O primeiro ano do resto de suas vidas

Dr. Henrique Schützer Del Nero

Instituto de Estudos Avançados-Universidade de São Paulo

Toca o sinal. Entra o professor. Algazarra. Brincadeiras rápidas, piadas e então...matéria. Lousa cheia. Matéria dada. Tarefa complementar. Simulado. "Ranking". Escolha profissional. Inscrição e desfecho. Aprovação ou desastre?

Nesse hiato de tempo, fração mínima de suas vidas, oito meses condensados, você experimenta alguns dos pontos extremos da vida. Aprender um pouco sobre o que está em jogo e que lições há nas entrelinhas destes 2 semestres significa ultrapassar o vestibular e o cursinho. Estudar é preciso mas, mais que isso, crescer é preciso.

Este é o primeiro ano do resto de suas vidas. Nada nele se esgota por aqui. Ao contrário, renova-se em cada semestre das próximas décadas: no trabalho de final de curso, na escolha do emprego, no desemprego, no salário minguado, na perda de uma vaga para um medíocre "puxa-saco". Definitivamente, o cursinho é escola e escola das boas. Ensina bem, faz brincadeira, enche a lousa com esmero e, mais ainda, dá de bandeja a oportunidade de entender o que é ser adulto e cidadão. Passar na prova é conseqüência desse aprendizado. É meio e não fim. Ansiedade e desânimo são efeitos colaterais do processo. Surgem à toda hora quando se está sendo apertado.

Você está sendo apertado, porque a vida aperta, porque a profissão aperta, porque o dinheiro aperta, porque o casamento aperta, porque a ignorância e a malandragem apertam. Você está se sentindo apertado porque, vindo para cá, viu um menino de rua. Pés no chão. Carinha suja. Ele é você e eu. É retrato de um país que nos aperta para resolver as coisas mais básicas. É retrato de uma terra que está perguntando que indivíduo você vai ser amanhã.

E você, ressentido de ser jovem, pensou que era só o "ranking", o simulado e a Fuvest. Definitivamente, você precisa ouvir um pouco sobre você.

Em março você chegou cheio de boas intenções. Começaram as aulas. "É agora", pensou. Comprou caneta e borracha novas. Arrumou a escrivaninha. Deixou o sapato e a roupa prontos para, no dia seguinte, pular cedo. Parecia até começo de namoro. Primeiras semanas, tudo bem, até que no primeiro simulado as coisas começam a mudar de figura. As perguntas são esquisitas. O clima gostoso da sala de aula, a brincadeira alegre com aquele professor meio palhaço, dão lugar a um atmosfera estranha. É hora de prova, de acerto e de erro. É hora de colocação e de avaliação. Pior ainda: é hora de colocar as pessoas umas em cima das outras. "Ranking", medida de aproveitamento que em vez de elucidar e orientar, afoba, humilha, desencoraja, para não dizer daquele que, tendo ido muito bem, faz daquilo armadilha e arrogância.

Em primeiro lugar, você deveria perceber que o cursinho é uma prévia do que vai acontecer daqui para frente na sua vida. Todo o tempo você estará senso cobrado para dar o melhor e para render mais. Se não for, desconfie. Ou a escola em que você estiver estudando é fraca ou a empresa em que você está trabalhando está prestes a fechar ou a perder mercado para o concorrente.

O mundo andou mudando bastante nestes últimos anos. Alguns sistemas de produção se mostraram ineficientes e agora estamos numa época em que dois conceitos são chave: concorrência e inventividade.

Concorrência para que os preços fiquem cada vez mais baixos e os produtos cada vez melhores. Inventividade para que cada vez mais se entendam as oportunidades e os desafios, colocando no ser humano a responsabilidade de enfrentá-los, uma vez que as máquinas já fazem o que é mecânico. O robô respondendor de questões em vestibular está com os dias contados. Pode passar na prova mas vai se ferrar nos anos seguintes. A concorrência é brutal e vai piorar. A inventividade tem de vencer. Inventividade significa responsabilidade, amadurecimento e caráter.

