Utópico Sentido

(Conto inédito - 1983)

Henrique Schützer Del Nero

 

K. entra no quarto e se pergunta porque começa um conto imitando Kafka, com nomes que não são nomes inteiros, nem mesmo reais. Talvez nem sejam reais, porque não são inteiros. K. entra no quarto mesmo assim. Fecha a janela. Entra muito frio pela fresta da porta.

K. se pergunta sobre o que deveria escrever e num instante é tomado por um sentimento estranho de apatia, que pergunta insistentemente por que escrever algo, para quem, com que moto? Bem, é difícil descrever precisamente o que sente K., porque eu não sou ele. Sou apenas o interlocutor imaginário de uma história irreal, que procura apenas vencer as linhas brancas na tentativa de fazer não sei o que. Talvez me torne repetitivo, mas K. tem um sentido naquilo que faz. Senta-se à frente de uma pequena mesa. Mesa pobre, de pés retos, com um tampo já gasto. O quarto é alugado, o preço não muito alto, mas não importa, visto ser K. um artista que se senta diante da mesa todos os dias, e não produz muitos livros e que, sobretudo, seus livros jamais serão vendidos, pois nem sequer são editados, diria mais-ainda nem existem, porque só agora K. se senta à frente da mesa com a intenção de escrevê-los. O preço da pensão não é muito caro, mas certamente é muito para as pretensões de K. Quanto, ainda não posso responder. Um valor qualquer, que talvez se torne claro no decorrer da história, se a sequência assim o exigir; talvez nem se toque mais no assunto. Isto depende da continuação.

Rue Saint-Germain. Este é o local. O número não será dito, visto ser algo cuja importância não existe, e, além do mais, haveria sempre a tola pretensão de se verificar qual a transposição real deste endereço. Há sempre um indivíduo qualquer que, numa passagem por Paris, vai à Rue Saint-Germain verificar como é a casa onde K., sentado à frente de umas folhas de papel, pensa em escrever um livro. As vezes chega ao ponto de entrar e perguntar quanto custa o aluguel de um quarto naquela humilde pensão. "Puxa, como vivem com dificuldades estes artistas" esclamará sempre o irritante intruso da história inventada. "Bem, seja lá como for, fazem-no por gosto. E depois sobra sempre a fama, que faz destes pequenos quartos da Rue Saint-Germain, algo tão concorrido quanto qualquer outro ponto de interesse turístico da cidade!"

K. atônito diante do papel pensa se o gênero deve ser o romance, a poesia ou o conto. Não, minto, K. não pensa; quem o faz sou eu. Penso por ele, para ele, meio simples de tradução de um esforço automatizado, de vencer inercialmente o desafiante papel. Ora bolas, como é que se pode ser tão enfadonho querendo ser brilhante? Bastava tentar ser criativo. Isso, K. faz um olhar criativo e olha atônito a folha de papel.

Num instante K. inicia uma frase, quando alguém o interrompe. Batem na porta. É a senhoria que vem cobrar o aluguel, tentando ver de soslaio se consegue penetrar um pouco do imponderável que cerca a figura daquele hóspede recente. K. fita (fixamente) o olhar da velha senhora. Não tem dinheiro para pagar. Argumenta que escreve livros, mas não pode responder ao simples pedido da senhora para que os mostre. Não faz por mal; todos sabem. Sua curiosidade vale bem mais que o pouco dinheiro que recebe pelo aluguel daquele quarto. Não pretende chantagear, apenas ver qual é, realmente, o segredo daquele artista de cabelos e barba loiros, que não fala muito, que em seu silêncio parece guardar uma implacável crítica ao decrépido mundo ao seu redor. Talvez seja subversivo, ativista infiltrado, agente de alguma nação estrangeira. Não, realmente não são más intenções que tem a velha senhora que um minuto antes tirava seus pães de minuto do forno. "Aceita um pão, senhor K., feitos agora?". Tem dinheiro na poupança, algo deixado pelo marido, herói da resistência, e guarda até hoje a farda com que recebeu a medalha do mérito. A medalha está acima da lareira, na única sala de estar do velho imóvel da Rue Saint-Germain. Lá se reunem no fim da tarde algumas de suas poucas amigas. Os hóspedes também podem usar aquela sala. K. freqüenta-a muito raramente. Nessas ocasiões não diz nada. Fica horas calado contemplando a medalha. Não diz palavra. Às vezes seu olhar percorre rapidamente o cômodo e fita alguns dos presentes que, como ele, moram em quartos alugados.Ninguém o conhece e muitas vezes, quando sai de perto, se perguntam em cochichos indiscretos sobre a origem e as intenções daquele enigmático ser de quem só se sabe chamar-se K. e ser escritor.

K. se pergunta, diante do papel, por que estilo optará. Escreve livros. Mora, já tem algum tempo, num quarto alugado da Rue Saint-Germain. O número não importa. Hesitante, se vê diante do paradoxo constante: a quem deve agradar? No irreal movimento de seu pensamento acaba por colocar em sua mente dúvidas que não deveria ter: algo leve, de fácil digestão, ou algo extremamente hermético, para que possa, através do incongruente desconexo, contar sua incerteza. Nos últimos tempos tem cedido sempre e compõe peças ligeiras, com humor, um pouco de tragédia e, sobretudo, com algum final. É, este velho hábito intelectual de não dar fim às histórias - talvez até porque não haja saída para os problemas que costumam tratar -, não dá dinheiro e costuma deixar os leitores irritados, execrando o autor e se prometendo jamais gastar dinheiro novamente com tamanha irrealidade.

Tendo decididi, afinal, que sua história carece contingencialmente de um fim, qualquer que seja, deve-se pensar agora no que dizer. Realmente, lá está K. a sofrer mais uma derrota: a verdadeira história, aquela que planejara, não teria final: sua ignorância e seu silêncio findariam com uma vaga idéia errante de suspensão de razão, de múltiplos fins, ou seja, burro calado se faz de sábio ou passa po sábio. É, sua história ideal não tem fim, carregada de surrealismo, possivelmente conta de algum ser disforme que como uma manta comprada no Peru no fim de uma viagem infeliz, quando os passageiros alcançam o alto de uma montanha e se perguntam pelo sentido de sua ação em si, de uma ética que os move, etc. De fato, K. não consegue dizer muito além disto, pois a história não brotou ainda de sua cabeça. Está lá guardada, esperando para que possa tomar forma. Por enquanto, parece que terá que se contentar com escrever livros leves e que, de preferência, tenham final. Não precisa ser feliz, mas precisa existir. Tudo que não é causa incômodo.

