SOBRE CÉREBROS, MENTES E O TEMPO

Henrique Schützer Del Nero (IEA-USP)

 

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!

Ninguém me peça definições!

Ninguém me diga: "vem por aqui"!

A minha vida é um vendaval que se soltou.

É uma onda que se alevantou.

É um átomo a mais que se animou...

Não sei para onde vou,

Não sei para onde vou

- Sei que não vou por aí!

José Régio

 

Vinte anos. Esse tempo, medido numa escala objetiva, me separa do Anglo do meu ano de vestibular. Muita gente ainda é a mesma, o cabelo mais branco e a mente mais aguda. Vinte anos me separam dessas pessoas, de minhas lembranças e medos de época. Lá atrás há um só 1977 e um sem-número de histórias. Esse tempo objetivo é medido em anos, meses e horas. O tempo da história que não é contada, mas vivida, é medido na mente. Mente que conta os números do tempo, das horas e também da saudade, da decepção e do sonho.

Esse tempo que passou me ensinou muito, tornou-me capaz de falar agora, tomando seu tempo por uns poucos instantes. Esse tempo me fez ter a barriga mais flácida, mais olheiras, menos cabelo, a barba já branquejando e a mente cada vez mais ciente de por onde não vou jamais.

Não vou por onde os malandros teimam em vender mentiras sobre a mente, enganando as pessoas com o poder da auto-ajuda, do otimismo fácil e da magia. Não vou pelo caminho de uma fé sem obras, nem de um deus que nos evita o trabalho, a reflexão e as ações racionais.

Vou pelo caminho que trilhei durante esses vinte anos, curso médico, especialização e demais teses. Vou pelo caminho que a ciência ditou para este 1997, quando alunos de sempre se defrontam com os desafios e com o risco da disfunção.

O sonho é imune ao tempo, não tem ciência, é mente no estado puro, algo que se projeta numa instituição e carreira que ninguém jamais provou. A escolha é um pouco assim. Quando somos crianças teimamos na vitrine da loja que queremos aquele brinquedo. "Mimado e prepotente" exclamam os adultos. Anos depois teimamos que queremos aquela carreira, naquela faculdade. " Que determinação e fibra" dizem os mesmo adultos de tão pouco tempo atrás.

Sonhem um pouco, naquilo que o cérebro permite de elaborar o cenário futuro, mas não substantivem os caminhos como se fosse possível dizer "eu vou por aí". Usem o sonho e o brio para dizer "certamente não vou por aí".

Escolher uma carreira, um curso, uma faculdade tem algo da criança mimada que insiste no brinquedo; escolher o caminho por onde não se vai tem o sabor da idade adulta, dos princípios e valores que devem nortear os atos.

Tanto tempo se passou e continuam tantos ídolos a impressionar o alunos. A Pinheiros, a POLI, a São Francisco, a GV, o ITA, são nomes na nossa mente, brinquedos na vitrine da criança mimada, objetos de desejo do adolescente aguerrido. Não é disso que falamos aqui. Não sei se vou para a POLI ou se vou por aí.

Sei que não se joga tempo fora e que conhecimento é a única maneira de emancipar o cérebro animal, tornando-o mente social; sei que aula dada deve ser matéria estudada; sei que agora vou virar adulto, não por força da faculdade no final do ano, mas de um curso que vai me tratar sem subterfúgios, não afagando meus erros, nem me reprovando sem razão.

Esse curso vai, outrossim, apresentar da melhor forma possível o que é necessário saber, não para o vestibular somente, mas para a vida. Vai me ensinar a respeitar o brilho e a dedicação do menino pobre que virou professor renomado; não por uma tacada, nem por herança, mas por suor e noites em claro. Quando você os vir, aulas brilhantes, carros bons, olheiras de tanta aula noturna, lembrem-se do tempo; e do estudo; e da paciência; e da decência. Elas todas estarão nas aulas, transmitindo o que há de adulto no curso, não a aprovação de mais de cem na Pinheiros, mas o respeito ao conhecimento e à função redentora da ciência e da cultura.

