Anarquia e Alucinações

 

 

 

 

 

 

Henrique Schützer Del Nero (publicado originalmente em 1982 pela ed. Hermes)

 

 

"Aventurar-se causa ansiedade, mas deixar de arriscar-se é perder a si mesmo... E aventurar-se no sentido mais elevado é precisamente tomar consciência de si próprio."

KIERKEGAARD

 

 

 

 

 

 

 

 

"Oye,hijo mío,el silencio

Es un silencio ondulado,

un silencio,

donde resballan valles y ecos

y que inclina las frentes

hacia el suelo."

 

FEDERICO GARCIA LORCA

 

 

 

 

 

 

I

 

"A esquizofrenia é uma estratégia especial que uma pessoa inventa para viver numa situação intolerável."

R. D. LAING

 

 

 

A máquina tem estado parada. O tempo parece ter deixado de passar. Aos poucos, no entanto, algo volta a acontecer.Desfilam sobre o papel pequenos símbolos, notas que simplesmente se agrupam e vão tomando sentido. Estranhamente, a necessidade de criticar nasce junto com a de criar, e este par maldito desafia as leis do tempo, como que apostando quem há de vencer. A vontade de parar tudo é grande e, por absurdo que possa parecer, há algo inexplicável a me impedir.

Tantas bocas se calaram num mundo cheio de leis que nos tolhem: tantos foram os anos em que ricas palavras se perderam na censura de sistemas absurdos, e agora, ao sabor da vontade, a máquina volta a correr. Não há censura neste mundo de sonhos, senão o próprio medo de errar. Paro e reflito alguns segundos; olho por sobre a mesa e vejo árvores me contemplando, esperando algo de mim.Paro mais uma vez e sinto que a dor se inicia.

As palavras continuam se agrupando. Há um sentido nelas - e um sentido ainda maior aguarda até que possa transparecer do todo que se vai formando.

Meu corpo sofre ao parar: há um pulso de vida pedindo que continue; há uma carência de algo que possa tocar, de um filho que espelhe a beleza do pai, de uma obra que reflita um pouco do criador.

Meu corpo continua só. Uma estranha sensação se apossa de mim e começo a tremer; os espasmos se misturam às alucinações e, de repente, tudo parece muito claro; as horas desfilam à minha frente e o cortejo maldito dos homens saúda meu ente passado. A dor invade meu corpo cansado e agitado. Começo a me perguntar por juízos de realidade e de valor. Fico ali a me debater, enquanto aquele infinito de imagens me assalta e, sem pedir permissão, assume minha consciência naquele instante.

Há saliva em minha boca. Lembra muito a água do mar, que se mistura ao infinito de uma noite longínqua. Os peixes são aos poucos mastigados e o gosto de sua carne é azedo. Também o é o da experiência, que grava indelevelmente em nossos sentidos um sem número de impressões, e aparentemente passamos uma vida toda tentando agrupá-las ou criar algum vínculo entre elas. Riem e zombam de nós. Voltam desordenadas em sonhos confusos e, em vão as tentamos explicar. Há sempre um esforço estúpido de entendê-las ainda assim, mas os fantasmas da noite não têm que ser explicados. São peças de um mundo cheio de contradições e paradoxos. Também nós somos parte dele. Não vivemos eternamente, e não criamos senão um punhado de ilusões.

Vomito e um calor estranho invade meu corpo. Calor de chama ardente, de vida que se esvai, como o fogo que consome cada graveto de uma fogueira que morre aos poucos. Meus músculos estão cansados de tanto se contrair. Os espasmos me cansam mas, ao mesmo tempo, ajudam-me a romper com a terrível barreira de um julgamento implacável que me assola a cada instante.

 

Nasci de um parto normal cheio de dor. A alegria deve ter enchido o corpo cansado de minha mãe. Fui seu fruto e também palavra vã que agora vivia. Morri num dia perdido no tempo. Não sei quantos anos tinha então. Talvez tenha sido aos dez, talvez aos vinte, mas isso não importa. O dia, não sei precisar, se foi de sol ou de chuva; ou de seca ou de dor; nem sequer posso dizer ter sido apenas um, ou quem sabe, foi a cada momento um pouco. Vivi neste breve intervalo de tempo, sem certezas e cheio de falsas crenças, que me haveriam de guiar rumo a um fim comum.

 

Olho novamente pela janela; as árvores continuam ali a me contemplar; seus olhos estão escondidos dos meus, mascarados sob uma outra organização morfológica. Mas os elos existem sempre; são veículos entre nossa estrutura e outras que nos cercam; são a única fonte de identificação dessas anomalias que a natureza insiste em chamar de criação.

Reconhecemos o semelhante, e o odiamos veladamente. Pisamos as folhas que cobrem o chão, e também os mais fracos.

Nãosei quanto tempo o meu julgamento há de suportar o que digo. Meu vínculo com o belo e com terceiros se aguça, tão logo desafio o branco inerte desta criatura sem vida que está à minha frente.

A água do mar é límpida como meu tempo de menino. Depois vem o homem, num dia qualquer de um mês perdido no tempo, e me enche de imposições. As águas se sujam, à medida que recebem os resíduos de gente que separou o joio do trigo e o bem do mal. Turvam-se e deixam de ter sua integridade de outrora; representam, agora, um misto de verdade e de mentira, depositadas e diluídas.

Nasci de um parto doloroso, predestinado a aceitar as regras inerentes à minha condição humana. Quisera ter sido água límpida mas não fui; logo vieram os excrementos dos outros e me inundaram.

 

Há um homem a me contemplar lá fora. Assiste impassível ao meu trabalho. Não esboça uma simples reação, senão um mero sorriso de prazer ao me ver retroceder para corrigir algum erro. Goza uma estranha paz e usufrui plenamente aquele momento. Espera, calmamente, até que eu possa chegar ao fim, antevendo com carinho a possibilidade de me ver rasgar tudo isto. Não se preocupa porém com minha idéias, pois o crivo de uma opinião preconcebida há de rasgá-las em casa, em cada esquina, e deixar ali, morta, a tentativa tola de romper com este cerco de hipocrisia e mediocridade que nos envolve.

Este homem somente se mexe quando, num esforço desesperado, tenta acabar com tudo. Sana minhas feridas e me diz coisas vãs para me manter vivo ainda algum tempo. Não é, ainda, a hora de terminar.

 

Certa vez ouvi dizer que a serpente do paraíso andava em pé e que seu castigo, por tanto mal, foi ter de rastejar para sempre. Nós continuamos eretos! Estranho ver o que nasceria de símbolos que, talvez, nos pudessem ter ajudado a compreender o elo entre o bem e o mal. Nunca acreditei neles, senão que são nossos dois inimigos eternos. Pretensão e culpa andam juntas com ambos. Nossa integridade é constantemente violada, como a água límpida que se polui ao ter contato com o resto de nossa síntese das coisas. Nossa escolha pressupõe ferir a de outro. Separamos o que nos é útil e depois damos os restos a um outro ser qualquer. O bem que escolhemos se desprende do mal que jogamos ao próximo.

Há fantasmas que me rodeiam, dia e noite. São cheios de letras e me querem consumir. Dizem que ainda hão de tornar-me adaptado. Minha vontade se ressente, quando a retalho conforme imposições. Tento explicar-lhe que nem tudo é possível, quando vivemos juntos uns dos outros. Não me ouve e, tão logo possa, se vira contra mim. Não sou feliz. Ando por aí brincando de burlar os tiranos que me dominam, as leis feitas para me reger e uma vontade que nem teve tempo para se expressar como quisera.

 

O cansaço se apodera de mim e, como naquele dia em que cedi pela primeira vez, cedo ainda uma outra, e sigo fazendo-o todos os dias.

Paro um pouco de escrever e penso em tudo que não disse. Começo a tentar agrupar as idéias de maneira a expressar o que sinto, mas só sei dizer o que não quero e o que não penso.

O homem continua lá fora a me contemplar. Meu corpo há de tremer ainda muitas vezes, até que ache algum remédio que me alivie desta angústia.

O som de uma música me vem à lembrança e me desafia a continuar. Procuro uma harmonia igual, que me explique e me governe como uma lei una e eterna. Nas notas há um símbolo humano que guarda estreita relação para com o criador. Cultivei a vontade de encontrar esta lei suprema, mas esqueci de procurar os meios que a ela me poderiam levar.

