Sobre escolas e escolhas.

Dr. Henrique Schützer Del Nero

Instituto de Estudos Avançados da USP

 

 

Está chegando a hora de escolher a carreira. As inscrições estão próximas e alguns de vocês ainda não certeza do que fazer.

Vamos tratar um pouco desse assunto, sem a pretensão de substituir a cabeça de ninguém.

Alguns problemas na hora da escolha decorrem dos fatores que trataremos a seguir.

Ansiedade

Querer controlar o futuro é bobagem. Há uma série de variáveis que vocês não podem conhecer. Já estudaram as várias carreiras, visitaram algumas universidades, conversaram com profissionais, mas a dúvida persiste.

Preste atenção: carreira é um dos elementos que compõem a identidade de uma pessoa. Não é o único. A maior parte das pessoas que vejo queixando-se de terem escolhido errado, às vezes anos depois, carregam uma insatisfação muito mais profunda. A escolha errada é simplesmente uma forma de expressar esse desconforto consigo.

Profissão é um conjunto de coisas. Depende de emprego, salário, perspectiva, reconhecimento, satisfação, desafio. Querer controlar de antemão todas essas variáveis gera uma ansiedade tola.

Aposte naquilo que parece certo. Certeza não existe em nenhum momento da vida. A simples busca desesperada por certeza já demonstra que não é uma simples escolha profissional que está em jogo.

Se você tem a impressão de que o X que vai ser marcado na folha de inscrição significa uma tacada definitiva, cuide-se porque a ansiedade e a expectativa estão exageradas.

Afaste a ansiedade da escolha certa. Aceite as limitações de qualquer raciocínio antecipado. Isso afasta o temor de errar e normalmente dirige o pensamento para onde deve estar.

Mudanças bruscas

Uma outra coisa que costuma acontecer nesses momentos é a mudança repentina. Vinha-se pensando há anos numa carreira e, de repente, perto da hora de decidir, "descobre-se" que era outra.

Cuidado com mudanças bruscas. Se por uma lado há descobertas que há muito estavam fermentando e, na hora da decisão, brotam na consciência, também há um elemento de imediatismo que deve ser afastado.

De modo geral, as tendências mais antigas devem ter uma ligeira vantagem sobre as mais recentes, pelo simples fato de que passaram mais tempo na sua cabeça sem ser refutadas.

O mito da matéria preferida

Uma outra consideração que se deve ter em mente é a de que se escolhe uma carreira em função das matérias de que se gosta mais.

Isso é verdade em parte. Por um lado, não vamos negar que uma pessoa que gosta mais de história, literatura, redação, etc. deve ter mais pendores para carreiras da área de Humanas, enquanto que aquele que gosta mais de física e matemática deve ir para Exatas.

Quando falo do "mito da matéria preferida" refiro-me ao problema oposto. O ódio por determinadas matérias não vai ajudá-lo em nada na escolha profissional. Se por uma lado as matérias preferidas dirigem certas escolhas, as matérias odiadas pouco podem auxiliar.

Por que? Bem, em primeiro lugar não creio que possa haver lugar numa personalidade madura para ódios intelectuais. Pode haver lugar para preferências.

Em segundo lugar no mais das vezes as disciplinas hoje em dia tendem a interseccionar-se.

Nas áreas de biológicas é crescente a penetração de modelos matemáticos e físicos. Nas áreas de exatas é crescente a ênfase em projetos sistêmicos, o que redunda em conhecer fenômenos biológicos, psicológicos e sociológicos. Finalmente, as áreas de humanas cada vez mais se ressentem da falta de modelos mais enxutos para fazer seus prognósticos e orientar o ensino e a pesquisa. Nesse sentido, as áreas biológicas e exatas cada vez mais servem de inspiração para o estudo de alguns tópicos das humanidades. Vale mencionar aqui duas áreas de crescente penetração como alegoria para a compreensão de fenômenos culturais: teoria da complexidade e processos decisórios.

