um mês inteiro em vigília constante: havia ratos no porão! Mas tudo compensava o sonho que sonhavam. A terra da prosperidade. O Novo Mundo. O olhar do homem é triste; sua roupa é surrada. Não é um mendigo. Mora ali perto em uma pequena casa alugada. Hoje já está aposentado. Vive com a mulher e uma pequena pensão mensal que mal dá para o aluguel. Mas os filhos ajudam. Um é bancário. Acorda cedo e vai para o banco carimbar papéis o dia todo. No final do mês sempre leva um pouco de dinheiro para os pais velhos. O prêmio mensal do imigrante italiano...É, ele tem os olhos nostálgicos, cansados de uma vida de trabalho. Tinha dois empregos. Chegava tarde da noite em casa. A mulher, muitas vezes, já tinha adormecido. Beijava as crianças que dormiam no mesmo quarto. Esquentava a sopa. No dia seguinte acorda às 4 da manhã. Reza antes de dormir para a figura de uma santa, que fica a mirá-lo do criado-mudo. Graças pelas bênçãos do Novo Mundo.

Seu olhar é triste. Aponta-me o caminho do litoral. Sigo em frente. Pelo espelho vejo a linha dos prédios que estão atrás de mim.Ainda uma vez, vejo o prédio cinza, com roupa nas janelas. Há fumaça em seus contornos.

É de manhã.

A estrada está cheia de névoa. A neblina é espessa e me obriga a seguir devagar. Os passos são difíceis. Acendo o farol para que possa impedir um acidente. A neblina é espessa. Semana passada houve um acidente neste local. Quando chove é pior ainda.

Não se enxerga nada. Vou cada vez mais devagar. Vejo apenas as marcas da sinalização nos cantos da estrada. Passam rapidamente. São iguais, não se alteram. Como um tempo que repete suas unidades e nos guia. São segundos que não diferem por si, senão que nos posicionam em circunstâncias diversas. Minha posição muda a cada instante. Agora devo estar mais perto do litoral. Já se vêm melhor as coisas. Apago o farol e de repente eis que vejo o mar, lá embaixo, ainda entrecortado pela estrada que o evita em seus contornos, em suas curvas. Ento em um túnel e tudo se apaga.

Maria se levanta. Escova os dentes e lava o rosto. Troca de roupa e sai para o trabalho. A cada dia as coisas se repetem. O elevador desce l0 andares, ou talvez ll, até que atinja o plano da rua. Todos os dias vai para o seu trabalho. De ônibus. Carro não tem ainda, mas está ajuntando dinheiro e quem sabe o ano que vem... Usado é claro, porque nestes dias não se pode pensar em comprar um carro novo. À noite faz alguns bicos para complementar o orçamento. Acho que faz trabalhos de datilografia. É, acho que é isto mesmo. Esteve em casa há alguns anos. Depois a levei de volta. Era um daqueles apartamentos no Glicério. Ofereceu-me um café. Tomei depressa. É preciso correr, o elevado fecha à meia noite. Se já estiver fechado vou ter de dar uma volta longa. Teve uma época, no início, que não fechava. Depois veio esta lei. À meia noite colocam tábuas, e guardas se postam nos ponto de acesso. Até às seis ninguém passa. Despeço-me apressado. Ainda há tempo. Daqui até minha casa são apenas l5 minutos. Mas é tão longe. Me parece outro mundo.

Há uma placa indicando a estrada para Santos. O sol está começando a aparecer. Acho que será um dia quente. Foi um dia quenta, realmente. Parei no fim da tarde para descansar. Já estava mais perto do Rio. É uma pequena aldeia de pescadores. Como um peixe grelhado. Já é noite. Acho que vou dormir aqui. Amanhã sigo viagem.

Maria chega ao trabalho. Arruma os papéis. Encontra um aviso de pagamento de uma prestação que fez o mês passado. Comprou um vestido novo para o aniversário da mãe. Vermelho com uma fita branca; um pouco jovem para sua idade, mas ficou belíssimo. À noite foi para a festa. A mãe completa 70 anos. A família toda está reunida. Brindam. Um copo se desequilibra e enche o vestido de manchas. Não saem. Talvez com cândida, mas não adianta. Está perdido. Guarda o carnê de pagamento da prestação, experimenta um instante de decepção pela sorte do vestido e começa a trabalhar. Ao meio dia terá de pedir licença para o chefe, para poder ir fazer inscrição num curso noturno de madureza. Agora quem sabe consegue terminar o 2o grau. Teve de parar quando estava no colégio. A situação era difícil. Tinha l4 anos. Era hora de trabalhar e ajudar em casa. Faz tanto tempo...