 

Nasci de um parto com muita dor. Uma estranha alegria se apossou de todos, como se rissem da morte, por a terem desafiado e vencido. Uma alegria que perpetua um pouco de nós e que nos impede, ainda um pouco, de acabar. Morri, num dia de um mês qualquer; não sei precisar. Não importa muito, senão para os papéis que haveriam de provar que não mais existia. Deveriam estar assinados pela autoridade competente, se não minha morte perderia seu significado e eu poderia mesmo voltar a viver, até que alguém carimbasse um outro papel e corrigisse este breve intervalo de tempo, conquistado - e ganho - através do erro e do engano.

Falta-me o ar. Meu coração começa a bater loucamente e, de repente, um suor gélido me invade o corpo, penetrando todas as minhas entranhas, cansadas de se contrair. Minhas vísceras saem de mim e dançam à minha frente, ao som de uma música estranhamente bela. Meus pensamento se desprendem de minha vontade e dançam junto com meu corpo. Uma sensação de gozo invade minha alma, e deliro aos poucos. Apreendo cada imagem deste sonho fictício e, nas metáforas de minha vontade, vislumbro algo de novo e diferente que não me fora ensinado. Estranhamente está tudo ali em perfeita ordem e já não me parece ser tão difícil entender. Olho meus sonhos e vejo o homem de sempre, preocupado. Esboça uma feição de contrariedade ante tudo aquilo e se retira rapidamente. Não percebo o que se passa à minha volta, pois meus sonhos ainda me encantam. Sinto braços que me envolvem mas não tenho vontade de reagir; sinto mãos que me apertam e a sensação não é nova, pois também outros dias me apertaram, me bateram e me dominaram, e eu nada disse.

 

Colocam-me num pequeno quarto escuro. Perdi meus movimentos e só posso ver através das paredes porque minha vontade assim o quer. Vejo muita gente discutindo; vejo rostos preocupados e corações vazios de esperança; há rancor em seus olhos e muitas lágrimas contidas. São rios de águas outrora límpidas, que se turvaram e poluiram quando a razão os inundou.Os motivos superiores predominam, justificando o massacre da intuição, e tudo acaba por se resumir num código perfeito de normas e de direitos.

As portas se abrem e meu corpo cansado esboça uma breve reação, mas as mãos são rápidas e me dominam de imediato. Algo está fluindo dentro de mim e sinto o gélido sabor de uma substância que invade minha forma. Meu corpo se embriaga com aquele líquido estranho e quer morrer. Meu sangue aos poucos o absorve e o dilui.

O cansaço se apodera de mim e a tristeza povoa minhas células; já não podem sonhar meus sonhos nem delirar sozinhas; algo veio novamente colocar ordem na mais ínfima de suas estruturas.

Apaga-se a realidade que existe em tudo aquilo. Meus olhos se fecham. Uma dor invade meu corpo dominado pelas drogas e assumo a essência dos mortos. Não há vida em mim. Durmo profundamente e já não vejo através das paredes. É chegada, novamente, a hora de os fantasmas ganharem vida e me assolarem, cobrando pelo que disse e pelo que fiz.

 

Nasci de um parto doloroso. Minha morte não me trouxe dor, senão constatação. A dor invadiu meus semelhantes e muito se chorou naquele dia. Depois foi o conformismo diante do inexorável e, finalmente, tudo voltou ao normal. Assinaram-se todos os papéis necessários. Fez-se meu inventário e se dividiram, equanimemente, entre meus herdeiros, minha roupa, minhas lembranças e também uns poucos tijolos que guardara, e que jamais se uniram e tomaram forma

Aparece-me um homem à frente. Uma história absurda acontece. Não conheço os personagens que a encenam. Alguém faz o papel de pai. Enche-me de carinho, e de punições também. Odeia-me quando erro, e me dá todo seu amor quando começo a viver de acordo com seus preceitos e vontades. Há uma vara que me açoita a todo instante. Odeios os que me odeiam e amo os que me amam, mas está errado: devo odiar a todos os que não me interessam e amar a todos os que ainda me podem trazer proveito. Há muito que aprender, e não devo deixar que a intuição me conte a verdade, senão quando estiver em concordância com o habitual.

Nado em uma lagoa. Há algo de familiar naquele ambiente. As árvores não me parecem estranhas. De repente meus músculos se enrijecem e meu corpo não se pode mover. A água penetra minhas vísceras e tira o ar de meus pulmões. Lembro de minha infância. Lembro de quando ainda não tinha nascido e, subitamente, sou acordado pelos gritos de minha mãe que se esforça para me expulsar de dentro dela. Uma faca corta caminho e alivia a tensão exercida sobre minha cabeça. O sangue espirra em mim, algo me prende e me puxa num rápido esforço que ajuda a natureza a cumprir minha função.

Mãos me apertam e examinam minha estrutura. Procuram meus pontos vitais na ânsia de me classificar e me entregar ao mundo dos normais. Meus sinais são satisfatórios e minha reação aos estímulos é adequada dentro dos parâmetros pré-fixados. Estou aceito. Pesa agora sobre mim a difícil missão de assimilar as novas formas que me serão impostas.

Meu corpo é pequeno, mas por alguma lei ainda há de crescer. Haverá, no entanto, um limite para isso. Meu pensamento também é pequeno. Dirige-me rumo à sobrevivência. Também há de crescer mas, para isso, deve impor-se um limite. Talvez isto não seja uma limitação inerente a ele, mas certamente haverá de ser uma lei externa, que acabará por sufocá-lo, enquadrá-lo e, em não tendo êxito, haverá de trancá-lo, torturá-lo e finalmente acabar com ele, por se ter excedido em suas atribuições e possibilidades.

 

Aos poucos volto a perceber o ambiente em que me encontro. A sensação é de torpor, e me doem todas as partes do corpo. Olho em volta e vejo sangue. As paredes são alvas, e só o vermelho de algumas manchas irregulares quebra o monótono de seus contornos. Tento abrir melhor os olhos mas estão inchados; tento me mexer mas fios emaranhados me contêm; tento pensar o que pode haver de real em tudo aquilo, mas não consigo; tento respirar mas estou morto. Mataram-me o pensamento. Olho em volta, eo vejo estendido logo adiante. São claros os sinais de tortura em seu corpo. Não há integridade em suas partes - está totalmente desconjuntado. Não tem mais a forma de antes, não tem mais unidade; é, agora, somente umas poucas palavras esparramadas e sem sentido. A lógica que o mantinha acabou. A vontade que corria em seus vasos está destruida.

Tento olhar através das paredes, como tantas vezes fizera, mas já não as posso atravessar. Há leis que me proibem de ver além do que me é dado enxergar. Estou morto mas, incrivelmente, ainda sinto algo a fluir dentro de mim. É morna a sensação e meu sangue já não me aquece. Olho meus dedos e meu peito: estão queimados. Vejo fios por toda a parte. Minha cabeça está aberta.

Estou sendo levado para algum lugar. Lembro-me, por alguns instantes, das árvores que me contemplavam naquelas tardes em que, sentado, também as mirava indignado. Estão me abrindo o crânio numa operação quase tão antiga quanto o próprio tempo. O martelo golpeia meu osso e o rompe, expondo meu cérebro. Algo aspira de mim um pouco de minhas experiências. Ouço vozes que discutem quando parar. Já não há mais muito o que remover. Um pouco do meu tempo passado está perdido; um pouco do meu tempo futuro limitado ao conteúdo que ainda me resta para assimilá-lo e guardá-lo. Procuro outras lembraças mas já estão perdidas, aspiradas e mortas.

 

Lembro-me de minhas convulsões e de minhas contrações desordenadas. Não entendo o que me fizeram com elas. Olho dentro de mim e vejo moléculas disputando a primazia de postos vitais; impedindo-me de descarregar impulsos de vida. São todas impessoais e estranhas ao meu corpo; roubam-me a experiência e a substituem por outra contida e limitada. Mergulho num sono diferente. Não há mais fantasmas dentro dele - são agora parte de minha realidade.Meus sonhos são escuros mas as figuras são explicáveis e conhecidas. Minha realidade é triste porém correta e sã. As mãos que me apertavam tentam agora me devolver à normalidade: estou nascendo novamente, sem dor, anestesiado e alheio a tudo.