A locadora bate na porta e saúda K. na manhã sombria. Reclama do aluguel no movimento que repete já tem tempo. K. novamente nada responde e a locadora suspira, percebendo que jamais terá a ansiada palavra de resposta. Quanto ao dinheiro, já desistiu. Quisera conhecer os livros de K., afinal, este sempre se disse escritor. O dinheiro, como dizia, já não tem esperança de ver. E depois, K. já se tornou como que peça da casa. Não teria sentido despojá-lo de seu quarto com aquela cama pequena e apenas uma mesa onde passa dias inteiros - é o que percebe a senhora pelo vão da porta - diante das folhas de papel. Certa vez perguntou, incisiva, a K. por que não a pagava com o dinheiro ganho com seus livros. Bem se sabe é pouco, porque não se poderia admitir que K. fosse autor de sucesso. Afinal, nunca pensou em se mudar, não apareceu com roupas novas, nem os repórteres o procuraram para fazer alguma entrevista especial. É, decididamente, K. não deve ganhar muito dinheiro, mas certamente para o sustento dá. Afinal, como dizia, mora em um quarto alugado, na Rue Saint-Germain, em Paris, onde sonham morar todos os artistas. E além do mais, há fato vital em tudo isso: diz-se escritor. Há quem diga conhecer até uma célebre questão, que colocou em um de seus muitos e esquecidos livros: o dilema do artista diante do trivial ou do surrealismo capaz. Parece, segundo dizem, que o verdadeiro problema não é a forma, nem o agrado popular, nem mesmo a receptividade, mas sim o fato de que os livros de K. são editados por uma editora muito pequena, preocupada apenas com promover novos valores. Logo, dado o fato de vivermos numa sociedade de consumo, a pequena editora sequer consegue veicular seu produto, ou seja, os livros de K., para que estes possam então ser alvo da crítica, quando então, talvez, possa importar o gênero escolhido por K. - surrealista ou ao gosto popular.

Mas não devemos deixar que as opiniões, e sobretudo os boatos, contem a história de K. É bem verdade que é muito difícil conhecer a verdadeira personalidade deste escritor de cabelos e barba loiros, que morou algum dia em Paris na Rue Saint-Germain. Calado, pouco falava de si. Melhor dizendo, não falava quase nada. Fica assim muito difícil dar ouvidos ou não a este ou aquele pequeno boato a respeito do desconhecido. Sabe-se ao certo que é escritor, embora não se tenham visto jamais seus livros. Há quem afirme ser um subversivo, e que o material que escreve é todo enviado rapidamente a uma gráfica clandestina, de onde saem, sem assinatura é claro, e passam a pregar o levante armado, a tomada do poder, a luta de classes e a exploração do homem pelo homem. Mas o grande problema é que, visto serem clandestinos tais escritos, não levam assinatura, e portanto nunca se pode dizer ao certo, quem foi o autor, K. ou outro ideólogo de esquerda qualquer. Pode-se-ía retrucar, dizendo que o estilo, e sobretudo as posturas, jamais enganam o observador astuto.De fato, se fosse possível conhecer o pensamento de K., sua maneira de encarar a decadente estrutura ocidental, seria bem provável que se pudesse reconhecer quais escritos panfletários são de seu cunho; mas não se sabe o que pensa K. a respeito da estrutura do capitalismo. Certamente é contra, uma vez que se veste com roupas pouco pensadas e usa uma barba longa demais. Tolice! Este argumento não deveria sequer constar desta série conjectura acerca do indivíduo, mas certamente é o que dizem muitos que o vêem pelas ruas. É comunista e além disto, sendo artista, certamente deve ter pendores especiais pela revolução sexual, social e outras tantas. Bem, K. não pode responder a tanta intromissão em sua vida. Ligeiro, se esquiva de toda e qualquer pergunta, levantando-se e se retirando rapidamente. A locadora costuma abordá-lo ao final de cada mês, procurando ver se consegue algum manuscrito, para que possa "opinar" e, sobretudo, para que possa conhecer K., hóspede de sua pensão já tem muito tempo, e de quem sabe apenas ser escritor. Como realmente pode se conformar com isso? O que pensará K.? Realmente não podemos responder com tanta certeza, se o que preocupa aquela imensidão humana são realmente suas idéias, eventualmente sua própria ideologia, ou se é apenas o enigmático de sua figura, que suscita em todos aquele inexorável sentimento de tentar descobrir algo a mais sobre alguém de quem se sabe apenas ser escritor e morar na pensão da Rue Saint-Germain.