Dizem que em alguns países o direito de estudo é lei. É proibido deixar crianças sair da escola para trabalhar. Alguns jamais serão alfabetizados. Mas há sempre uma esperança. Afinal este é o Novo Mundo, a terra prometida, o sonho do imigrante italiano que faz suas trouxas e agarra as crianças. É preciso correr. O navio sai daqui a pouco. Não contém um sorriso de alegria quando pensa no futuro. Este é o ponto final, a esperança, a chegada idealizada de uma estrada que começou do outro lado do mar. Ele se levanta de manhã e lembra destes dias, tanto tempo faz. Lembra do pai, pastor nas montanhas da Toscana. Um dia ainda era pequeno e viu um lobo. Saiu correndo. Correu o resto da vida. Correu uma estrada, que começou do outro lado do mar.

O quarto é simples, de paredes de barro, sustentadas por algumas ripas de madeira. Não é propriamente um palácio, mas até que será divertido por uma noite. Amanhã sigo viagem. E depois esta gente é tão calorosa. Olham-me de uma forma estranha, num misto de respeito e admiração. O homem que vem da cidade grande, de carro, de mala. As feições são diversas. A cor de minha pele contrasta com a cor morena das suas. São judiadas do sol, curtidas. Saem todos os dias de madrugada em pequenos barcos para pescar. Voltam de manhã cedo para poder vender o peixe num mercado de uma cidade vizinha. A maior parte, no entanto, quem compra, é um senhor de meia idade que tem uma companhia de congelamento e exportação. Pechincha todo o tempo. Barganha seus tostões e dá uns cruzeiros a mais por tantos quilos de carne, para tentar abrandar a sensação de revolta dos olhares dos pescadores. O que ganham mal dá para viver. E viver a sua vida. Que vida...

Despeço-me. Agradeço pela hospedagem e pago os poucos cruzeiros que me cobram pelo quarto humilde e pelo peixe de ontem.

O litoral entre o Rio e São Paulo é belíssimo. As praias são tão linda, que dificilmente se crê que ainda estejam desertas. Há tanto lugar, e as pessoas se espremem nas duas grandes cidades, em apartamentos tão pequenos que não contém mais nem seus próprios sonhos.

À noite sonhei com minha infância. Dava a mão para minha mãe enquanto dormia. Era tão bom segurar as mãos fortes que me protegiam de meus fantasmas. Meu pai dormia ao lado. Acordava cedo. Eu transpirava muito. Vez ou outra acordava no meio da noite para trocar de blusa. Estava ensopada. Às vezes sonhava com bichos que entravam no meu quarto. Eram cobras, aranhas. Pulava da cama e começava a gritar. Minha mãe acordava e vinha ver o que estava acontecendo. Me acalmava e me punha para dormir. Me dava a mão. Mas estava só. Não estava ali nem minha mãe nem ninguém para me contar que não existiam. Transpirei, acordei molhado. Não trago mais comigo outra blusa de pijama. A solução foi dormir sem nada. Não está fazendo frio, embora sejam frescas as noites à beira mar.

Vou almoçar no Rio. Paro algumas horas, como algo, desconto dinheiro e continuo viagem mais tarde. É...é uma boa idéia.

As aulas começaram no meio de fevereiro. À noite. Saio do trabalho e vou direto. 7 às ll. Dá tempo ainda de pegar o ônibus das ll:l5. Como a hora que chegar em casa. É sacrificado, mas o que fazer...é uma bela chance de melhorar minha situação no emprego. Parece que haverá um concurso daqui a algum tempo. Se tiver o diploma de secundário, posso obter uma promoção. Na volta, como alguma coisa. Não, não há tempo, e além do mais, tenho de passar no banco para pagar a prestação do vestido. Será verdade que há mesmo países em que não existe trabalho para crianças? Lá, se estuda antes de trabalhar. Mas deve haver. Um amigo me disse. Contou uma série de coisas a respeito. Não há boias-frias. Não há miséria. Depois não o vi mais. Dizem que foi morar fora. Tem quem diga que foi preso e torturado, mas não acredito.