A lógica, às vezes perversa, da concorrência pode levar o ingênuo a achar que o menino de pés no chão é filho de um sistema iníqüo que privilegia os mais fortes. Isso é meia verdade e eu não preciso apelar dizendo que você não terá dinheiro para comprar presunto para seu filho se não estudar. Não vai ter. A não ser que você descubra um atalho brasileiro, esse jeitinho canalha que se instalou entre nós e invente uma malandragem para ganhar sem produzir, roubando ou só enganando. Ótimo, você compra presunto por um tempo. Não estuda e compra carro importado. Engana no simulado e na aula. Depois, é morto no sinal. O menino de pés no chão cresceu e se irritou. Assalta no sinal. Você não estudava e pretendia produzir sem conhecimento. Ótimo, a sociedade que te põe presunto na mesa e carro importado na garagem é a mesma que vai te matar no sinal. Se você não entende isso, se não percebe a dimensão do que está em jogo no refrão "aula dada, aula estudada" então volte sempre no mês de março para poder, de roupa nova, ter um mês ou dois para brincar de ser gente grande e séria.

Ah! agora você está bravo. " Qual é a desse cara?". "Sou zeloso... do meu jeito, vou no meu ritmo, não gosto de neura ou ´stress`...Se não for agora, será algum dia".

Certíssimo na segunda parte e totalmente fora na primeira.

Você não está aqui para ser aprovado na USP em primeiro lugar. Para isso só tem um lugar. O país não precisa só desse primeiro colocado. Precisa de cada um de vocês. Sentados aí, pés no sapato, casaco no pescoço, vocês são o retrato de uma parte que ainda respira de uma terra de contrastes. São jovens que podem salvar o menino do sinal antes que seja tarde. Para isso não se mede seu desempenho pelo primeiro lugar da USP. Mede-se pela consciência de ir ao limite todos os dias em todas as coisas que se faz.

Você gosta de esporte. Vê um jogo de futebol e fica encantado com aquele jogador que não se entrega, que, perdendo de 2 a 0, 40 minutos do segundo tempo, não dá sossego para o goleiro adversário. Eu sei que você fica louco quando seu time compra um jogador caro, daqueles que chegam de salto alto, não querendo treinar, ganhando peso e dando uma de mascarado no jogo. Faz uma jogada genial de vez em quando. "Não resolve", pensa você. Precisamos de um cara que se empenhe nos treinos, que vá ao limite de sua forma física e que, na hora do jogo, vá ao limite de sua força moral, de sua garra , de seu amor pela camisa.

Pois bem, o que se está falando acima é justamente o que se espera de você. Não é ser gênio, nem primeiro lugar em coisa alguma. É treinar todo dia indo ao limite de sua forma física. É jogar todo o tempo como se fosse decisão. É respeitar o juiz e o torcedor que pagou ingresso. É brigar pelo gol até o último minuto, mesmo que esteja perdendo. É sair de cabeça erguida e não ser chamado jamais de amarelão, covarde ou vendido.

Definitivamente, cada dia desse ano é dia de treino ou de jogo. Para o resto de suas vidas também. Que jogador você pretende ser?

Um dos grandes enganos que se comete é justamente ficar nessa mania espasmódica de estudar muito uma época e depois parar com tudo. É como gente que faz regime drástico e depois engorda tudo de novo. Efeito sanfona. Isso, estudo tipo efeito sanfona. Os mais entendidos dirão rapidamente: o problema do efeito sanfona é que deixa o corpo cheio de estrias. Pois é, estudo efeito sanfona deixa estrias também. Por isso se estuda todo o tempo. Por isso se joga cada partida como se fosse decisão.

Preste atenção no que costuma acontecer quando se faz isso todo o tempo. Normalmente não precisa ficar no sufoco no último jogo, não precisa culpar o juiz, não precisa fazer reza brava para não tomar gol no último minuto. Quando a campanha foi toda pautada pela garra contínua nem decisão costuma ter. O campeonato foi ganho partidas antes.

