Desencana!

Henrique Schützer Del Nero

IEA-USP

"Para não arrefecerdes penseis que podeis vir a saber tudo, para não presumirdes penseis que, pelo muito que souberdes, mui pouco tereis chegado a saber."

Rui Barbosa

"Não fui muito alto, mas venho de muito longe."

Humberto de Campos

 

Há dois planos que se misturam nas linhas acima. O título, longe do vernáculo, cita expressão, cunhada pelos jovens, que quer dizer muito. Assim é a língua. Rica, transmite sem frescuras, gíria às vezes, alguns conceitos sábios.

Abaixo, nas duas citações, português castiço, estão dois elementos fundamentais na hora da reflexão: a presunção, parente da neurose e da ignorância; também o desespero de medir quão alto se foi, sem considerar o trajeto.

Agora está chegando a hora da prova. Não há situação mais angustiante que ser testado. Eu, pelo menos, odeio.

Há alguns anos fiz uma prova de pós-graduação na universidade. O professor, homem de profunda pedagogia, deu a prova em duas partes: a primeira valendo cinco pontos era impossível de ser resolvida. Cada aluno tinha duas horas para fazer essa parte. Ao final das duas horas, entregava-se o primeiro bloco, recebendo-se então a segunda parte, relativamente fácil para quem tivesse estudado a matéria. Valia outros cinco pontos. Quer dizer, zerava-se na primeira parte e, com estudo anterior, conseguia-se facilmente os cinco pontos na segunda.

Homem sábio porque provou que na sala de aula há meio de se provocar todos os quadros psíquicos imagináveis. Eu, pelo menos, suava, sentia um aperto no peito, uma vontade louca de chorar e de sumir. Desespero puro.

Isso pode acontecer com vocês e é bom entender algumas coisas.

Em primeiro lugar desconfio que o examinador que elabora as provas não seja impelido por sentimentos sádicos. Mas acontece que está de posse da faca e do queijo para perguntar sobre tudo. Aí mora o perigo.

Você já percebeu que, quando se pergunta algo para alguém do tipo

" quais são as únicas formas de chegar à resposta tal em tais situações?", normalmente o outro não consegue responder nem mesmo coisas fáceis? Ou quando se esquece alguma coisa e pergunta-se " o ator do filme tal é...?", o outro parece esquecer automaticamente também?

Isso parece fazer parte da ansiedade gerada pela situação assimétrica de ser testado e de testar. Um dia alguns de vocês serão professores e verão como é fácil deixar até um fulano genial desconcertado, sentindo-se burro.

Então, vamos lá: não é que o examinador queira o mal de vocês. Pelo contrário, o que tenho visto é que quase sem exceção os vestibulares são cada vez melhor elaborados. Mas a situação é desconfortável: vocês estão alí sendo julgados e não dá para romper essa assimetria. O indivíduo que formulou a questão, fê-lo após anos de submersão naquela disciplina. Conseguiu, depois de muito pensar, chegar à mais conceitual avaliação das condições gerais que regem a ligação do átomo de carbono. Mas você, jovem, ainda inexperiente, está alí para saber um pouco de tudo. Toda e qualquer bela questão estará avaliando, de um lado a capacidade de uma pessoa de formular o essencial de sua área de conhecimento, e de outro, você, respondendo sobre todas as áreas de conhecimento!

Essa assimetria gera uma ansiedade brutal. Se eu estivesse novamente nessa situação estaria bastante preocupado. Não pense que nós, mais velhos, possuidores de títulos que parecem tão mais importantes, não sentimos as mesmas coisas. Pelo contrário, fosse hoje, eu não passaria na prova que fiz há vinte anos atrás. Pelo menos, teria de parar tudo que faço e estudar pelo menos um ano tudo outra vez.

Onde quero chegar com o título e com a citação de Rui Barbosa e Humberto de Campos? Quero dizer apenas que desencanar significa algo que devemos perseguir depois de ter cumprido o melhor de nós.