- O senhor pode metrazer um peixe grelhado com arroz. Para beber...uma cerveja. Rápido, por favor, que ainda tenho de viajar hoje.

O morro se esconde por detrás do restaurante. Dá pra ver sua parte mais alta. Lá que estão as escolas de samba. Os pretos dançam como deuses. Às vezes descem dançando para desfilar na avenida, nos quatro dias em que se perdoa a miséria, se esquece o desencanto e se brinda a alegria do Novo Mundo, da terra prometida, do gigante adormecido, que deixa seus filhos morrerem pelas ruas. Às vezes, no entanto, descem ao som de uma outra música. Bailam a sinfonia do malandro, assaltam, pilham o que é dos outros e voltam para o seu Éden. A polícia, vez ou outra, vai à caça. Atiram para todos os lados. Às vezes matam um inocente. Sempre, melhor dizendo, matam os inocentes. Os culpados não moram no morro. Seria mais fácil achá-los em outros lugares, mas eles se escondem por detrás de máscaras de uma ordem divina das coisas, de uma ideologia que os justifica. É, o Rio é uma cidade perigosa. Às vezes se encontra nela sua face medonha, da beleza que se despoja do belo e mostra o aspecto terrível da desigualdade. Nem sempre há samba e carnaval nas mentes dos habitantes do morro. São 6 da tarde. Já é hora de voltar para casa. Por hoje basta de trabalhar. E dê-se por feliz, que em fevereiro as coisas serão piores. As aulas começarão às 7 e vão até às ll. É, não vai ser fácil, mas tem a recompensa daquele cargo melhor pago. Toma lá dá cá, assim é a vida. Outros não precisaram nem precisarão jamais estudar à noite. Fazer o quê. Somos gente diferente. Nossa realidade nos faz assim. Eu, a partir de fevereiro, saio do trabalho e remedio meu destino, contorno um pouco minha circunstância passada, minha má sorte...das 7 às 11.

O caminho é longo até o norte do país. São muitos os estados que se tem de atravessar para atingir a região nordeste. Depois adentra-se o Norte, onde grande parte da paisagem é dominada pela floresta Amazônica.

A estrada é longa. Maria trabalha todos os dias. Faz seu curso de Madureza noturno. Sai da escola às 11 hs e ainda tem tempo de tomar o ônibus das 11:15. Isto quando chega na hora. Os atrasos são muitos. Outro dia um grupo de pessoas se revoltou com o atraso de um ônibus. Destruiram a estação. Maria sai da escola, toma o ônibus e volta para casa. Esquenta a comida e depois vai dormir. Antes, porém, reza para a imagem de uma santa que a mira do criado-mudo. Houve tempo em que deixou de rezar. Ía dormir sem fazê-lo. Foi a época da revolta. Não era possível que o mundo fosse tão diverso e, ainda assim, fruto da vontade de Deus! Onde estavam a Igrejja e a palavra de Deus, que se calaram quando se fez um mundo com dois tipos de Homens? Mas a solidão das idéias, a impotência diante do poder acabam por nos resignar. Agora ela reza e talvez já o faça automaticamente. Já não há palavras em sua prece. Já não há mais esperança em seu canto. É a oração que apenas aguarda um novo tempo, talvez, quem sabe o Novo Mundo. A nós resta caminhar uma estrada que se inicia aqui, neste momento, e não sabemos onde vai terminar. Depois Maria dorme e com seu sono vem também seu passado. Lembra-se sempre do pai que acorda às 4 da manhã, que beija os filhos, que se despede para o dia de trabalho. Lembra do sonho de se ter, um dia, uma casa própria. Jamais se concretizou. E tantos outros sonhos, que no fim do caminho se materializaram numa realidade que espera a todos que sonham além do que lhes é dado sonhar. Os apartamentos são pequenos. Não há espaço para os pobres. No Novo Mundo, quem sabe, haverá uma outra ordem. Houve o dia em que o pai chegou triste à casa. Comunicou aos filhos que tinha perdido um dos empregos. São tempos difíceis. Agora vocês terão de me ajudar a manter a casa. A escola... esta já não podia mais ser. Lembro de um amigo. Afirmava sempre que haveria de construir em nosso país um sistema em que os Homens seriam iguais. Não haveria crianças abandonando os estudos e trabalhando antes da hora. Era moço. Depois foi embora. Dizem que foi preso e torturado, mas eu não acredito.