Serpentes correm sobre meus membros, sufocando-me os poros; enrolam-se todas, impedindo que o sangue siga adiante. Pequenas células se ressentem, recorrendo a outras vias de sobrevivência, para que ainda possam, por algum tempo, manter sua integridade; a carência de ar e de alimento as faz delirar; a situação é dolorosa, levando ao acúmulo de substâncias nocivas que, aos poucos, atingem todos os músculos do corpo, fazendo-os contrair-se desesperadamente numa ânsia de expulsá-las. O ritmo é frenético e agita o corpo tolhido e cansado de implorar por alimento. O cérebro se ressente e, no entanto, se apertam ainda mais os nós que impedem o fluxo vital. O delírio substitui a realidade; o impossível adquire vida própria e dança à frente dos olhos. Algumas células começam a morrer, deixando o pouco alimento para as que ainda sobrevivem.Uma estranha seleção se processa, e somente quem pouco solicita, e pouco oferece, está apto a viver. Apenas quem aceita e não morre atendendo ao que reclama sua essência há de permanecer ali.

Os nós se desfazem e as serpentes se desprendem do corpo cansado. O sangue flui livremente. As células mortas já não hão mais de reagir; apenas umas poucas, agora, usufruem do alimento; vão multiplicar-se e substituir as antigas por outras; serão suas filhas e, portanto, levarão seu código de princípios e deveres, como herança de conduta. Dentro em pouco, o organismo que estivera à beira da morte haverá de estar íntegro novamente, graças ao trabalho incansável de regeneração. A vida voltará a existir, mas a variedade dos componentes estará agora substituida por uma única linhagem de seres, que foram capazes de adaptar-se às limitações, que souberam viver sem alimento, que resistiram à monotonia e à violação de suas necessidades básicas e não entregaram, assim, suas vidas num nobre sacrifício pelo sentido sufocado. Superaram as outras e agora hão de povoar o corpo semi-morto e constituir sua nova essência.

 

Há homens conversando à minha volta. Não consigo entender o que dizem, senão que sou o objeto da discussão.Um deles lembra uma víbora; o outro não tem aparência humana, somente se lhe reconhecendo a pretensa forma pelo uniforme que usa e pelas medalhas que ostenta no peito. Ouço palavras desconexas: falam uma linguagem absurda e parece não lhes preocupar o movimento de meus olhos, como que procurando participar do que dizem. Não entendo nada daquilo. Tenho estado sem entender as coisas há muito tempo.

Serpentes entram no quarto. Parecem ser as mesmas que me garrotearam. Não compreendo o que se passa mas não importa, pois qualquer decisão sempre será alheia a mim e ao meu entendimento.

Uma folha cai de uma árvore e dança no ar, até repousar suavemente sobre a relva; meus olhos tentam explicar o que ocorre. Há uma lei que rege tudo. Meu pensamento se desprende de mim e toma um rumo desconhecido e belo. Penso se há lei que também o possa reger. Talvez haja alguma teoria sobre a independência do espírito e da vontade que nos leve a experimentar um pouco de tudo que é possível no universo das coisas. Não é preciso que nossos sentidos sejam impressionados pelos estímulos.Trazemos conosco a possibilidade das sensações e isso basta à nossa imaginação para que nos leve aonde queira. Os símbolos podem se dispor de infinitas maneiras e o inconsciente os agrupa de acordo com seus princípios. Tudo que se relaciona existe, e a capacidade de relacionar os símbolos e de lhes dar alguma vida já é suficiente para constituir certezas.

As verdades existem e não é possível atribuir-lhes juízos de qualidade ou justificar sua necessidade, sua propriedade ou, até mesmo, seu significado.

Nossa vontade nos leva a agrupar as referências de que dispomos, formando grupos, nem sempre lógicos, mas que trazem em si apenas as limitações da imaginação e que não conhecem senão a tirania da mesma.

Não há nem bem nem mal; não há certo nem errado. Aquilo que existe é possível. A nós foi dado experimentar do fruto e gozar a liberdade de escolher.

 

Ouço uma ordem sussurrada entre dentes: trazem meu pensamento dilacerado. Uma pessoa se põe a limpar o sangue espalhado pela parede, enquanto o estranho grupo examina cuidadosamente os pedaços disformes de minhas idéias. Examinam-me os componentes minuciosamente e se espantam diante do que encontram. Chamam especialistas para que opinem. O último a se manifestar será um réptil; veste uma batina e leva um crucifixo ao peito. Não há meio de entender o que dizem, pois não há palavras reais. Os olhares bastam para confirmar que o diabo habita meu corpo e a anomalia constitui minha única explicação: estou louco.

 

As flores de setembro são belas; a cada ano renascem cheias de vida, para depois murchar e morrer; prosseguem seus ciclos, até não haver mais nenhuma semente que as possa gerar. São produto final de algo que consome tempo e substância. Há um princípio criador, sem o qual todo o esforço se torna vão. As sementes frutificam, porém o principal não é o fruto mas, sim, aquilo que o originou. Não basta que as coisas existam apenas uma vez; elas precisam renovar-se constantemente. A essência deve encerrar a constante força de reprodução, para que o produto se possa perpetuar em ciclos de existência e de morte.

Vomitei tão logo me aplicaram a primeira droga. Senti de novo aquela gélida sensação e aquele horrível torpor. Depois não houve mais nada senão o escuro. Não havia mais fantasmas, nem pesadelos, nem sonho.

 

Lembrei daquele homem que me contemplava quando olhava pela janela e de como mirava com indiferença meu trabalho. Lembrei de sua presença quando fizeram uma fogueira com minhas coisas e meus escritos. Sorria, enquanto via meu corpo arder. Ajudou a acendê-la e deliciou-se à medida que as chamas consumiam a mim e à minha obra. Depois juntou minhas cinzas e as misturou às de meus livros; já não se sabia o que fora um e o que fora o outro. Morremos juntos. Das cinzas brotaram lembranças passadas, palavras que outrora formaram um sentido para mim.

Vi uma cruz e um homem pregado nela. Havia uma dúvida permanente quanto ao seu significado, e me lembrei do que escrevera certa vez.

Nunca me preocupei com a categorização de Deus, nem me dei ao trabalho de atribuir-lhe algum significado semântico, visto que tudo isto, para mim, não passava de vã tentativa de rotular e classificar as coisas. Sempre tive medo de explicações e conceituações precisas.

Cedo enfrentei o paradoxo de crer em coisas que não existiam para os outros. Encontrei milhões de deuses e esbarrei com uma sociedade que concebera apenas um. Este, porém, não foi jamais a síntese das múltiplas possibilidades encerradas em seu significado mas, sim, um instrumento a endossar espiritualmente a dominação e a injustiça, e por isso não me serviu.

Havia em meus escritos a figura de um deus morto e de outros tantos que a censura fez repousarem apenas em minha imaginação. Presenciei muitas discussões acerca da divindade de Cristo porém poucas versaram sobre o sentido de sua vida; poucas se preocuparam com a dimensão social de uma vida cujo pressuposto báxico fosse o da igualdade. A religião tornou-se um meio sagrado de se manterem as injustiças e de perpetuar a exploração.

A hipocrisia das normas residia no fato de serem passíveis de transgressão impune e de pressuporem uma constante vigilância por parte de quem as ditasse. O pecado não foi um limite para a conduta pessoal mas, sim, um instrumento de julgamento e punição dirigida e interessada. Deus não passou de uma explicação banal para a vida, de uma esperança tola de continuidade e de uma garantia de perpetuação da desigualdade.

Certa vez afirmei que não tinha certeza de minhas crenças, e isto provocou uma reação de desgosto e desaprovação entre os que me ouviam. Fui chamado de herege e resolvi abandonar esses grupos que - pretensamente iniciados - não faziam outra coisa senão criticar o semelhante "perdido". Senti que deveria haver algo que regesse as coisas - fosse um deus ou um princípio qualquer -, que relacionasse os eventos e as emoções e que pudesse assim explicar nosso silêncio.

Convivi, de perto, com a miséria. Habituei-me com o conformismo que me rodeava e com a estupidez da falsa caridade, que não tinha por objetivo senão encobrir uma consciência sedenta por soluções mais justas.

Cresci em meio aos paradoxos da vida e da morte. Nasci para que alguém se alegrasse mas trouxe comigo também a dor.

Minha cabeça, quando pequeno, voava livremente e minha imaginação era senhora dos meus dias. Depois veio a razão e com ela os motivos imperiosos que nos levam a criar um mundo limitado e prático.

Minha moral não nasceu comigo; não foi a síntese de tudo que existia, nem mesmo uma escolha pessoal; foi apenas parte de um sistema de infinitas possibilidades, consagrado num determinado momento histórico, por um grupo que houve por bem pensar daquela forma.