Alguns exemplos interessantes são os seguintes. O aluno que deseja estudar filosofia porque disciplina da área de humanas e se defronta com um curso de lógica, ferramenta matemática fundamental no curso.

Ou quem vai estudar economia ou administração e topa com uma matemática e uma física que fornecem modelos de fenômenos complexos. Ou quem vai estudar biologia e precisa da matemática para modelar dinâmica de populações.

Finalmente, não há que esquecer-se da presença maciça da computação em todo e qualquer campo que se escolha. Ao contrário de mero instrumento, a computação, se entendida na sua essência formal, pode ser o diferencial entre o bom e o mau aluno.

Esses exemplos visam apenas advertí-lo de que não há mais lugar nos dias de hoje para a escolha estanque de carreiras.

Ao contrário, as profissões tendem a se mesclar num denominador comum de conhecimento geral. Cuidado com o preconceito e desde já acostume-se com a idéia de que física e matemática vieram para ficar.

Adaptação profissional

Vocês já devem ter visto a quantidade de engenheiros que administram bancos, de advogados que escrevem em jornais, de médicos que dão aula em cursinhos, de biólogos que fazem estudo de campo para empresas de marketing e assim por diante.

A inventividade e a criatividade são os grandes aliados na escolha profissional. Quanto mais ciente se estiver de que o passo que se está dando é apenas um item do tópico "profissão", mais fácies ficarão as escolhas.

A faculdade é novamente uma peregrinação por diversas disciplinas. Mais do que uma nova oportunidade de escolha, o curso superior significa uma postura madura diante do conhecimento.

O professor cede lugar aos poucos para o orientador. O espírito de pesquisa, de descoberta, de amor pelos conceitos fundamentais, liberta qualquer um da escolha severa. Há sempre lugar para adaptar o desejo e o gosto a um certo modo de fazer cada disciplina.

Quando vemos a velocidade com que os conceitos estão mudando, não hesito em dizer que ninguém pode afirmar qual será a feição das profissões dentro de 30 anos.

Procure então decidir em função de seu gosto e aptidão por certas áreas, deixando para o tempo a função de possibilitar a adaptação usual.

Com amor pelos conceitos e estudo sistemático a escolha a cada momento será automática.

Mercado e salário

Cuidado com esses dois inimigos. Ninguém diria, há alguns anos, que quem fosse estudar matemática seria (devido à computação) tão requisitado.

O tempo à frente é longo e os prognósticos sobre mercado e salário costumam mais deturpar que auxiliar. Tal profissão está em baixa, tal profissão está em alta. Isso me parece bobagem. Saturado ou não, qualquer mercado sempre necessitará de bons profissionais. Portanto o problema do mercado e do salário estarão basicamente relacionados à capacidade de fornecer soluções inteligentes que nem sempre são aprendidas antecipadamente.

Quem cultiva a criatividade e o estudo horizontal das disciplinas, usando a faculdade apenas como ponte para continuar estudando sempre um pouco de tudo deve ter no futuro boas chances de mercado e salário dignos.

Política, jornal e cultura

Você pode estar pensando que as coisas não são tão simples. Há inúmeros profissionais excelentes, vindos das melhores faculdades, desempregados no momento.

Aí está outra questão fundamental. Você dentro de alguns anos estará representando a elite intelectual desse país. Sua atitude profissional e política em muito determinará o padrão de tratamento das profissões e dos profissionais. A cada momento será possível através de participação, engajamento e seriedade mudar rumos. Reveja então sua maturidade se agora, tão desesperado com sua escolha profissional, você ainda não se habituou a ler os jornais, dicutir política e cultura com seus amigos e a pensar nos problemas de cada área.