Vestibular não é muito diferente. Indo ao limite todos os dias o desfecho passa a ser quase previsível. A prova é só um item a mais que costuma ter tão pouca surpresa que nem atemoriza demais. O segredo não está no fim do ano, no dia da prova. Está a cada dia e hora em que você vem para cá. Também não vai estar na vida quando o chefe chamar para conversar. Certamente, política à parte, não será implicância pura que vai lhe fazer perder o emprego; nem ouvir de seu filho que você falhou; nem do marido ou da mulher que você não zelou pela relação. O que vai estar em jogo nesses momentos é uma soma de todos os pequenos atos que você plantou a cada dia de sua vida de funcionário, pai, marido ou mulher. Não tem muita mágica nas coisas. Você colhe na medida que planta todos os dias. O resto é bobagem ou conseqüência. Não é preciso entrar em primeiro lugar nem entrar no primeiro ano. É preciso entender que cada dia que se perde na vida por não ter entendido a mensagem acima vai custar caro. Não é dia de sucesso ou fracasso. Esses dois acontecem com todo mundo. É dia de ignorância. É dia que se perdeu porque se insiste em ser criança desleixada e mimada quando a vida está começando a apertar. Tire o cavalo da chuva. Ou você percebe que todo dia precisa ser dia de decisão ou então nem a USP vai resolver seus dilemas, nem sua infantilidade, nem sua mania de se esconder de si próprio.

Se entrar na USP por força de sua inteligência e habilidade de ir bem sem se esforçar muito (e isso pode acontecer), na continuação o problema aparecerá. Não se é cientista ou bom profisional andando a 30% de sua capacidade. Mesmo que 30% de um gênio seja muita velocidade, não é velocidade suficiente para afastar a insatisfação, o vazio e outros galhos que ocorrem com gente que costuma conseguir fácil as coisas.

Não sei aonde cada um de vocês tem de chegar. Isso é problema da vida e do futuro. Está sujeito a milhões de variáveis. Sei que lido há anos com gente que se sente mal porque não vai ao limite de si. Não o limite imposto pelos outros. Não o limite de passar raspando na primeira ou na quinta opção. O limite é uma coisa invisível que tem dentro de cada um de vocês. Quando se chega nele as coisas se transformam. O acerto vira glória. O fracasso vira perdão e força para recomeçar.

Vá ao limite todos os dias de hoje em diante. Em tudo. No estudo, nos princípios, na amizade, no riso, na alegria de ser jovem, no olhar maroto e namorador, na discussão de suas idéias. Deixe o resto por conta do tempo. Se não conseguir ir ao limite, pare de se martirizar. Converse com os amigos, com os pais, com os professores. Costuma ser fácil resolver com uma boa dose de amizade e solidariedade humana. Não se preocupe em demasia com a escolha da profissão. Qualquer coisa feita no limite de si recompensa e engrandece. É menos a área que se escolhe e mais o exercício diário de amor e seriedade que constituem a escolha na mosca.

Não há mais lugar no mundo de hoje para profissões rígidas. As transformações são tão rápidas que o que se espera é que cada um de vocês esteja ligado, informado, atento, de bem consigo e pronto para aprender coisas novas que mudam o rosto de qualquer área profissional de um ano para outro.

A escolha profissional e a prova do fim do ano são apenas passageiros menores de um processo. Nele, você deve crescer e perceber sua função na vida e na sociedade. Para isso se estuda, para isso se trabalha duro. Para isso se perdoa o erro, dando novas oportunidades.

Se você perceber que você não é um vestibulando mas um ser humano, o resto virá do exercício diário. Hoje, no final do ano e para o resto de sua vida.

Se você perceber isso, o menino de pés descalços poderá dormir um pouco mais tranqüilo. Talvez ele, ou seus filhos, vivam num mundo melhor. Talvez ainda sem presunto mas com um par de sapatos e dignidade de cidadão.