Fecho os olhos, abstraindo por alguns instantes aquele lugar estranho em que me encontro e a lucinação daquele momento. Lembro-me de um outro escrito meu, quando descrevi a moral, assim como a concebiam, como sendo o mais perfeito instrumento de censura e de manutenção de sociedades que não resistiram ao crivo de novas idéias. O significado político da moral era justamente o de servir aos interesses de uma certa parcela de pessoas que, ditando normas de conduta, nada mais faziam que avaliar até onde o sistema podia sofrer críticas - a partir do que novas idéias colocariam em risco sua própria existência. A conceituação de certo e errado nada mais era que uma forma, histórica e socialmente aceita, para se eleger o que seria ou não assimilável. Os grupos dominantes se incumbiam de selecionar idéias que justificassem sua condição de dominadores e que impusessem aos dominados o dever de adaptar-se a elas. (Novas idéias são fatores desestabilizadores e, para tanto, devem ser rotuladas como heresia, subversão ou, até mesmo, demência).

Asvíboras se encarregavam de sufocar qualquer coisa nova que aparecesse no horizonte da vontade e da criatividade humana. Não havia alimento para novas idéias, sobrevivendo apenas quem sacrificasse o gênio inventivo e o substituisse por uma cômoda situação de conformismo. Os pequenos continuaram a morrer de fome; as idéias empobreceram para que se formassem sistemas mais limitados e fortes e para que se criassem homens cada vez mais semelhantes entre si e conformados com a violação de suas necessidades essenciais.

 

 

Havia um misto de realidade e de pesadelo dentro de mim, e a única coisa que parecia ter sentido era minha imaginação. Tudo o que meus sentidos ainda percebiam era tolo e sem nexo. A vinculação com o mundo era difícil pois, se a realidade me levava a absurdos, o ideal - que só tinha no pensamento morada possível - pouco podia modificar as coisas.

 

Desde quando minhas lembranças eram tão claras até os dias de hoje, não sei quanto tempo passou. Fiquei muito tempo naquele lugar de paredes brancas, sempre manchadas de sangue; todos os dias vinha algém que as limpava, tornando-as novamente alvas; em vão, porém, pois no dia seguinte estariam sujas outra vez e este ritual se repitiria, indefinidamente, naquela câmera de horrores.

Com o tempo, tornava-se mais difícil distinguir entre realidade e alucinação. Muitas foram as picadas e o gélido penetrar de seres cada vez mais potentes, separando-me, gradativamente, de minha capacidade crítica e de minha razão e me levando a uma espécie de conformismo e lento apagamento intelectual.

Já eram raros os instantes em que delirava. O gozo do prazer fora substituído por uma paz morna, inerte e sem criatividade, que mais lembrava a morte e não propriamente a síntese de uma harmonia alcançada.

Não chorava como antes, pois não havia nada ali que me impressionasse o suficiente para vencer minha apatia. Também as contrações musculares se foram e, em troca, sentia uma fraqueza e um torpor constantes.

Nunca vi relógios naquela sala. Todas as pessoas que ali entravam me pareciam horrendas. Suas faces eram uma massa disforme e não lhes podia notar os olhos, nem a boca, nem nada. Identificava-as como semelhantes a mim pelos gestos que faziam e pelos sons que emitiam. Não podia, no entanto, ver-lhes o olhar, nem entender-lhes as palavras.

Houve um dia em que me ligaram uma enorme quantidade de fios na cabeça. Seguiu-se uma sensação estranha; meu corpo tremeu, os espasmos voltaram e as imagens se somaram à minha frente. Era como se, de repente, me tivessem brindado novamente com um sem-número de sensações. Depois vieram uma dor profunda e uma escuridão total que não foram senão o preço de uma ilusão induzida e falsa.

 

 

Muito tempo se passou até que entrasse o primeiro ser real naquela sala; muito tempo ainda se passaria até que morresse, num dia qualquer, fazia algum tempo que havia nascido de um parto doloroso. De resto, não divisava senão possibilidades ilusórias ou nem sei o quê. Não se podia, na minha situação, afirmar o que era tudo aquilo desde o início. Não podia mais dizer o que existia e o que não existia, pois minha capacidade ou minha vontade já não conferiam grande importância ao julgamento da propriedade das coisas. Estava começando a apagar o único sentido que vislumbrava para a vida. Não havia, pois, que se criticar nem que se explicar senão aquilo que me fosse colocado nas mãos para sentir, não cabia julgar, além das poucas possibilidades que me oferecia um universo de normalidade, conformismo e subtração da vontade; não me era dado viver senão para aceitar o que a média concebera como sendo minha missão. As regras existiam para limitar o nosso eu diabólico, pervertido e mau, que, por obra exclusiva da vontade, nos poderia levar à destruição.

Aquelas idéias me voltavam a cabeça, como se tivessem sido a única coisa a permanecer depois de tudo. Estranho perceber que, embora não as aceitasse passivamente, minha boca já não as podia refutar com tanta independência e certeza, como o fizera outrora. Estranhamente meu sentido de vida se modificava, como se um manto de obscurantismo pousasse sobre minha imaginação.

Um dia, ouvi a primeira palavra inteligível em meio a todas as outras. Não pude revoltar-me contra ela, pois já não havia mais um laivo sequer de vida que me diferenciasse daquelas árvores mudas que contemplara em outros tempos. Ouvi algém sussurrar a palavra "melhora" e tudo se apagou novamente.

As luzes se acenderam muito depois. Indagaram-me sobre uma série de coisas e me explicaram que tinha estado muito doente.

A sensação de apatia não se havia apagado de minha mente. Era como se me tivessem tirado a chama da vontade. Meus sonhos já não tinham tanta cor e minha própria indignação parecia ter morrido. Perguntei quanto tempo tinha ficado ali mas não obtive resposta.

Disseram-me que tinha passado por um processo de preparação, para que se apagassem de mim os vestígios de uma terrível doença orgânica. Agora, uma vez debelado o mal pior, deveria começar um processo de reeducação de meu comportamento.

Pela primeira vez fui levado a ter contato com outros em situações semelhantes à minha. Vi gente jogada no chão e vegetaisinertes sendo torturados pela solidão mas não tive forças, nem mesmo vontade, de protestar.

O sangue das paredes parecia-me cada vez mais compreensível: afinal, quem se rebelasse, deveria ser torturado até compreender que o inconformismo não fazia parte de seus atributos. Seria um absurdo revoltar-se diante de tantos bens; diante do próprio Deus que tudo formara segundo sua sabedoria!

Meu interlocutor tinha um aspecto sombrio. Confesso jamais ter visto o seu rosto. Conversava durante longas horas com outros doentes em minha presença, para que me acostumasse com o método. As vezes, chamava alguns ajudantes que espancavam duramente algum rebelde. Em seguida, aliviava-lhe a dor com compressas, enquanto, carinhosamente, dizia da impropriedade de se discordar dos métodos ali usados, que visavam "unicamente ao seu bem".

Era uma nova oportunidade que nos davam e desta vez as coisas deveriam sair de acordo. Havia gente brincando com cubos e urinando nas calças. Percebi que, por algum motivo, o processo envolvia um retrocesso à infância para que se tirassem todos os vícios adquiridos.

Minha cabeça estava menos confusa mas nào conseguia ter certeza quanto à natureza exata de tudo porque passava. Lembrei-me das casas de loucos de que ouvira falar mas não eram exatamente daquela forma. Sempre tive uma idéia diferentes delas e, não sei por que, não me sentia num hospital comum.

As vezes lembrava dos meus primeiros momentos ali, quando, um dia, me veio aos olhos a imagem de um ser estranho com insígnias no peito. Não tinha feições nem formas; era uma ilusão horrenda, fruto deteriorado de uma realidade, não menos trágica, que se havia misturado às minhas fantasias. Imaginei, pela primeira vez, que aquilo pudesse ser uma prisão e que, na verdade, meus tutores não fossem senão os representantes de alguma classe dominante.

Não sei há quanto tempo estava ali mas sei que um dia vivera em algum lugar onde o exército tomara o poder. Lembrei de minha infância e do quanto admirava as paradas militares repletas de homens importantes e cheios de medalhas. Eram homens de faces veladas por detrás de óculos escuros e quepes enterrados.