A estrada para o Nordeste é longa. São tantas as mudanças. A seca agora se faz presente. O homem muda aos poucos sua feição. Passo por grupos de emigrantes que vão tentar a sorte em outro lugar qualquer. Vamos filho, que há de ter lugar para nós no Sul. Lá, está São Paulo, o motor da nação. Lá está o nosso futuro. A seca se esqueceu deles. Este é nosso caminho. Não se desespere que lá haverá água e comida para nós. Lá, nas favelas ainda é melhor que aqui. Pode-se tomar a água dos rios. Não contém um sorriso de esperança, quando agarra as mãos do filho e o apressa. O padre prometeu uma passagem em um ônibus que vai até o sul da Bahia. Depois veremos. Nos bolsos não há dinheiro. Mas há a imagem de um santo. Pequena, feita de barro. Talvez seja padre Cícero. Talvez um outro qualquer. Não consigo ver. Lá vão os caminheiros rumo à terra prometida, ao Sul de esperança. Lá vão eles andar uma estrada que tem seu início em um outro país. A viagem que nasce onde nasce a seca e termina onde se consuma o desengano da miséria de uma pátria rica, de um gigante que dorme e repousa no berço esplêndido, enquanto seus filhos morrem aos seus pés. Mas há uma ética que justifica tudo isto. Esta é a terra da promissão, do encanto, do samba, dos pretos que dançam como deuses, enquanto se esquecem de chorar seu destino, sua triste realidade de filhos de um país que fecha seus olhos para suas vidas.

A paisagem passa ao lado da janela. A estrada vai deixando para trás suas marcas de tinta no acostamento. São sinais amarelos que se repetem e apenas diferem entre si pela posição que se alterna a cada instante. A cada momento estou numa posição diversa. A paisagem é monótona, mas sempre se reconhece algo diferente. Algo conta que o tempo passou como as marcas da estrada que fica para trás.

Maria acorda, escova os dentes, toma café rapidamente. Está atrasada. Atrasos custam dinheiro. Sempre há descontos no final do mês. Toma o ônibus, mas antes desce do 10o andar até o plano em que as coisas estabelecem comunicação entre si. Chega ao serviço. Remexe os papéis em cima da mesa e vê em um canto uma carta. É o aviso de liquidação da dívida de seu vestido vermelho, de fita branca e cheio de manchas. Não esconde um sorriso de prazer ao perceber que terá um tanto a mais de dinheiro disponível por mês. Quem sabe o suficiente para um outro vestido que viu dias atrás.

Seu curso acabou. Fez as provas, passou, mas nada mudou. O cargo que pleiteava foi dado a outra pessoa. Dizem filha de um amigo do chege. Não tem o secundário completo. Mudaram a lei. Agora tentarei ingressar numa faculdade. Faço o curso noturno. Parece que haverá um concurso dentro de 4 ou 5 anos para o preenchimento de cargos de chefia. É preciso ter curso superior. Na hora do almoço peço licença para o chefe. Devo ir fazer a inscrição no vestibular. Hoje é o último dia. Depois como algo... não, não há tempo, aproveito o tempo para passar na loja em que vi o vestido a semana passada. É, vou comprá-lo hoje. Para o aniversário de papai. Fazer o quê. O carro este ano ainda não dá para comprar. Quem sabe no próximo? A faculdade fica longe do emprego. O horário é das 7 às 11. Dá tempo ainda de pegar o ônibus das 11:15. Como, quando chegar em casa. É sacrificado, mas são só 5 anos. Depois eu colho os frutos. O relógio toca. São 6 horas. Estou exausta, mas hoje devo trabalhar um pouco mais na casa de um advogado. Parece que é um trabalho de datilografia. Ótimo, posso fazer um pouco de dinheiro extra. Termino às 11. O filho do advogado é simpático. Leva-me de carro pra casa. Já era tarde e naquele local não se pega ônibus à esta hora. Também acho que nem há ônibus neste bairro. Todos têm carro. E mais de um. Convido-o para um café. Toma depressa e se despede.Não pode se atrasar porque a via elevada fecha à meia-noite. Antes, porém, conta-me de um país onde as crianças não são obrigadas a abandonar as escolas para trabalhar. Nunca mais o vi. Dizem que foi preso e torturado, mas não acredito. Outro dia me disseram que foi para o Nordeste escrever um livro sobre a situação da seca. É, isto é mais provável.