O curso lhe ensinará a singela reunião de competência e sucesso, mas cuidado com a palavra sucesso. Também os malandros gostam de falar de vitórias; gostam de apontar as maneiras de se tornar rico e sagaz, porém não contam quanta gente dedicada, da POLI, da Pinheiros, da Paulista, mendiga trabalho, amarga desemprego e é humilhada pelo gerente do banco.

Não, o curso não vai lhes preparar um banquete para o sucesso. Talvez apenas lhe dê os ingredientes do que deve ser um mundo mais coerente e justo, onde a apostila não fica fechada, onde o plantão de dúvidas não enche só na véspera da prova, onde o sucesso se mede pela ética e não pela faculdade conquistada, primeira ou terceira opção.

O mundo adulto pode lhes preparar muitas estradas. Não vão por aquelas que ensinem que há um jeitinho para entrar na faculdade, que há um jeitinho para sair dela, e depois um jeitão para virar um profissional requisitado.

Também não devo dizer, salvo me traísse, por onde se deve ir. Vão pelos caminhos que a mente projete, mas não se iludam com brinquedos na prateleira. A decência profissional e a inventividade não estarão na escolha mimada, mas na escolha suada. Sem suor não terá valor a vitória, nem perdão o fracasso.

A alienação é o único caminho por onde não se deve ir. Alienação que teima em não estudar os meses e as horas todas, que não pergunta além do que foi dado, que não ousa além do que foi descoberto. Alienação é sonhar com carro de luxo e cabeça de mico, diploma feito de expediente e de cola.

Malandro é quem percebe que a mente é cérebro, que pode ir onde se quiser, desde que a máquina permita. Malandro é quem imita o menino pobre que estudou a noite toda, virou gente grande, ganhou até prêmio pela contribuição e, em seguida, voltou sua mente para os outros que não estudaram tanto, que pediram dinheiro no farol, que mendigaram e se humilharam por falta de país, e vivem nos guetos ainda hoje, esperando que os conhecimento, a ciência e a decência os libertem dessa escravidão disfarçada.

Quando se entra na idade adulta, o primeiro trote não é cabeça raspada, mas a aula dada, tão burilada, que fica esquecida até a véspera da prova. Esse trote pressiona, porque não há perdão no tempo, porque a vida cobra e a mente também.

Essa força que empurra o corpo, sentando-o na cadeira por horas a fio de estudo, enrijece a mente, tonando-a forte; mas também pode ser muita a força, não só a do estudo, mas a da cobrança sem medida, tal que o cérebro, que sustenta a mente, engasgue, titubeie, engula em seco e adoeça.

O mentiroso gosta de vender a ilusão de que a mente tudo pode. É verdade, mas incompleta. Pode tudo aquilo que pode, salvo aquilo que não pode.

Pode ser grande e forte, pode engajada e estudar muito porque o mundo precisa de gente capaz. Não para se dar bem e comprar mansão, mas para resolver os infortúnios da nação, de quem não estuda, nem tem tempo para jogar fora, trabalhando de sol a sol e esperando que um dia seus filhos possam sonhar com vestibular ou somente conclusão de primeiro grau, comida na mesa e centro de saúde para a febre do bebê.

Mas a mente pode ser fraca, nessa hora somente o porta-voz do cérebro que engripou. Desregular um neurônio é fato semelhante a uma gripe; desregular o caráter é que é motivo de vergonha.

Quando o cérebro e a mente engripam, engasgam, entopem, não aparece ferida no olho, nem coceira na mão, nem exame de sangue alterado. Aparece uma mente que enevoa o propósito, que oblitera os sentidos, esquecida dos sonhos e enfraquecida na luta.

Essa mente doente não é coisa de loucos, mas de homens. Basta dar-lhes um cérebro e uma missão, mais uma vida feita de tempo e de escolhas, para que, na biografia e na ação, haja risco de disfunção.

Mede-se o desvio por tantas coisas, mas sobretudo algumas, aquelas que merecem remédio para o cérebro e não conselhos para a mente.