Grande parte da satisfação de escolher uma profissão vem do quanto isso simboliza uma atitude perante a coletividade. Novamente, por isso não há escolha rígida, imutável, incorrigível. Se você estiver alienado desse processo, também não adiantará fazer raciocínios do tipo "serei médico porque gosto de ajudar os outros". Ajudar os outros é responsabilidade de todo mundo. Nem auxiliará para ser engenheiro saber que a nota maior costuma ser em matemática.

Conclusão

Essas consiedrações podem ajudá-lo em muitos aspectos. Por um lado, lembre-se de que se deve dar ouvidos à vocação. Essa palavra vem de chamado. Alguma coisa dentro de você chama para uma área. Isso é muito útil e bonito. Mas, como todo processo silencioso, esse chamamento é uma metáfora. Uma intuição que conjuga seu pendor, seu desempenho e sua capacidade de antecipação.

Seu pendor deve ser positivo, isto é deve dizer respeito àquilo de que você mais gosta e melhor sabe fazer; jamais deve haver ênfase naquilo que se odeia ou que se opensa não saber fazer porque como disse acima as disciplinas cada vez mais se interseccionam.

Seu desempenho deve ser também fator que pesa na escolha. De modo geral é neurótico fazer aquilo em que se é pior. Porém, também é fato de que o esforço de superar algumas dificuldades pode dar uma satisfação indescritível.

Cuidado: não vá somente para uma área porque lhe parece mais fácil. O desempenho é um fator na escolha, mas o esforço de superar certas dificuldades também pode justificar certas escolhas.

Quanto à capacidade de antecipação, pondere todos os elementos e decida. Não pretenda esgotar o assunto, nem acertar na mosca. O acerto virá da maturidade de encarar cada área com seus prós e contras. Virá da maturidade de não esperar da profissão uma tábua de salvação. Virá da capacidade de entender o trabalho como meio e não fim.

Escolhe-se uma profissão como meio de atingir independência, maturidade, respeito, dignidade e exemplo. Quando todos esses elementos estiverem em jogo, pouco importará isoladamente se a decisão foi certa ou não. Po definição terá sido certa se o objetivo da emancipação e do crescimento tiverem sido alcançados. Isso somente poderá ser sabido no futuro. Não se desespere com a escolha. Marque X com a idéias que você tem em mente. O tempo há de responder que você acertou. Lembre-se de que ninguém escolhe profissão. Ninguém teve a oportunidade de exercer um pouco de cada. Escolhe-se sobre a presunção de uma profissão. A certeza da escolha certa advirá do modo de lidar com as escolhas, com o lado bom e também com o lado desagradável (e esteja certo de que haverá).

Entre a múltipla escolha das carreiras, fique com a múltipla escola. Aquela que tem o conhecimento, a dignidade e o crescimento como fim. Aquela onde as matérias são objeto de preferência, nunca de horror. Aquela em que a invenção faz do médico um pouco engenheiro, do advogado um pouco físico, do aluno um pouco professor, do prático um pouco teórico, do humano um pouco formal, do formal um pouco do formol.

Escolher é um ato de liberdade. Exerça-o consciente e sem medo de errar. A certeza virá pelo modo como você se portar diante da escolha. Boa sorte.

Henrique Schützer Del Nero é médico psiquiatra formado pela USP. Bacharel e mestre em Filosofia pela USP. Está concluíndo sua tese de doutorado em Engenharia Eletrônica na POLI-USP, onde desenvolve trabalho sobre circuitos cerebrais em condições normais e patológicas.

É coordenador do Grupo de Ciência Cognitiva do Instituto de Estudos Avançados da USP, desde sua criação em 1990. Tem mais de 40 trabalhos publicados no Brasil e no Exterior. É autor do livro O Sítio da Mente: Pensamento, Emoção e Vontade no Cérebro Humano, da editora Collegium Cognitio com o apoio cultural do Anglo Vestibulares.

Foi aluno do Anglo em 1977, tendo entrado em seguida na Medicina-USP (Pinheiros)

Regularmente faz palestras de orientação sobre distúrbios ansiosos para os alunos do Anglo.