K. senta-se diante da mesa e procura, em vão, em sua mente algo que possa colocar naquele que será seu livro. Despreza com seu silêncio todas as tentativas de intromissão em sua vida particular e só não pode impedir que os olhos da locadora o acompanhem, através da fresta da porta, porque não tem conhecimento do fato. Senta-se diante do papel e se consome numa dúvida vital acerca do gênero escolhido. Passado isto, certamente terá de pensar qual o gosto que deve atender: o da maioria ou o seu? Mas certamente K. não se preocupa ainda com o mais primário de todos os sentimentos. Não tem em mente, por enquanto, a apatia com que se receberá seu trabalho, tão logo terminado. Claro, isto está muito bem confirmado. Uma vez conseguindo fazer crer que seu espírito foi desvendado nada mais haverá de chamar atenção para si e, então, não mais enigmático, estará exposto ao descaso, à crítica, à publicidade e quem sabe finalmente até à glória. Aclamado, K. já não terá a independência de antes. Não mais poderá se sentar diante das folhas de papel em branco e escrever qualquer coisa. Bem certo, não terá de se dizer escritor, pois todos o saberão. Sua imagem fará com que se voltem quando passar, exatamente como fazem hoje os habitantes da tranqüila Rue Saint-Germain. Bem, é claro que então K. não deverá mais morar numa pensão, nem mesmo neste bairro. Uma vez que os recursos são muitos, não há porque se manter no mesmo quarto de tantos anos de ostracismo na Rue Saint-Germain. Comprará uma casa e lá, ainda que conserve todo o despojamento da antes, se fará cercar de toda a comodidade a que lhe dá direito o caminho trilhado com tanto sacrifício. Obviamente não abrirá mão de suas idéias revolucionárias e se aborrecerá, quando afirmarem ser incompatível com suas idéias a fartura em que vive. Não foi sempre assim. "Vá lá, ver o quarto em que morei na Rue Saint-Germain!" Ou melhor, certamente K., figura reconhecida de reconhecidos e aclamados dotes intelectuais, terá resposta melhor: "não se deve confundir a idéia com a forma. Estética e ética não se misturam. Princípios não se podem corromper com alguns metros quadrados a mais de propriedade". O que se condena é o abuso, o descaso pelo ser! Mas K. não tem estes problemas ainda. K. pensa, calado, se deve escrever um romance ou uma poesia. Atônito diante do papel não percebe o olhar atento daqueles que estão em volta de si e procuram, em vão, saber quem é.

K. senta-se diante da mesa. As folhas em branco continuam ali a marcar seu compasso de espera, até que ele se decida a começar a imprimir sobre elas a transposição de sua vontade. Interessante o espírito de K.! Inerte, não parece preocupado com as conseqüências de seu ato. Obviamente a pura imaginação não lhe pode contar exatamente o valor deste. Antes, é preciso que tome sua posição, simples página que seja, para aí então medir e sofrer toda a gama de resultados inerentes à criação. Melhor fora dizer creação. (Lembro de algum dia da infância, quando se dizia existir importante diferença entre criar e crear). Hoje em dia não importa mais e certamente é algo que só alegra àqueles poucos cultores de formas antigas, e ultrapassadas, que procuram na semântica uma diferença que mal sabem delinear nos fatos. Sim, a verdade é que K., escritoe que é, pretende criar, dar vida a algo que ainda não tem. Lembra ter lido que algum escritor tinha histórias na cabeça e lhe bastava apenas sentar e compô-las. K. não tem nenhuma história na cabeça. Aliás, não sabe ainda nem o gênero que escolherá, para então imortalizar seu pensamento. A poesia certamente não será. Não porque não a aprecie, mas sim, porque não é poeta, não sabe fazer rimas e, sobretudo, pretende dizer algo mais incisivo, que no vago poema se torna difícil justificar. Ensaio é uma possibilidade igualmente remota. Aí sim, a quantidade de justificações supera a própria criatividade libertada, assumindo-se postura por demais dogmática, diante de algo que não admite dogmas: vida. Sim K. pretende falar sobre vida, sobre os valores, sobre a moral. Condena as aparências, a estética desenganada. Jamais disse isto, mas, certamente, como artista deve pensá-lo. Afinal, são poucos os escritores, sobretudo estes despojados e pobres que moram num quarto alugado da Rue Saint-Germain, que acreditam que as aparências e as normas rígidas contenham algum valor. Isto também nunca saiu de seus lábios, mas certamente é o que conta sua aparência. Estranho não? K. é uma dessas interessantes personagens, de quem não se sabe muito mais que a aparência. K. não diz muitas coisas e, nos poucos momentos em que sai de seu quarto, vai em silêncio até a sala e fica horas ali, indiferente aos olhares curiosos dos outros hóspedes, olhando fixamente aquela imensa medalha pendurada em cima da lareira. Ah! cumpre dizer que K. sai diariamente e vai a pé a algum lugar. Ainda pela Rue Saint-Germain, totalmente alheio aos olhares dos vizinhos. Sua fama já ganha todo o bairro. Alguns comentam que em outros tempos houve também ali um pintor, não se lembram o nome, mas certamente têm ainda o artigo de jornal, em que se comentou sua fama. Foi recortado, apenas, porque se tratava de figura conhecida, ou melhor, até então desconhecida, morador da Rue Saint-Germain. Bem, como dizia, este pintor também morava na pacata rua, e de seu trabalho não se sabia muito, senão que carregava seus quadros, presumidamente já terminados, envoltos em grandes folhas de papel amarelo. Possivelmente pretendia, com isso, conservar o inédito caráter dos mesmos. Homem calado, só se soube algo a respeito de sua vida quando, naquele domingo, inesperadamente, se viu sua figura na primeira página do "Le Dimanche Artistique". Não que seja hábito dos habitantes da Rue Saint-Germain comprar tal semanário de tendências sabidamente esquerdistas, que, afinal, só é mesmo consumido por artistas. Mas naquele dia a foto maior na página principal era daquele desconhecido que morava em um quarto alugado da Rue Saint-Germain, e de quem só se sabia ser pintor. Domenique Lefévre era o nome. Soube-se, então, ser partdário de profundas reformas no campo da estética concretista. Com seus quadros procurava exprimir um pouco do vazio das normas que até então tinham regido a criação artística. "Pinto quadros em branco, sem cor, sem nada" - retrucava - "para mostrar a verdadeira plasticidade individual". Que cada um conforme a arte dentro de si, escolhendo, na sua liberdade criadora, a única interpretação possível e eficaz: aquela que cria em lugar de julgar. Bem, quanto a isto falhou, porque se lhe atribui em muitos meios o desagradável fardo de ser um artista sem palavras e, sobretudo, houve quem dissesse ser ele imitador de um certo pintor flamengo do fim do século, um tal de Üstein Loge, que já nesta época pintava quadros em branco. Não se sabe com que objetivo, mas acredita-se que com a mesma intenção agora manifestada por Domenique. Interessante, há quem diga, ainda, que estes quadros do pintor flamengo não eram a última fase de sua obra - que no mais das vezes foi abstracionista com alguma influência do impressionismo puntilista - mas sim, as telas que, compradas pouco antes de sua morte, jamais puderam ser pintadas. Bem, isto é uma polêmica que já se estende há muitos anos, e certamente não se convencerá jamais do séquito de admiradores de Üstein Loge de que aquilo não é nada. Para eles, mesmo se não fosse, seria, vale dizer, o pintor, dada sua grande criatividade, teria deixado propositadamente tais telas em branco, para que, após sua morte, pudessem retratar a exata natureza de seu encanto final. Mas não percamos tempo, a grande verdade é que Domenique foi a primeira página daquele jornal e assim os tranqüilos habitantes da Rue Saint-Germain puderam saber algo a seu respeito. Infelizmente, ainda Nào se encontrou (não por falta de procura) nenhum semanário, ou que quer que seja, onde esteja a fotografia de K. Talvez ainda não seja conhecido e desta forma é preciso esperar até que sua obra se torne universal o suficiente, para que possa, ao menos, receber o premio de uma coluna em um jornal de circulação restrita, no dia de domingo. Por ora, restam alguns artifícios precários, como a fresta da porta, que, no entanto, já se tornam um pouco enfadonhos, visto repetirem sempre a mesma cena, de um K. inerte diante de folhas de papel em branco.