No Nordeste há cidades grandes, mas não é preciso deixá-las para ver a miséria. Andando um pouco então vê-se também a seca. Ela nos saúda e nos dá boas vindas. Haverá dia em que precisaremos de passaporte para conhecer o país que está ali. Mas somos irmãos. Falamos a mesma língua e é só. Para para dormir num pequeno lugar. A cor de minha pele contrasta com a dos outros. A deles é curtida, judiada do sol. Olham-me com respeito, admiração. O homem que veio do Sul, de São Paulo, o irmão rico. Lá as crianças todas sabem ler? Não, também lá elas abandonam as escolas e vão trabalhar. Lá também não é a terra prometida.

Sentei-me à frente da máquina e comecei a escrever. A viagem foi longa. Os contrastes imensos, mas ainda assim há algo de comum em meio a tanta diversidade: a miséria. Lembrei dos olhos do imigrante. Sua feição era rude, mas guardava esperança de encontrar um novo mundo no sul. Chegaram a São Paulo depois de dias de viagem. Os ônibus do Nordeste chegam a rodoviária do Glicério. A impressão primeira - o conjunto de prédios cinzas que se misturam à paisagem e à fumaça, que lhes invada os contornos e borra as linhas de suas formas. Depois a praça da Sé. A catedral e o Palácio da Justiça. A fonte não espirrou suas águas em seus olhos naquele dia. Terminaram sua viagem na sala de um padre nos arredores de São Paulo. Estão desempregados. O pai lembra ainda hoje de sua viagem que começou longe dali, onde nasce o sol. Ainda há mais luz na terra da seca que no inferno da promissão. Ainda há mais espaço para eles junto da miséria. Aqui, até ela reclama por mais espaço. Os assalariados vivem em apartamentos tão pequenos que já não contêm nem seus sonhos.

A porta se abre. Entram alguns homens com ar grave. Interrogam-me. Levam-me a um local estranho. Trancam-me muito tempo. Espancam-me todos os dias. Depois, soltam-me. Saio e vejo a luz. A cidade não mudou. A miséria continua ali. Pior que antes. Um alto-falante convida o povo a participar de uma grande festa de boas-vindas ao novo presidente: General ...

Passo a mão nos cabelos e sinto que o suor me melhou toda a camisa. Lembro da minha infância e das noites em que molhava a blusa do pijama. Tinha medo, mas minha mãe me dava a mão e me fazia dormir.

Maria acorda cedo, toma café e se apronta. Veste o vestido negro comprado meses atrás. Desce 10 ou talvez 11 andares. Toma o ônibus. Hoje não vai trabalhar. Hoje visita os pais. É dia de finados. Lembra de um amigo que falava de um mundo justo. Dizem que foi preso e torturado. Hoje já acredita nisto. Os dias hoje são outros. Nunca mais ouviu falar nele.

Sento-me à frente da máquina. Quisera contar meu caminho, mas minha história calou meu ódio. O ideal do início hoje não é mais que uma realidade que me apagou a esperança. A estrada é longa entre o sul e o norte. Fecho os olhos e me lembro do início da viagem, esboço um sorriso de esperança e tomo o barco que me levará para muito longe. O início do caminho está no sul, na terra da esperança. A seca apagou de mim o sonho. Agora minha imagem é triste e melancólica. Cheguei ao fim de uma estrada que começou no outro lado do tempo, cheia de ideal. A seca me matou o ideal, me roubou o tempo e me presenteou este fim, que de belo só tem a esperança dos primeiros passos.

Calo-me e ouço uma voz, do outro lado do mundo, que me conta, como contou a Maria, de um país onde os Homens são iguais, onde as crianças não deixam de estudar para serem exploradas. Mas esta voz está distante. Vem do outro lado do mar. Hoje já não se podem dizer estas coisas aqui. O gigante ainda dorme e estas idéias não o podem acordar.