Claro, este texto não se dirige àqueles que estão em falta com suas tarefas. Não há meio de fazer alguém que não cumpre suas tarefas sentir-se bem; ou de aliviar-lhe a tensão ou a culpa. O pior, ou melhor, é que esses raramente têm culpa ou ansiedade e é por isso que às vezes acabam conseguindo ir melhor do que muita gente estudiosa. (Talvez essa seja uma pista valiosa para reflexão)

O texto se dirige àqueles que, tendo cumprido aquilo que estava ao seu alcance, agora começam a sentir "frio na barriga" com a aproximação da prova.

Cuidado com o conceito de "ter cumprido tudo que se podia". Ninguém, por definição, pode dizer que fez tudo ou que fez perfeito. Procure no íntimo de qualquer um e verá que todos nós somos pessoas com alguns débitos, "com algumas tarefas mínimas que não fizemos". Aceitar isso, percebendo que a virtude é um conceito quantitativo e não qualitativo, é um grande avanço. Na virtude existe "mais ou menos grávida". Somos mais ou menos zelosos. Cumprindo 80% das nossas tarefas podemos dizer que já há bons indícios de que somos legais. Os 20% que faltaram ficarão por conta daquilo que não se consegue fazer para atingir a perfeição. Duvido que haja alguém que durante uma vida não deixe um número dessa ordem de "tarefas" sem fazer ou de "aulas" sem estudar.

Um grande homem que a geração de vocês não teve a graça de conhecer tão bem, Dom Helder Câmara, falava certa vez : "ocupe-se e deixe a preocupação para Deus". Palavras sábias, quer para quem crê, quer para o agnóstico que sempre pode entender alegorias poéticas. A ocupação é da ordem das coisas que se podem controlar. A preocupação, não. A hora da prova é fator fora de controle pessoal. Não adianta prever ou tentar estipular comportamentos. Sabemos apenas que, quanto mais calmo e confiante se estiver, melhor se irá. Pois então, vejamos que, pelas condições descritas de assimetria na hora do teste, não devemos nos preocupar demais com a prova. Ocupar-se com ela, até pouco antes de ocorrer, é sagrado. Preocupar-se é diabólico e deve ser afastado a todo custo. Portanto, desencana!

Desencana porque a prova é apenas o corolário de um processo. Não se mede quão alto se vai, mas de quão longe se vem. O valor de alguém sempre será medido por isso. Pelo menos na sociedade que você deve querer construir. Tenha orgulho então das coisas que você acerta e também das que erra. Errar é um ato de coragem e de humanidade. Só se erra quando se tenta e vocês estão tentando. Se há gente besta avaliando o outro pela opção que pegou ou pelo número de pontos que conseguiu, azar. Pode ser que isso valha alguma coisa, mas não será isso que vai contar no futuro, quando se fizerem os balanços adequados de sua condição de profissional, de pai, de mãe, de cônjuge, de chefe, de líder.

Mas há que passar na prova, não? De uma certa forma isso está subentendido. Não sei se agora ou no futuro. Antes de derrotismo, ou de porta de escape antecipada, isso dá a exata dimensão que afasta a ansiedade. Não há lugar para ansiedade, quando se tem a certeza de que cedo ou tarde haverá justiça para quem se esforça. Desde que o esforçado não se veja paralisado pelos inimigos clássicos: o desânimo, a presunção e o imediatismo.

O desânimo, particularmente agora às vésperas da prova, surge porque fatalmente terá ficado algo para trás. Lembre-se de que até os melhores entre nós deixaram alguma pouca coisa para trás em suas vidas. Não serão algumas poucas aulas não estudadas ou revisadas que farão tanta diferença. E além do mais, agora ainda há tempo de se fazer um esforcinho extra e superar algumas marcas de horas de estudo por dia. Como é bonito ver no final da maratona o corredor que, quase caíndo, busca as últimas forças e chega ao limite. Falta tempo suficiente para buscar essas últimas forças, buscando o limite e a compleção da matéria.