 

Muitas vezes me pergunto acerca dos gêneros literários e certamente não é esta a mais importante de todas as questões. A forma escolhida para se contar a história não muda muito seu conteúdo objeto. Após tomar forma, representa, agora, a materialização contemplável daquilo que não tinha senão possibilidade intelectual de ser. Certamente não sei por que K. não tem livros, nem mesmo sei responder por que Rue Saint-Germain. Sabe-se que K. é escritos, mas isto não nos pode ajudar muito se não pudermos ter em mãos o exato resultado desta função - escritos, manuscrito, rabiscos, notas. A fresta da porta de seu quarto permite ver um K., de quem se presume escritor. Um escritor sem escritos. Há quem tenha afirmado ser K. um novo seguidor da escola de arte sem palavra. Porisso tem apenas folhas em branco diante de si. Mas na verdade poucos se têm dado conta de isto não significar muito mais, que sua própria ausência de palavras. Talvez seja K. um medíocre, destes que nem se quer conseguem escrever o próprio nome. Talvez seu silêncio impeça que se conheça uma faceta totalmente despida de idéias, e que as suas folhas brancas sejam mais contingência do que opção premeditada. Resta sempre, no entanto, a dúvida. A dúvida não é acerca de sua idéia, porque estas nem se quer lhe pertencem, mas sim a mim, que o crio. São a mera condição intermediadora, que opera o milagre da imanência que se faz forma, do sujeito ideante que se faz objeto pensado. Mas isto é filosofia barata. Não importa muito, porque o que realmente interessa aos habitantes da tranqüila Rue Saint-Germain é saber tudo, ou na impissibilidade de saber tudo, quem sabe, apenas parte, da vida de K. K. sujeito de sua obra, não pode operar o milagre da transformação e, atônito, passa dias diante do papel. K. realmente não se pode fazer sujeito, porque é objeto do olhar intruso que entra sempre pela fresta da porta. Sua obra não é objeto, porque nem é. Confundem-se os papéis e cá estou eu diante das folhas brancas de papel que ainda me restam, tentando criar o desfecho plausível para a história do sujeito-objeto K., de quem só se sabe, ao certo, ser escritor e morar na Rue Saint-Germain.

K. senta-se à frente da mesa e começa a escrever, quando, subitamente, entra no quarto a locadora e sorridente afirma não ter vindo cobrar o mês vencido. Rapidamente dá os parabéns ao ilustre hóspede de tanto tempo pelo prêmio obtido no Concurso Internacional para Escritores Marginalizados. Acabara de ler uma nota no "Le Monde" - é bem verdade nota pequena, desta em canto de páginas - que um escritor parisiense, Alphonse alguma coisa, tinha acabado de ser contemplado com uma menção honrosa - na verdade não fora primeiro prêmio, mas era certamente um começo - em um Concurso realizado no mês anterior em um pequeno país do Terceiro Mundo. K., ainda inerte com a aparição súbita, não teve tempo de retrucar o mais óbvio: o nome não era o seu. Claro, tratava-se de pseudônimo, prática muito comum entre autores desconhecidos e, portanto, contingencialmente marginalizados, que talvez por modéstia ou medo, ambos sentimentos perfeitamente explicáveis, não concorrem com seus verdadeiros nomes. E sobretudo não havia porque não ser K.. Dizia literalmente a nota que, por falta de informação - ou talvez dada a falta de importância do resultado e do concurso, perto das glórias literárias da França -, não se sabia muito a respeito do escritor em questão, senão ser habitante de Paris e morar num pequeno quarto alugado da Rue Saint-Germain. Ora, quem mais poderia ser, senão o solitário escritor de barba e cabelos loiros que, havia tempo, suscitava tanta curiosidade em todos ao seu redor? Após dar calorosamente os parabéns a K., a velha senhora saiu correndo, para poder contar a todos que, finalmente, se reconhecera o valor de K., ainda que num concurso pequeno, mas como disse anteriormente - um começo.

K. senta-se atônito diante das folhas de papel. Haverá uma pequena comemoração à noite, promovida pela dona da pensão. Não teve tempo de retrucar, de argumentar. Não há argumentos e, sobretudo, nada pode provar à velha senhora, bem como a todos os demais habitantes da pacata rua, não ser ele o laureado do distante concurso. Jamais participou de concursos e, portanto, não tem contra-provas de não-participação. Isto está claro, pois, ter-se-ia de dar um recibo a todos os escritores vivos, provando sua não participação em um dado concurso, realizado num pequeno país do Terceiro Mundo. Havia alguns fatos que pesavam contra sua pretensa intenção de fazer vir à tona a verdade quanto àquela situação. Era parisiense, ou pelo menos morava em Paris, na Rue Saint-Germain e, sobretudo, era marginalizado, porque sua obra nada se conhecia, senão as conjecturas tolas que interessavam já há tempos os desocupados habitantes das janelas de Rue Saint-Germain. Não, deliberadamente tentar atribuir o engano à falha de um impressor de jornal que trocara por engano o nome da rua, seria elocubração demais, soando como mero artifício utilizado para salvaguardar seu recato e solidão. Outra possibilidade, igualmente remota, era de haver outro escritor que morasse naquela mesma rua e que tivesse sido o contemplado. Não apenas isto era mais provável que o possível erro de impressão do jornal, como também, a uma hora destas, já deveria ter sido afastado como probabilidade remota, pela laboriosa locadora que, num paciente e rápido trabalho, havia consultado todas as outras pensões da Rue Saint-Germain a cata da nota de jornal. Não, definitivamente era K. o vencedor, ou melhor o escritor que recebera uma alentadora menção honrosa em um concurso para escritores marginalizados realizado no Terceiro Mundo. Derrotado pelos fatos, pela evidência absoluta, K. devia agora comparecer educadamente à comemoração, gentilmente organizada pela dona da pensão. Não o faria por mal, nem com falsas intenções, mas apenas por não poder provar o contrário. Suas folhas em branco continuariam ali, até que pudesse ter paz novamente - quem sabe no outro dia - para retomar seu trabalho de contemplá-las.