Um pesadelo me vinha constantemente nas noites de então: sonhava com a possibilidade de ser um deles; encantava-me a idéia de mandar e de dominar porém, ao mesmo tempo, me causava medo o fato de ter que esconder meus olhos e meu rosto. Sempre me via com aquelas roupas belíssimas mas, no final, chegavam meus pais e irmãos e não olhavam para mim; corria atrás deles mas não me reconheciam; gritava para que me ouvissem, mas minha voz era abafada pelo som dos tambores e da marcha; queria tirar os óculos mas já não podia. Meu rosto se havia transformado e todas as feições se haviam fundido num só corpo sem forma. Meus olhos não viam senão uma parcela das coisas e meus ouvidos só podiam ouvir sons especiais. Acordava desesperado, jurando a mim mesmo que jamais seria um deles. A beleza das aparências não haveria de me seduzir nem mesmo me levaria a limitar meus sentidos e minhas feições.

Havia outro pesadelo freqüente em minha infância. Via com encantamento os padres vestidos de santos. Achava tudo aquilo tão lindo. Julgava estarem eles tão perto de Deus. De repente, via todos eles famintos, com caras de bichos medonhos, devorando o corpo do Cristo morto. Via-os tomando seu sangue e exultando com o sabor de sua carne. Corria desesperadamente para impedí-los mas retrucavam dizendo que aquela era a comunhão dos elementos. Nunca pude entender o sacrifício do justo nem a omissão dos apóstolos. Para mim, eram sempre os mesmos escolhidos, que, com seu orgulho e pretensão, devoravam o sentido perdido.

Jamais vi se preocuparem com outra coisa que não fossem as estúpidas normas de conduta que haveriam de ditar nossas vidas. Faziam reuniões sob pretensa inspiração divina, nelas se odiavam e usavam de todos os recursos humanos para alcançar um fim de proveito e de promoção pessoal.

fecho os olhos e vejo a História; vejo seus semelhantes vendendo perdão; vejo outros queimando sábios e santos; vejo um Cristo que chora ao ver sua Igreja consumida pelo orgulho e pelas misérias humanas. Suas lágrimas caem e semeiam flores no campo; são belas e haveriam de suavizar a imagem do mundo mas morrem, pisoteadas, sob os pés dos soldados que marcham todas as manhãs.

 

Minhas fantasias eram belas; não destruíam nem subjugavam; em meus sonhos não havia desigualdade; não havia julgadores nem julgados.

Do tempo, tirei a lição máxima de que só o silêncio me haveria de contemplar com um pouco de paz. Fechei meus lábios e construí um mundo interior para mim. Em meus delírios busquei constantemente a verdade. Usei drogas; usei todos os meios para encontrar algum sentido em tudo o que estava à minha volta mas não encontrei senão um paradoxo entre o bem e o mal e uma dicotomia infernal a serviço da perversão humana.

Tive por essa época a primeira convulsão. Lembro-me de que todos se preocuparam muito ao me ver estendido no chão, a me agitar e a me contorcer; saía um líquido estranho de minha boca, como de um cálice que repudiava. Bati a cabeça, esperneei, evacuei e urinei até que todo meu corpo estivesse purificado destesresíduos do tempo; depois, veio um cansaço profundo e não sei o que se passou então.

Minha vida se transformou: senti que havia algo em mim superior ao que os outros podiam permitir ou não; algo que haveria de indignar os sábios e desafiar sua ignorante e frágil pretensão de saber.

Ouvi palavras estúpidas que nada explicaram. Ouvi termos de uma parafernália técnica mas não foram suficientes para se sobrepor ao meu corpo em agitação.

meus pais foram carinhosos e me atenderam em minha doença. Não me faltou um instante de cuidado e jamais deixaram de me trazer, nas horas certas, o remédio que se tornaria minha comunhão diária com a sanidade. Às vezes deixava de tomá-lo e esperava, com prazer, até que fosse completamente dominado pelos tremores. Havia em mim um sentido de identificação com aquele estado, pois minhas convulsões brotavam de um desejo profundo e incontrolável de minha essência, enquanto todas as outras possessões eram externas e não guardavam assim a menor relação com minha estrutura interior.

Meus movimentos se harmonizavam quando estava sob o domínio de medicamentos; eram, então, suaves e contidos, ensinados e reprimidos, como convinha à minha educação e posição social.

Adorava ver a movimentação desordenada e os olhares apavorados, quando meu corpo, timidamente, começava a anunciar o mal próximo. O pânico tomava conta de todos e o medo diante do imprevisível fazia com que experimentassem uma terrível angústia. A paz só se restabeleceria quando meu comportamento voltasse a obedecer às leis conhecidas.

Minhas alucinações foram ganhando complexidade: via meus membros se desprendendo de meu corpo e dançando à minha frente num ritmo frenético; via bichos de complexidade encantadora roçando-me a pele e sugando-me o sangue; algumas vezes retiravam-no completamente e o espalhavam ao meu redor; minha cabeça se subtraía de meu corpo e era esmagada por um exército de gigantes que marchavam ao som de trombetas; via as leis do firmamento e as desafiava; olhava atráves das coisas e podia ver a cor das notas musicais que se arranjavam num espaço infinito diante de mim.

Somente meu corpo e meu medo ainda me podiam limitar. Meu espírito desafiou todas as leis do cosmos e se rebelou contra todas as evidências do impossível. Via como era belo não ter freios para o pensamento, nem censuras para a vontade; violei em sonhos todos os mundos que me haviam sido proibidos e fiz da repressão e do pecado um parâmetro e um limite para poder transpor a cada instante.

Depois do êxtase vinha um torpor brutal: era como se tudo tivesse apagado. Minha ilusão levava consigo a capacidade de ver as coisas como eram e, aos poucos, voltava à triste condição de só enxergar o que os olhos podiam ver. Entristecia-me e chorava baixo para que não me ouvissem. Não queria que ninguém descobrisse os limites do meu sonho nem as possibilidades da minha imaginação, para que não as roubassem ou condenassem. Este era meu segredo bendito, meu instante de comunhão com um deus que não vestira o manto de nossa moral e para quem a divindade só podia significar liberdade.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

II

 

 

"Aucune morale, ni aucun effort ne sont a

priori justifiables devant les sanglantes ma-

thématiques qui ordonnent notre condicion".

CAMUS

 

 

Minhas entrevistas começariam dali a alguns dias. Um homem que ainda não tinhavisto procurou-me e disse que o período de adaptação já havia passado. Perguntei que tipo de entrevistas seriam e qual seria o processo pelo qual deveria passar. Só me disse que esperasse, nada mais.

 

A sala era grande. Não havia janelas e num canto estavam uma mesa e duas pequenas cadeiras. A luz de uma lâmpada incidia diretamente nos olhos do entrevistado. Nas paredes havia quadros de figuras conhecidas; pude reconhecer, entre elas, alguns dos grandes déspotas da História. Não compreendi o significado: pacientes ou ídolos? Não importava.

A porta se abriu e por ela entrou um homem vestindo um uniforme cáqui e um avental branco por cima. Não me disse seu nome; não me perguntou o meu.

Era educado e pediu que me sentasse. Disse ter sido escolhido para ser meu médico. Perguntei-lhe o que tinha acontecido. Respondeu que tinha sido levado para a clínica durante um ataque e que se tinham passado meses até que fosse possível conversar comigo. Afirmou que me encontrava em estado catatônico e que isto os tinha obrigado a realizar algumas sessões de eletro-choque. Como não respondesse bem a isto, nem a outros tratamentos, tinham sido obrigados a realizar uma pequena intervenção em meu cérebro, tirando parte do mesmo. Perguntei-lhe da real premência da intervenção e se isto não acarretaria dano permanente às minhas funções. Tomou um pequeno livro, explicando-me, em linguagem pouco compreensível, que minhas ligações nervosas tinham estado num estado de hiperatividade e que isto se devia a uma descarga descontrolada de mediadores químicos. Como resultado, sofria alucinações espasmos freqüentes. Perguntou-me se não tinha visões estranhas durante minhas convulsões. Fingi não ter ouvido e o deixei prosseguir. Falou durante muito tempo, como que se justificando por me ter destruído grande parte das funções nervosas. Aliviou-me quando disse que eu não sentiria mais dor. Perguntei-lhe por que; respondeu-me que tinham sido destruídos os pontos de percepção dolorosa em meu córtex cerebral. Disse que a dor tinha um efeito deletério sobre a razão, funcionando como um dos grandes veiculadores de pertubações de esfera psíquica!

Continuamos a conversar por algum tempo. Consultava constantemente uma pasta e depois me observava, como se procurasse complementar suas informações.

Quando acabou a sessão, pediu que não me preocupasse, pois todas as impressões que se tinham apagado de meu cérebro seriam regravadas. Saiu sem dizer mais nada.