Esses sinais e sintomas são facilmente reconhecíveis. O humor se entristece, a ansiedade e a inquietude fazem a concentração sumir, a noite bem dormida dá lugar ao sono interrompido. O apetite aumenta ou diminui, perde-se e ganha-se peso sem plano e propósito. O medo se torna forte demais. Antes do distúrbio, o frio na barriga pode ser apenas antevisão do futuro e do chamamento para a luta. Na disfunção o medo é imperativo, abrangente e paralisante. O cansaço não é mais apenas o resultado do dia de estudo e trabalho zeloso, mas é uma constante que chega tão logo se acorda. O raciocínio é lento, a memória fraca. E o tempo? Ah! o tempo, agora, não são os anos ou as horas, mas uma sensação de estreitamento e funil por onde não passam os sonhos, nem a vitória, nem a razão.

Estejam atentos aos sintomas e sinais de um cérebro que se fez mente. Saibam, além de somar e subtrair, de acertar questões e entrar na primeira opção, distinguir o que é mente e o que é cérebro. Saibam distinguir quando são necessárias mais horas de estudo e quando são necessários mais diálogos consigo e com os outros. Saibam ir pelo caminho do conhecimento e do estudo eternos. Saibam diagnosticar desvios ansiosos e outros que tais, procurando ajuda se preciso.

Mas não pensem que a mente tudo pode. Pode fazer de vocês pessoas decentes que não cedem jamais diante da missão de ser gente grande e culta. Se desregular, saibam ser grandes e perceber que o cérebro também é máquina e biologia, também merece afago e remédio. Também merece a medicina das boas escolas e do bom aluno, jamais do arrivista ou do curandeiro, ou da vizinha de boa intenção ou do pároco de boa fé e pouca ciência.

Bem-vindos filhos e pais. Inicia-se aqui o ano zero da idade adulta, da cidadania plena e do estudo incessante. Todos devem reciclar suas idéias, adensar seus conceitos, adestrar sua ética e sua responsabilidade com o semelhante. Entender que a mente é cérebro têm duas conseqüências imediatas: diagnosticar o distúrbio, sabendo como tratá-lo; mais ainda, compreender que somos biologicamente seres morais e que só a decência e a solidariedade nos fará fortes e adaptados.

Não sei por onde vocês vão? Inventem e criem, tratando, quando preciso, a preguiça com trabalho, a ansiedade com remédio, a vitória com reserva e a derrota com perdão.

Só não vão pelo caminho fácil e pela busca de sucesso imediato e individual. Aquilo que se faz é exemplo para outros dentro de vinte anos. Isso é o tempo - o cérebro que faz a mente e a mente que faz a história.

Henrique Schützer Del Nero é médico psiquiatra formado pela USP. Bacharel e mestre em Filosofia pela USP. Está concluindo sua tese de doutorado em Engenharia Eletrônica na POLI-USP, onde desenvolve trabalho sobre circuitos cerebrais em condições normais e patológicas.

É coordenador do Grupo de Ciência Cognitiva do Instituto de Estudos Avançados da USP, desde sua criação em 1990. Tem mais de 40 trabalhos técnicos publicados no Brasil e no Exterior. Foi aluno do Anglo em 1977, tendo entrado em seguida na Medicina-USP (Pinheiros). Regularmente faz palestras de orientação sobre distúrbios ansiosos para os alunos do Anglo. É o autor de O Sítio da mente: pensamento, emoção e vontade no cérebro humano (Collegium Cognitio) disponível a partir de março nas livrarias e no Anglo. Embora bem mais pesado, pode ser uma leitura que, feita aos poucos, ensine de maneira um pouco mais precisa o que é ter mente, até onde pode ir, e sobretudo o que não pode fazer, embora tenha muito oportunista por ai vendendo teorias mentirosa acerca dela. Uma ciência da vida mental não é patrimônio deste ou daquele profissional. É comum a todo aquele que estude o que há de moderno e aceito pela comunidade científica mundial a esse respeito.