À noite, conforme o combinado, compareceu a sala da pensão, para junto dos outros convidados comer um assado especialmente preparado para a ocasião. Havia alguns vizinhos ali. Todos muito bem vestidos, em roupas de domingo. A dona da pensão, a boa senhora, trajava uma túnica preta, que, embora discreta, chamava a atenção pela presença de uma medalha pendurada entre os seios. K. rapidamente reconheceu nela a medalha do marido morto e, com um olhar em direção à lareira, pode confirmar o fato. Sim, era ela. A senhora usava todas as vezes em que se preparava para algum acontecimento especial, quando, então, acreditava reverenciar a cara lembrança do marido morto. Todos comentavam o motivo da festa. Havia até quem dissesse não ser novidade para si o ocorrido. De fato, era de se esperar que, mais dia menos dia, se reconhecesse o valor deste jovem escritor. Sobretudo, é mostra de que ainda há esperança para o gênero humano. Ainda há quem consiga sair do anonimato e galgar a glória. Bem se sabe que há diversas glórias, diversas recompensas. Claro está, que o escritor não busca recompensa material e, acreditem-me, este pequeno prêmio vale mais para ele do que qualquer castelo com que sonhamos. Basta ver sua figura. A cada dia que passa parece mais despojado de si, mais interiorizado. Sim, interiorizado, esta é a chave da criação. Há que se esquecer o corpo, a aparência, e fazer-se espírito puro, para então criar algo capaz de mérito. Um homem de meia idade - morador antigo da rua, e que se orgulhava de ter conhecido pessoalmente o antigo dono da pensão, tendo comparecido com a esposa e filhos à cerimônia de entrega da medalha de bravura - retrucou as palavras dos outros, afirmando enfaticamente ser a própria essência da democracia, que garantia esta possibilidade de trânsito do desconhecimento à fama, da pobreza à riqueza. Cada um tem liberdade de ser e conquistar aquilo que bem entender, e lá está sempre a sociedade livre para reconhecer valores e premiá-los. Houve quem não concordasse e afirmasse ter sido num pequeno país do Terceiro Mundo que se tinha dado o concurso, e, como todos sabem, estes países doterceiro Mundo são um pêndulo a oscilar entre os extremos totalitaristas. Onde estava então o mundo livre? Certamente na pequena notícia de jornal que veiculara o resultado obtido por K! Iniciou-se então violenta discussão acerca da justificabilidade de certos golpes totalitários do Terceiro Mundo, com o intúito de temporariamente garantir os valores e a ordem estabelecida. Quanto ao tom da conversa, fica difícil descrever, pois realmente a argumentação é de pouco valor e a paixão de certas posturas acaba por fazer crer, que a religião tem perdido terreno ultimamente, para a bipolarização política do mundo, quando, não bastassem as diferenças muitas, surge também a crença valorativa e cega em um e o total descrédito pelo satânico oposto. É, parece que K. não se veria, por ora, na desgradável situação de ter de explicar do que se tratava o manuscrito enviado para o concurso, pois os rumos da discussão já eram outros. K. sentou-se em uma cadeira e ficou ali o resto da noite,, em silêncio, olhando para a lareira, para o exato local onde costuma ficar a medalha do herói já morto, e que, naquele dia, estava pendurada na túnica preta da orgulhosa senhora, que parecia ter, agora, outro motivo de orgulho na vida: a fama que começava a alcançar o silencioso hóspede de um de seus quartos, de quem só sabia chamar K., ser escritor e ter recebido uma menção honrosa em um concurso para autores marginalizados, realizado no mês anterior em um país do Terceiro Mundo.

K. pode voltar no dia seguinte à paz de seu quarto. Aos poucos esqueceu-se do prêmio ganho e também da festa comemorativa. Não se tocou mais no assunto de que exemplar teria sido o motivo da premiação. Afinal, isto era exatamente o que menos importava. Sentou-se à frente da mesa e, decidido, passou a escrever sem parar, sem pensar, enchendo rapidamente folhas e folhas de papel. Há quem diga, que finalmente lhe vinha à cabeça a inspiração necessária. Outros, no entanto, retrucam, afirmando ter sido K. acometido de um temor natural: uma vez famoso, ou a caminho da fama, não mais teria como justificar a ausência de pagamento no final de cada mês. E se a boa senhora passasse a exigir o pagamento do aluguel atrasado? Além do mais havia um "elan" especial. Lera em algum lugar que haveria um concurso literário, franqueado a autores desconhecidos, e que daria um bom prêmio em dinheiro aos melhores colocados. Era a oportunidade de saldar sua dívida para com aquela gente e, quem sabe, partir para outro ponto de Paris onde, talvez mais desconhecido, pudesse ter a paz, que não tinha, para poder escrever. É bem verdade que a paz que pretendia não era propriamente física, pois, passado o fato do concurso ganho, parece que se haviam silenciado os moradores daquela pacata rua. Creio que, com isso, pretendiam deixá-lo trabalhar sossegado, para que, na próxima oportunidade, pudessem comemorar prêmios ainda mais importante. Quem sabe, até, haveria uma reportagem especial, onde apareceriam todos como coadjuvantes vitais de um momento histórico peculiar, quando a genialidade humana traduzira em símbolos a gama infinita de emoções que lhe era própria. A verdade é que K. não tinha muita paz ao olhar para aqueles moradores que o contemplavam, vendo agora algo irreal. Era escritor, disto tembém ele sabia e não havia porque se envergonhar da circunstancial, e temporária, falta de livros; mas, certamente, aquela presunção de fama, ainda que fama pequena, o incomodava profundamente. E além do desconforto moral que a mesma lhe causava, havia ainda o temor diante do improvável acerto de contas com a locadora.