Fui levado para um lugar diferente. Era um cômodo bastante confortável, de janelas amplas que davam para uma linda floresta e, de início, não percebi que estava totalmente cercada por um imenso muro cinza.

Deitei-me na cama. Já era tarde e o sol começava ase pôr. Pela primeira vez, desde que chegara àquele lugar, senti novamente a noção de tempo. Podia ver os dias e as noites, e contemplava as horas que conferiam movimento às coisas. Via as folhas caindo e obedecendo a leis supremas de movimento e de subordinação ao tempo. Não havia relógios, mas não eram necessários, pois a simples observação das coisas me trazia novamente a noção de que os instantes se sucediam e se esgotavam. Percebi novamente que os segundos se passavam e, no entanto, deixavam em mim um rasgo de movimento e de impressões que, reunidas, formariam a minha experiência.

Olhava pela janela, quando me veio a primeira reação amarga. Não havia muito sentido em meus pensamentos; pareciam envoltos numa névoa de vazio e de ausência de palavras. Não conseguia estabelecer o exato vínculo entre minha vontade e os fatos nem conseguia justificar o por quê daquele sabor acre que me molhava os lábios.

Tinha me roubado a capacidade de formular juízos lógicos mas não tinham podido roubar a própria sensação que me invadia.

Bati na porta e veio alguém. Pedi papel e caneta para que pudesse, como antigamente, tentar ordenar meus pensamentos, escrevendo. Trouxeram um bloco de folhas amarelas e uma velha caneta tinteiro.

Sentei-me e tentei escrever. Não me vinha nada à cabeça, e quanto mais me concentrava, mais difícil se tornava, e mais um sentimento de impotência tomava conta de mim. Meu ódio se multiplicava na minha incapacidade de explicá-lo. Passei muito tempo naquela posiçào de estupor diante do papel vazio, e cada segundo que passava fazia com que me sentisse mais angustiado pela ausência de palavras. aquilo me fez lembrar de quando escrevia e daquele homem que me observa com um sorriso irônico. Mas as coisas agora eram diferentes: naquele tempo, minha palavra podia ser tola mas existia e era minha criação. Eu conseguia vencer o esquecimento e a massificação a cada vez que apertava a tecla da máquina. Não importava muito o que escrevesse mas, sim, o fato de desafiar as leis de uma inércia útil aos sistemas, que zombavam de mim e se alegravam quando parava. Eu era livre, então, para criar e compor o meu mundo; eu era livre para tentar gravar minha experiência, e isso bastava.

Subitamente as coisas se tornaram claras; percebi que a palavra "experiência" era a chave do que buscava. Sim, era isso que me tinham roubado: as impressões gravadas no decorrer de múltiplos instantes e a alegria de ter sido o espectador de uma única combinação possível de circunstâncias. Minha experiência não poderia ser regravada, pois os elementos não mais se arranjariam no tempo e no espaço, de forma a me contemplar novamente. Era isso que me afligia, e eu tinha encontrado a explicação.

Comecei a escrever com uma incrível rapidez. As palavras se confundiam. Não me lembrava, muitas vezes, da ortografia de algumas delas, e a pontuação, eu a olvidava propositadamente.

Passei horas naquela espécie de transe. Estava esgotado quando parei pela primeira vez. Pensei em reler o que escrevera, mas não foi possível: os sinais impressos no papel eram ininteligíveis. Virei rapidamente as folhas e não encontrei senão rabiscos. As vezes havia palavras desconexas, soltas e sem sentido; pude ler "experiência" escrita com caligrafia torta e infantil. Não entendi mais nada do que escrevera.

Debrucei-me sobre o papel e chorei. Lá fora já era noite. Ouvi passos; a porta se abriu; depositaram uma bandeja para que pudesse comer algo. Depois, vieram outros homens vestidos de branco. As mesmas mãos de outrora me apertaram; senti a gélida picada e aquela substância penetrando em mim. As luzes se apagaram, e naquela noite não houve sonhos, nem fantasmas, nem alucinações.

Fui acordado pelos primeiros raios de sol que entravam pela janela. Levantei-me e corri para a escrivaninha. As folhas escritas não estavam mais ali, tendo restado apenas as que deixara em branco. Olhei no espelho: minha face estava pálida e os olhos inchados. Uma sensação de horror invadiu meu corpo quando vi minha cabeça raspada e a enorme cicatriz que a cortava em duas metades. Por um instante, pensei ver meu cérebro escorrendo por entre os lábios do corte, e coloquei as mãos para contê-lo.

Tirei a roupa e me assustei com a quantidade de manchas espalhadas pelo corpo. Havia hematomas no peito e também nas pernas. Nos braços, marcas profundas mostravam que devia ter ficado muito tempo amarrado. Não quis mais procurar sinais de sofrimento em minha pele, pois já bastava o terror que me invadia. Tive medo. Cada vez mais, aquilo tudo me parecia impossível, e me convencia de que só podia ser fruto de um desses pesadelos épicos que nos chegam, tão dificilmente, pelo relato de uns poucos que a eles sobrevivem. Pensei se aquilo realmente era um hospital, uma prisão ou até mesmo um campo de concentração. Nada fez sentido, porém.

 

 

Naquela manhã, meu entrevistador seria outro. Foi rapidamente ao assunto, dizendo que estava ali junto a uma equipe designada para cuidar de meu caso. Passada a primeira fase, viria agora a fase de "reimpressão de experiência". Disse-me que tudo seria feito com o maior rigor, e que, uma vez terminado, estaria novamente apto a voltar à sociedade.

Passou a fazer perguntas a respeito do meu passado, e a cada vez que respondia algo, consultava a pasta que já vira nas mãos do outro. Muitas vezes assentia com os olhos, outras vezes, porém, tornava a fazer a pergunta, como que esperando que a correção viesse e confirmasse os dados que tinha à mão.

Perguntou-me se tinha tido contato com grupos políticos e quais eram minhas posições ideológicas. respondi que não estava entendendo o por quê daquela pergunta e contive uma indagação: se realmente meu mal era somente orgânico ou se havia algum tipo de doença social misturada!

O homem limitou-se a levantar os olhos, repetindo que sabiam qual a melhor forma de tratamento para meu caso. Disse que, se eu não colaborasse, dificultaria as coisas, colocando em risco a própria possibilidade de vir a sair dali. Percebi nesse instante que era prisioneiro de alguém, que não imaginava, e que realmente havia um risco de permanecer ali para sempre.

Passei a responder à pergunta formulada:

"Lá pelos vinte anos, decidi entrar para o partido comunista. Tinha então uma série de idéias quanto à reformulação da sociedade. Acreditava que um estado centralizado, representante legítimo dos interesses do povo, pudesse governar segundo uma norma justa de igualdade.

Na verdade, meus sentimentos foram os principais fatores que pesaram na decisão. Havia em mim, então, um sentimento de revolta profunda perante a desigualdade. Víamos gente morrer de fome pelas ruas. Víamos crianças implorando por migalhas de pão que caiam de nossas mesas.

Meu pai era fazendeiro rico, dono de terras no interior do estado. Viajava com ele, ajudando-o a cuidar das fazendas. Os empregados viviam num estado miserável e, no entanto, não reclamavam nada para si. Havia entre eles uma opinião - em grande parte influenciada pelo pároco da região - de que o senhor da terra era um homem muito triste, que vivia preocupado ‘com o que haveria de fazer para alcançar o reino dos céus, que estava reservado inteiramente aos pobres e oprimidos!’

Houve vezes em que perguntei a meu pai por que não pagava melhor os empregados, ou não lhes dava melhores condições de habitação. respondia, calmamente, que não podia fazê-lo, pois isto aumentaria o preço final dos produtos, perdendo, assim, a competitividade no mercado. Não tinha palavras para discutir com ele e, muitas vezes, sua atitude de conformismo diante da miséria mais me pareceu sábia que omissa.

Certa vez, chegando a uma de nossas fazendas, recebemos a notícia de que o padre tinha sido escolhido para um importante cargo na capital. Logo veio outro para substituí-lo. Era moço e de feições agudas. As coisas começaram a mudar desde que chegou: os empregados se tornaram insolentes e reivindicadores de melhorias; houve até uma greve quando nào viram aceito seu pedido de escolas para os filhos. A situação piorava e meu pai começou a ficar preocupado. Dizia que o mundo estava invadido por idéias absurdas e que ainda haveriam de querer dividir as terras. Não tardou muito, o líder deles nos procurou dizendo que queriam uma parte das fazendas, para que nelas pudessem plantar, colher e também participar nas vendas. Papai não deu atenção, dizendo que chamaria a polícia, se tentassem dividir qualquer coisa por ali. Gritou que a propriedade era dele e que havia leis que a tornavam legítima.