Mas cuidado, tendo conseguido chegar lá, há o fator da presunção que faz do homem bom um fariseu, um gabola, um chato, um câncer social. Alí, encarnada na sua virtude está a pretensão de ter atingido algo de tão bom que o habilita a olhar de cima para baixo para o outros. Pobre coitado, não sabe quão difícil é saber e o que pior, nessa época, pode perder alguns minutos de estudo vitais na hora da chegada, minutos que significam a superação da prova. Não que esse último estudo agregue mais pontos ao ranking 98, mas agrega a humildade de não arrefecer jamais e de não presumir jamais. A tranqüilidade da humildade é insubstituível e há ansiedades que acometem os presunçosos, tão logo se defrontam com as primeiras dificuldades.

O imediatismo é a última grande fonte de ansiedade com a prova. Achar que vai dar certo, pensar positivo, etc. podem ser grandes remédios mas pecam pelo excesso de crença na nossa cabeça. Às vezes nossa cabeça nos trai. Não se culpem por causa disso. Deixem de lado o rigor que deve ter guiado o estudo e a disciplina de vocês durante esse ano e digam um solene desencana para vocês mesmos.

Aprendam a valorizar aquilo que conseguiram e usar as falhas como pistas para ações futuras. Tenham orgulho das colocação e das opções que conseguirem. Não deixem nunca que ninguém, nem que vocês mesmos, exerçam o mais feio dos papéis que é torcer o nariz para a faculdade a ou b. Conheço gente boa e competente saída das mais variadas escolas deste país. Também conheço incompetências sólidas saídas das boas escolas.

Claro está que, de antemão, se deve perseguir o melhor. Não porque seja um passaporte para o sucesso, mas porque a melhor escola deve, na média, contar com melhores corpos docentes e discentes. Mas ser decente e saudável consigo é mais importante que isso. Significa ter orgulho de onde se chegou, olhando em silêncio para dentro de si e examinando o caminho trilhado.

"Não fui muito alto mas venho de muito longe". O quão alto se vai gera ansiedade. De quão longe se vem gera calma e perdão. Gera confiança e um sonoro desencana no fundo da alma.

Se você, por alguma razão, não consegue perceber que se cobra alguém até às portas do exame e depois se inicia o processo de colo e de paparico, porque é assim que deve ser; se não percebe o que está por trás destas palavras e continua perdendo a noite de sono pensando, tendo "brancos", com má memória, com baixa concentração, chorando fácil ou tendo arrepios de pensar na prova, procure rápido a ajuda de um profissional. Isso pode, com um pouquinho de química, resguardar o esforço que você fez. Digo resguardar e não salvar, porque salvar é palavra para situações mais extremas que vestibular. Não diria jamais perder um ano ou salvar um ano. Quem não entende a dimensão oposta entre a cobrança pelo caminho e o perdão pela altitude alcançada, ou a cobrança pela sabedoria e o escárnio pela presunção sábia, então pode fechar esse artigo e ir fazer outra coisa.

Você entrará ou não em algum lugar. Entrando ou não, não me parece que tenha entendido ou seja capaz de entender o conceito de processo que está em jogo agora e que valores existenciais estão sendo desvelados.

Se você, no entanto, se beneficou um pouco desta leitura, não hesite em desde já aumentar suas horas de estudo (não na véspera, tá?) tal fosse corredor de maratona e, ao mesmo tempo, se fez tudo que podia ser feito, comemorar sem ansiedade o fato de você ser uma boa pessoa. Entre ou não.

Meus parabéns, dias antes da prova, àqueles que souberam estudar e refletir sobre todos os pontos da matéria, tal estivesse alí a última oportunidade de suas vidas e, ao mesmo tempo, foram capazes de fazer as provas com uma tranqüilidade de quem está apenas brincando.

Cara séria e preocupada, a gente tem de fazer durante a vida, quando não consegue estudar todos os dia, nem entender que as forças estão alí para ser usadas. Na hora da prova, diga um sonoro desencana e bata na suas costas pela sua ocupação durante toda a preparação. A preocupação, essa já está com Deus.