Sim, decididamente, K. devia concorrer e vencer algum concurso, embora fosse contra seus princípios, embora afirmasse serem as bancas absolutamente parciais, para que pudesse conseguir os meios de se libertar do jugo de uma opinião infundada e irrefutável a seu respeito, que mais que o incômodo ético que lhe causara momentaneamente, ainda poderia trazer-lhe desagradáveis transtornos materiais.

K. senta-se à frente da mesa e, decidido, percebe da contingência que significa criar algo. A criação já não é mais o valor em-si, mas toda a série de razões que por ela reclamam. Agora sim, seu livro - ou seja lá o que for - deverá ser objeto. Objeto não apenas para contemplação, leitura, inspiração, mas, sobretudo para inspeção. Sim, policiescamente, as circunstâncias pedem uma prova. K. sempre foi escritor e disso ninguém duvidava. Bem, talvez até disso duvidassem, pois é difícil conceber um escritor que não escreveu ainda nenhum livro. Exatamente! K. devia escrever livros porque era escritor. Assim, K., muito antes de escrevê-los, muito antes de decidir fazê-los objeto, foi premiado por algo que não fez. Agora, por contingências éticas e, sobretudo, pelo temor de consequências, até mesmo legais, deveria provar que de fato tinha livros e, de preferência, que ganhava algum dinheiro com eles. Havia assim uma série de probabilidades. K. parou de escrever e, num instante, passou a pensar nelas. De fato, não havia naquela nota de jornal nada que provasse ter sido a premiação algo de valioso, nem mesmo havia referência a ter sido material o prêmio. Bem se sabe que países do Terceiro Mundo são pobres e que, além deste fato, não é o prêmio material o que interessa para artistas. Reconhecido seu trabalho, ainda que só por meio de menções, críticas positivas que sejam, lá está ele, o autor, a saborear o gozo que não conhecem os comuns mortais, sempre preocupados com a transposição material de seus atos e conquistas. Logo, é fato que não há nada que impeça K. de ser ilustre homenageado neste concurso desenterrado pela boa senhora e, ainda assim, continuar devedor do aluguel, que jamais pagou e dificilmente terá condições de pagar. Posto isto, uma nova idéia lhe vem à cabeça: o que realmente ainda lhe falta, para comodamente responder à embaraçosa situação, é um simples livro, trivial que seja, que prova então, definitivamente, a situação criada e corrobore aos insistentes olhares a sua vocação expressa desde o início, qual seja, a de escritor. Obviamente, pode, rapidamente, tratar de resolver o problema. Conteúdo, burilarização, idéias, não são, em absoluto, na presente circunstância, fatos de relêvo, pois dificilmente alguém os lerá e, mesmo que o faça, e duvide da qualidade dos mesmos, sempre sobrará a dúvida quanto às tendências e gostos da banca que o elegeu. logo, há que se escrever qualquer coisa, para que se possa novamente ter a paz de ser simplesmente um escritor que, agora, já terá um livro, livro medíocre, é bem verdade, mas ainda assim, algo que se possa tocar. Bem certo está, que agora já não serão suas intenções manifestas em sua pretensa condição de escritor que valerão. É preciso provar com algo que se possa tocar.

 

Interessante figura a de K. Interessante também seu nome que tem apenas uma letra, imitação de uma outra história qualquer. Vê-se sempre K. pela fresta de uma porta. Às vezes a abrimos e podemos, com mais precisão, contemplar seu vulto diante da mesa, com uma pilha de folhas em branco assentadas sobre o tampo da mesa. Não me consta ter jamais escrito algo. Apenas a intenção manifesta sua condição de escritor. Deliberadamente, isto não poderia durar muito e K., como de fato os últimos fatos o provam, teria de finalmente ter de transformar sua vocação, instinto que fosse, em algo dimensionável, palpável. Ora, não queremos divagar muito em torno de algo tão óbvio: não há escritores sem livros. K., escritor, deve escrever. Mas ninguém se indaga por que K. não escreve. Isto estaria muito longe da interrogação daqueles pacatos moradores da Rue Saint-Germain que imaginam apenas que, se escritor, K. tem que possuir escritos. Sua postura diante do mundo corrobora sua fama. É calado, despojado, mora em um quarto alugado e, sobretudo, passa seu tempo sentado à frente de folhas de papel. Não queremos, com isso, construir um paradoxo e uma crítica à ética das aparências, mas K. é escritor e, sobretudo, se parece com um escritor. Muito bem, para que se feche o raciocínio basta que tenha um livro, qualquer que seja, e assim as expectativas angustiantes dos moradores, e agora também as suas, estarão solucionadas.