Foi um sábado de manhã: os empregados levantaram bandeiras e começaram a demarcar a terra de acordo com o tempo em que trabalhavam ali e com o número de integrantes de cada família. Veio a polícia, mas eles reagiram. Vi gente morrer sem conseguir defender-se; vi crianças sendo espancadas, agarradas à cintura das mães. Foi uma guerra. Alguns fugiram. No final da tarde, veio gente da cidade para recolher os corpos estendidos pelo campo. A noite, não sabemos como, alguns deles voltaram e tocaram fogo em tudo. Saímos correndo, deixando a casa em chamas. Nossa fazenda acabou naquela noite. Tínhamos outras; foram tomadas providências para que aquilo não se repetisse.

Não tinha então muita noção de sistemas políticos ou de conveniências econômicas. Não me chegavam a seduzir os argumentos de produtividade e de iniciativa privada, quando me lembrava daquelas poucas crianças mortas em nossa terra.

O partido era clandestino. Os primeiros dias foram de encantamento. procurei ler tudo que pude a respeito. Aos poucos, atribuiram-me funções teóricas: escrevia panfletos, justificava posições e até fiz um comentário do Manifesto.

Um dia, houve um ato terrorista; explodiram um banco: cinco pessoas morreram, e entre elas estava uma criança. Lembrei-me, imediatamente, daquela criatura estendida no campo de nossa fazenda.

Comecei a criticar atitudes. Questionava métodos, condenando qualquer forma de censura intelectual. Fui colocado à margem, até que me desliguei definitivamente."

O homem me olhava atentamente. Perguntou-me qual tinha sido, entào, a linha que segui.

Respondi-lhe que continuara a escrever o que pensava, como poderia ver em alguns artigos que publicara ao longo dos últimos anos. Condenava, sistematicamente, todos os regimes extremistas que limitassem a capacidade individual e a liberdade de expressão, para que se pudessem manter.

Fui preso durante o golpe militar. Sempre condenei frontalmente qualquer ingerência de minorias no governo, que deveria ser uma representação legítima e honesta do povo. nunca escondi minhas idéias socialistas.

Prossegui, ainda por algum tempo, falando, mas meu interlocutor já não parecia tão interessado. A entrevista acabou dali a pouco.

 

Não sei quanto tempo havia passado naquele lugar. Percebi que, à medida que os dias se passavam, recobrava minha memória e meu juízo das coisas. Sentia que não me tinham conseguido arrancar totalmente a razão, e uma sensação de ausência de freios começou a me dominar. Comecei a desconfiar se algum dia sairia dali. Queria dizer as coisas, num testamento de verdade, para que pudesse levar comigo alguma forma de paz e não de comunhão com o medo.

Minhas entrevistas eram longas; parecia deixá-los irritados, cada vez que recordava de algo do passado ou emitia uma idéia pessoal a respeito de uma indagação ou situação proposta.

 

"Como era o relacionamento de seus pais?". Com esta frase começou a sessão daquela manhã. Era o homem de avental branco que me perguntava; por trás do avental viam-se o macacão e as botas.

"Meu pai - respondi - era homem de princípios claros e firme. Acreditava numa ordem suprema das coisas; numa obrigação de fazer o bem, para que tivesse o que apresentar no dia da prestação de contas. Nunca se sensibilizou profundamente com os problemas dos empregados. Dava-lhes algo, de vez em quando, como que para sossegar sua consciência. Nem a matança daquele sábado foi capaz de fazê-lo examinar seus princípios de ordem e de justiça. Tinha verdadeiro pavor do comunismo, e sempre achou que o golpe militar fora uma contingência. Era democrata, enquanto a democracia protegesse seus interesses; era extremista, enquanto a ditadura mantivesse seus bens.

Temia a infiltração de idéias subversivas, atribuindo-lhes constantemente o moto destruidor da família e da sociedade.

minha mãe jamais o amou. Não sei nem se gostava dele. Casaram-se num dia qualquer do passado, que insistiam em comemorar todos os anos com festas riquíssimas. O resto do ano, mal se olhavam. Muitas vezes a vi trazer amigos à casa quando meu pai viajava; era pequeno e não entendia o que faziam. Quando fiquei mais velho, passei a viajar com ele e não a vi com mais ninguém.

Tinha treze anos. Meu pai me levou consigo, uma noite, quando saiu da fazenda para ir até a cidade. No trajeto exaltou minhas qualidades de homem, dizendo que tinha chegado a hora de iniciar minha vida íntima. Não entendi o que se passava mas me calei num misto de curiosidade e respeito."

Fiz uma pequena pausa e continuei:

"Mulheres grotescas me apertavam e me beijavam naquele ambiente medonho e cheio de sombras. Papai me deixou aos cuidados de uma delas - creio a mais velha - que, maternalmente, se pôs a me acariciar. Tive horror daquelas mãos vermelhas, de unhas cor de sangue que me tocavam; gritei desesperado. Meu pai saiu de um dos quartos, nu e embriagado, para ver o que estava acontecendo. Obrigaram-me a tirar a roupa, e loucamente se puseram todas a me agradar. Não sei o que aconteceu depois. Só guardo a lembrança horrenda daquelas mãos a me afagar o corpo e de um sussurrar coisas que, outrora, me tinham dito ser pecado.

Estranhamente meus pais viveram juntos a vida toda. Fizeram do tempo a coroação de um relacionamento hipócrita e cheio de farsas. Jamais entendi por que não se separaram. Acho que as aparências foram mais importantes para ambos e, em todo o caso, preservou-se a família. Não recaiu sobre nenhum deles o pecado da separação, e as bodas foram pessoalmente abençoadas pelo cardeal acerbispo; houve festa e até uma missa especial. Todos foram obrigados a comungar; eu cuspi a hóstia e vomitei o cálice; pensaram que estivesse doente e chamaram um médico. Acho que estava mesmo; acho que tinha nascido doente..."

 

 

Aos poucos, foi voltando minha antiga vontade de escrever. As folhas já não permaneciam tanto tempo em branco à minha frente; escrevia todo o tempo. Os papéis eram retirados do quarto após serem escritos, voltando algum tempo depois - acostumei-me também com este ritual.

Estava conformado com as regras do lugar: respondia às perguntas e me davam de comer; davam-me papel e apenas me tiravam os escritos por algum tempo. Minhas convulsões tinham acabado e meus sonhos também. Não era mais, nem menos, feliz do que antes mas sentia a falta da antiga fantasia. Tentava recriar em minha mente aquele mundo de criaturas que animaram meu passado. Procurava ver através das coisas e já não podia. Não conseguia vencer minha própria incredulidade e o juízo de real e de imaginário começou a assumir importância para mim naqueles dias.

Nunca me disseram o mês nem o ano em que estávamos; mas isso não importava: só queria de volta meus sonhos e minhas alucinações. Minha vontade era óbvia e medida, e não me levava senão onde meus instintos primários a conduzissem. Não via mulheres por ali; tinha desejos e pedia que me aliviassem mas não davam importância ao pedido.

Houve uma noite em que comecei a me acariciar. Experimentei uma sensação de prazer, que havia muito tempo não sentia. Minhas mãos correram suavemente por sobre o corpo cansado; evoquei, pela primeira vez, o gozo de uma realidade esquecida; houve êxtase e dele surgiram novamente pensamentos coloridos. Fui interrompido pelo abrir brusco da porta: entraram figuras monstruosas e me espancaram; voltei a tomar choques. Perdi a consciência e só vi, à minha volta, aquela sala branca repleta de manchas vermelhas nas paredes; vi carrascos vestidos de negro a me açoitar, maldizendo o dia em que nascera; depois vieram as trevas e nelas não encontrei senão sombras. Durante muito tempo não houve mais luz; nem pão; nem papel.

Aos poucos, no entanto, voltavam-me os delírios: via bichos falando e vestindo roupas humanas; via novamente sapos de batina e víboras fardadas; via pombas brancas enforcadas e muitos animais mortos. Havia muito sangue e, de repente, num instante supremo, meu corpo voltou a tremer. As contrações se tornaram cada vez mais fortes e a força de meus músculos me arremessou contra as paredes. A sensação de dor, somaram-se a de gozo e a de liberdade; o movimento nascia de dentro de mim e ninguém podia detê-lo.