K. senta-se àfrente da mesa e ensaia uma velha idéia. Por que realmente ser, significa parecer? Mas isto seria ridículo. K. não pode pensar isto, pois seria artifício banal que tiraria de meu trabalho todo o seu conteúdo criativo. É fácil, depois de passar páginas procurando construir uma situação, didaticamente colocar na boca de outro algo que eu memo não soube manifestar. Sou eu o ser que diante da máquina, atônito, contempla o desenlace de uma fatigante história, procurando justificar para o papel uma verdade que pretende já ter alcançado em potência. Potência que dificilmente se torna inteligível, quando romanceada e, principalmente, se engendrada na sinuosa história de um escritor chamado K. que morava na Rue Saint-Germain. A angústia de K. não se chama angústia, porque eu ainda não o descrevi angustiado. Existe apenas um movimento ansioso que reflete a minha descrença na manutenção do moto criativo inicial. Ah! K. não escreve livros. Não importa muito isto, se eu não sei como terminá-los. Minha existência se decompõe na tentativa de explicar, com exatidão, algo que rudimentarmente conheço em sentido. Não é preciso que eu seja autor de um livro. Eu sou uma possibilidade que se manifesta sempre, quando sento à frente destas folhas de papel. Não importa o resultado que eu dê a elas. Não contam nada mesmo. Não mudarão muita coisa. Talvez eu mude a história de K. no decorrer das próximas páginas. Talvez o mate. Talvez conte que o aluguel de seu quarto custa, hoje, debitados todos os impostos, vinte e três francos e oitenta. Oitenta o que? Não sei, não me ocorre agora qual seja o sistema decimal, ou centesimal, em vigor na França na exata época em que K. morava na Rue Saint-Germain. Ah! bem sei que agora coloco na história uma referência de valor que, certamente, haverá de suscitar comentário e reflexão. Que tipo de quarto será este que custa apenas vinte e poucos francos? Aí está. A potência que se faz objeto e engendra o mais brilhante comentário: qual será o tipo de quarto que se pode obter nos dias de hoje por tão poucos francos? Ao menos, o clima se torna real, na medida das aparências preservadas. K. é um escritor desconhecido e, bem se sabe, que o preço de sua arte deverá ser a incógnita pobreza e o esquecimento em um quarto da Rue Saint-Germain.

K. se senta à frente das folhas de papel e, angustiado que está (vejam, K.sente angústia e a expressa, materialmente, nesta cena diante do papel contingencialmente branco) procura pensar em algo que possa escrever, para afastar de si o fardo da situação. K. não teme os moradores daquela pacata rua de Paris. Certamente haveria milhões de desculpas, para não ter em mãos, por ora, o brilhante exemplar premiado. Claro está que, tampouco, se pode achá-lo em alguma livraria de Paris, pois, editados por tão humilde editora, em pouco tempo não se puderam pagar e tiveram de ser vendidos pelo preço do papel em branco, para quitar as despesas de impressão. Ótimo, "tão puro veio ao mundo, que a ele, em pureza, alvo como a folha branca, retorna"! Esta é a verdade que pode até calar a massa de moradores que passam na janela de K. todos os dias e reclamam por seu trabalho. Não, certamente a massa não passa, diariamente, gritando aos ouvidos de K.e reclamando por seus originais. A massa de moradores passa, diariamente, na janela de K. falando das últimas e banais notícias, rumo ao cotidiano de suas ocupações. À noite retornam e, mais uma vez, em suas presenças distantes, fazem crer buscar respostas nos livros de K. ou, pelo menos, exigir conhecê-los.K., angustiado, os contempla da janela. Fecha-a. Faz frio. Não, fecha-a porque não quer vê-los. Não, fecha-a porque eu quero. Não é o mundo exterior que o angustia. Este apenas materializa sob a forma de juízes implacáveis sua incerteza interior. K. está só. Solidão moral, dizia uma amiga, certa vez, depois de ler um de seus livros, ou melhor, um de meus livros. K. ainda não os tem. K.está só e, no vazio de seu relacionamento com um mundo de aparências, reclama por algo artificial, por um livro que o livre passageiramente de sua própria angústia, criada em sua cabeça, temida pelas suas própria expectativas probalísticas em relação ao comportamento de seres que jamais se perguntam o que pensa como escritor, mas sim, o que escreve, e mais, onde escreve. É isso, K. se angustia. Olha para todos os lados do pequeno quarto, procurando, em vão, em um bolso de uma velha roupa algum dinheiro que, se lembra, vagamente, lá ter deixado. Quem sabe, juntando um pouco, trabalhando em alguma coisa rápida, um "bico"? Talvez estejam aceitando copiadores, revisores em alguma editora pequena do Quartier Latin. Sim, decididamente, amanhã K. vai ao trabalho. Será por pouco tempo, até que tenha como pagar o aluguel atrasado. Depois sai daquele quarto e procura um outro, em outro ponto de Paris. Quem sabe até se mude de cidade. Aí volta ao seu insistente trabalho de escritor sem livros.

K. trabalha. Levanta cedo. Teve de raspar a barba e cortar curto o cabelo, porque o patrão exigia. Carrega carnes em um açougue perto do Quais d’Orsay. Seu trabalho não lhe rende muito, mas, certamente, ao final de algum tempo terá o dinheiro suficiente, para pagar os anos atrasados de aluguel. Todos no bairro comentam a transformação de K. Dizia-se, segundo as novas informações colhidas na fresta de sua porta, que trabalhava em algum novo livro, que passava dias debruçado escrevendo sem parar, quando, de repente, parou tudo e passou a sair cedo de manhã, para voltar com ar exausto no fim do dia. Há quem diga ser comportamento nitidamente explicável para uma personalidade instável como a sua. Bem, é certo que não se sabe se realmente é instável; mas quais escritores não têm personalidades instáveis, particularmente estes esquecidos do mundo que moram num pequeno quarto alugado da Rue Saint-Germain? Suas mãos são sujas de sangue no final do dia e, mesmo escovadas, este ainda resta nas pequenas dobras. A dona da pensão se pergunta o que fará K., para tê-las assim, mas obviamente, não querendo se intrometer demais, apenas oferece, gentilmente, os préstimos de uma infalível loção para mãos que compra em uma pequena farmácia da Rive Droite. K. agrade e encabulado se retira para seu quarto. Dorme cedo. Não tem escrito ultimamente, nem mesmo se posta diante das folhas brancas de papel que continuam ali em cima da mesa.

Algum tempo se passou. K. conta o dinheiro ajuntado e, finalmente, decide chamar a senhora, para que possa quitar sua dívida de anos e, daí então, poder partir. Chama-a e em poucos segundos depara-se novamente com uma realidade que esquecera. A boa senhora não aceita o dinheiro e, sorridente, apenas pede para ver algum de seus últimos escritos, quem sabe até aquele manuscrito em que trabalhava, quando, subitamente, decidiu parar e passar a sair todos os dias cedo, para voltar cansado no final do dia. Não o faz por mal e certamente não pretende causar dano a K., quando, atenciosamente, pede para conhecer sua obra. O aluguel, repete, com este não há que se preocupar. K. é uma figura cara aos habitantes da pequena rua e não se poderia mais compreender aquela velha pensão sem a sua figura de escritor que passava dias diante de folhas de papel em branco e que, subitamente, decidiu fazer algo diverso, que ainda assim se explica, visto ser K. um temperamento instável como convém à própria criação.

K. está novamente preso a seus deveres perante aquela gente. Não é tão fácil libertar-se. Não é possível comprar sua liberdade anterior, porque não é isto que está à venda. K. volta à janela e contempla a massa de moradores que passa naquele momento por ali e, sorridente, o cumprimenta. Certamente estarão eles felizes, porque voltou à condição de antes. Voltou ao seu quarto e, como de hábito, passará os próximos tempos, sentado diante de folhas brancas de papel. Não há meios de admitir mudanças tão drásticas em um universo de tanta paz. Isto desestabilizaria a crença dos simples homens que passam com seus filhos todos os dias naquela rua e, quando debaixo da janela de K., apontam-na e dizem ser ali que mora o escritor. K. é escritor, e porisso não pode carregar carnes para ganhar o dinheiro do aluguel de seu quarto. A senhora não quer o dinheiro, quer o escritor. O prejuízo material é muito pequeno perto de sua pretensa fama ao abrigar em sua casa ser tão diverso dos outros que, enquanto trabalham, passa horas sentado diante de folhas brancas de papel. Definitivamente o que querem é um livro e este K. não tem. Sua liberdade agora já não tem mais outra forma, senão a forma de um número qualquer de páginas. Não importa o que contenham, porque ninguém as lera, mas serão a confirmação de que K. é realmente aquilo que parece ser. Afinal, como pode ser algo que não produz nada? Um autor sem obra, um homem sem vida, mas isto soa horrivelmente medonho. Lembra muito aquele único livro que a boa e velha senhora leu, ainda jovem, na companhia do marido, em uma viagem à Bretanha. Que belos ensinamentos e, sobretudo, que final feliz! Sim, tinha um final o dito livro e isto já fazia da história algo incapaz de ser coisa boa. Mas voltemos à nova angústia de K. Novamente a necessidade de um livro se faz presente.

Eu não sei se K. escreve livros. Sei, por ora, apenas que é escritor. Sua angústia é minha, porque a mesma contingência que o aflige é a verdade que move criador. A possibilidade deve se traduzir em forma. A moral de ser deve se fazer normas. A criatividade deve ser conveniente e inteligivelmente moldada. Não seria possível convencer aquelas boas pessoas que o cercam, que, tal qual a ética, também a arte não carece, contingencialmente, de expressão material. Seria a própria postura individual que a faria potência, experiência, reflexão. Ser escritor seria apenas a qualidade de uma ação que poderia se traduzir ou não em livros. Livros são papel escrito, impresso. Morrem quando nascem. E depois ninguém os lê. Ou melhor, alguns poucos os lêem. Mas K. não vive em meu mundo ideal. Bem posso mudar-lhe o destino, posso cortar-lhe a cabeça, fazê-lo vítima de um crime, de um trauma, mas não posso impedir que seja ele vítima da própria solidão diante de aparências conflitantes. Salvo as aparências, resta pouco. Basta que escreva um livro. O que é mais importante conseguiu brilhantemente: parece escritor. A angústia de K. nasce no vazio da coisa feita, aparência moldade de comportamento enquadrado. K. quer ser livre para ser escritor. Quer ser livre para ter a sua moral, a sua ética própria. Mas isto é pedir demais, é pensar demais. Os seres que o cercam reclamam apenas por livros, reclamam apenas por uma conduta que se compatibilize com suas expectativas. Suas normas devem, e podem, ser livres mas devem, ao menos, gerar um universo factível às suas crenças. A angústia que não experimentam, quando passam em seu passeio diário diante da velha pensão, é a implacável evidência de que K. está vivo no meio deles. Mas isto tudo não é K. quem sente. K. sente apenas necessidade de escrever um livro; afinal, se diz escritor. Pudera plagiar. Sim, bela idéia. K. sai de casa apressado. Vai a uma livraria longe dali e compra o mais desconhecido dos livros. Escondido numa pequena estante, já velho, é o único exemplar que ainda resta de uma remessa de dois. Um foi devolvido por defeito de impressão. K. pergunta pelo autor e ninguém o conhece. Pergunta o nome da editora e alguém afirma ter fechado há alguns anos por falta de recursos. Dizem que só editava livros de autores desconhecidos e que, porisso, não se manteve por muito tempo. K. compra o livro, volta para casa e se põe a copiá-lo. Em poucos dias terá terminado o trabalho e, aí então, terá um manuscrito que possa calar o insistente olhar que o contempla por detrás da porta. Durante o trabalho, K. sente medo e a breve sensação de libertação que sentira ao engendrar a idéia em pensamento dá lugar à terrível sensação de engano. Não é ele o autor. Levanta-se rapidamente e deixa o quarto. Sai dali, deixando tudo como estava, e some no escuro da noite. Alguns dias depoi encontra-se um corpo boiando no Sena. Já em estado de decomposição, não é possível reconhecê-lo. A única nota de desaparecimento que consta na delegacia central de Paris é a de um homem loiro, conformação física média, de quem se sabe, apenas, chamar K., escritor, morador tem alguns anos em um quarto alugado na Rue Saint-Germain. Feito o inventário de suas coisas, percebe-se, em meio aos papéis em cima da mesa, uma pilha escrita e outra em branco. Algum estudioso, por curiosidade, toma os escritos para ler e percebe serem eles de um valor inigualável. Confere-se a K. um prêmio e, por falta de familiares conhecidos, é a velha senhora que comparece para receber o dinheiro do fundo de ajuda à obra de escritores descobertos "post morten". Há também uma medalha que a velha senhora guarda com carinho e, mais tarde, pendura na parede da lareira ao lado da do marido morto. Todas as vezes em que vai a alguma festa, ou em ocasiões especiais, pendura-as ao peito e, orgulhosa, conta ser de um escritor famoso, morto prematuramente, que habitou um de seus quartos alugados na Rue Saint-Germain.