 

 

As folhas de outono caiam à minha frente. Havia uma lei que deveria regê-las. As aves migravam à procura de locais apropriados para colocar seu ovos e criar seus filhos. Animais morriam em altares erguidos a Deus. Seu sangue haveria de purificar o pecado dos ímpios. Seres humanos eram oferecidos a Deus, numa vã tentativa de se prestar a ele um culto de vida e, nutrindo-o, não permitir que se apagasse seu princípio criador. Flores de rara beleza morriam sob os pés dos soldados em marcha rumo ao nada; nem as mortes de tantos companheiros puderam apagar o ódio de suas vidas; nem a imolação do justo e do inocente foi capaz de justificar o fim de tudo aquilo. Jamais os eventos passados foram suficientes para servir de modelo e de advertência para procedimentos futuros. Estávamos predestinados à destruição, e assim se faria; não apareceria mais ninguém que exortasse a liberdade de criar e de se corrigir o que saísse errado. Nada seria novo num mundo previamente concebido e de verdades indiscutíveis.

As folhas de outono caiam segundo uma lei do universo - haveríamos de nos destruir, segundo uma mesma lei diabólica e perversa; ela haveria de justificar atos ilícitos e até mesmo massacres, e esta era a única verdade que deveríamos aprender.

Aqueles pensamentos tomaram conta de mim e nem sequer percebi que meu corpo se chocava contra a parede, com cada vez maior violência. De repente, minha cabeça foi de encontro a algo e as imagens cessaram.

 

 

Voltei, dali a algum tempo, ao meu quarto. Estava tudo mudado, lembrando muito algum lugar familiar. Havia uma máquina de escrever instalada em frente à janela; tudo estava em perfeita ordem, esperando que quebrasse o silêncio e a solidão do cômodo e me pusesse novamente a dispor as coisas, agrupando os tons de acordo com minha vontade.

Sentei à frente da máquina. Hesitei e, depois de alguns instantes, toquei suavimente a primeira tecla. O som me encantou; foi como se tivesse voltado, por um só instante, a ser livre. Pensei um pouco sobre o que escreveria mas nada me veio. Passei muito tempo a colocar letras desordenadas no papel; não importava o que dissessem mas, tão somente, o fato de que me diziam algo; havia naquilo uma mensagem absurda; eu a percebi com meus sentidos e, tanto mais barulho faziam as letras ao serem impressas no papel, mais tomava consciência das coisas. Lembrei de uma aula do ginásio, quando o professor de filosofia nos fez decorar, em latim, a frase: "NIHIL EST IN INTELLECTU QUOD PRIUS NON FUERIT IN SENSU". Meus sentidos nunca foram capazes de perceber aquilo! Mas era estranho, pois o barulho fazia com que pulsasse algo dentro de mim; havia ritmos que entravam em harmonia, fazendo com que, durante uns poucos instantes, eu passasse a assumir uma outra identidade, livre e em paz. Olhei pela janela e vi as àrvores me contemplando em sua essência diversa; nossas formas quase desapareceram naquele instante em que tudo parecia ter sido feito de um mesmo elemento. Senti calafrios que percorriam meu corpo inteiro, indo parar em algum ponto distante; senti a dor de um parto invadir meu ser; foi a gênese de algo, e aquela dor trouxe consigo a sensação de uma paz adquirida e conquistada.

Olhei mais uma vez pela janela, sem parar de escrever um só instante, e vi um homem que me contemplava. Estava absolutamente imóvel, e sua paz me pertubou; mirava-me, tranqüila e familiarmente, como se o fizesse já há séculos; sorria ironicamente ao me ver ali; sua feição de certeza, por instantes, sugeriu que jamais haveria de me abandonar.

Parei e percebi que as idéias agora me vinham concatenadas e precisas.

"A liberdade que sinto neste instante não se assemelha a nada mais. Mesmo prisioneiro, não me sinto trancado; meu espírito ainda é capaz de voar. Não hão de me confinar pois, ainda que me prendam o corpo, não serão capazes de aprisionar minha vontade. A cada vez que faço uso de minhas funções psíquicas, rompo com as limitações de um corpo contido e amarrado; meu espírito ainda é capaz de sair de minha superfície limitada e de vagar livremente em terrenos jamais pisados, pois não fez concessões às leis que o quiseram enquadrar. Não é contido, pois não se escondeu de sua essência de liberdade nem procurou, através de falsos valores morais, tolher a si mesmo, em busca de um momento de poder".

 

Sentia que tudo aquilo era uma farsa, como tantas outras com que somos obrigados a conviver. Percebia que o que me haveria de conter não seriam paredes, nem leis e nem mesmo a força das ditaduras mas, sim, minha própria ideologia ao aceitá-las passivamente. Não haveria de ser eu um prisioneiro em liberdade aparente que vendera o espírito livre por um punhado de regras que não objetivavam senão sua dominação.

 

"A moral - escrevia - não deve ser o simples produto de julgamentos prévios nem a somatória estanque de normas fixas de comportamento. Ao se conferir a ela o papel de indicador apriorístico de pensamentos e condutas, tira-se da experiência seu conteúdo mais notável, que é o de suscitar juízos a partir de sua existência. Não podemos deixar que a possibilidade de decidir e de avaliar realidades seja trocada por um mero conjunto de verdades pretensamente aceitas como certas.

É importante lembrar que estes deveres, ditados pelo grupo como parâmetros ideais de comportamento, não são universalmente aceitos, variando profundamente dentro dos próprios limites de uma dada cultura. Muitas vezes, o comportamento desenquilibrado de um indivíduo em um dado local encontra, em outro, o perfil da mais perfeita normalidade; assim, o papel do meio, como instrumento de assimilação e de julgamento de situações acaba por constituir a principal fonte de aceitação, ou não, de uma dada conduta ou idéia.

A variação de verdades indiscutíveis e das concepções de pecado nos diversos momentos da História, nos trazem um pouco de sua essência dúbia e discutível. Sob a égide de verdades - pretensamente inspiradas e atribuídas a Deus - muito mal se fez; foram estandarte de de guerras de libertação, escondendo assim os significados econômicos que por elas reclamavam para lhes servir de justificativa moral. Verdades que não foram capazes de resistir ao peso das evidências contrárias e que queimaram assim aqueles que as quiseram derrubar.

As fogueiras da Inquisição iluminaram a fragilidade das afirmações absolutas e deveriam servir de advertência para aqueles que, ainda hoje, insistem em ditar postulados e dogmas válidos para todos.

Vimos nossa civilização pregando em nome de Cristo morto por ela, catequizando índios e levando, junto com suas palavras, também a dominação e seus valores corrompidos.

Não: a moral não há de ser a simples possibilidade de agrupamento ideal das regras, aceita pela média estatística dos componentes de um dado grupo; não há de ser um conjunto mutável de normas e de regimentos acerca das relações do homem com o tempo; mas, muito mais do que isso, deve ser uma norma em si, contendo, no absoluto de sua unidade, a força que só se esfacela ao se tentar atingir o todo pela infinita soma das partes; deve ser um sentido interior de constante busca da verdade, de procura honesta do conhecimento e da experiência, sem se esquecer, jamais, do carater circunstancial dos eventos e do perigo de reduções num mundo de múltiplos aspectos.

Não concordo com que a vontade traga em si um significado de destruição e que, juntamente com o prazer, deva ser par constantemente vigiado e censurado, para que não nos possa levar ao mal e à corrupção.

O pecado não existe senão na concepção daqueles que insistem em proferir preceitos de boa conduta, taxando o que daquilo difira de heresia e perversão.

Onde está nossa capacidade de julgar e de escolher verdades bastantes para nós? Não acredito num Deus que nos guie de acordo com seu desejo transcendente e superior nem mesmo posso crer que os ‘fios invisíveis’ de uma sociedade corrupta e consumida pelo ódio e pela desigualdade ‘nos possam levar senão à despersonalização e à destruição’.

Onde estão a moral e o bem que permitem que o semelhante morra pelas ruas? Será apenas a inexorabilidade das disposições do mundo, ou será que também os interesses e o egoísmo contribuem para formar uma ética que aceite estes absurdos? Onde está a mora que fecha interessadamente os olhos da justiça diante dos poderosos? Qual o sentido de uma ordenação transcendente da sociedade, senão o de se relegarem os conjuntos de normas a planos cada vez mais inexpugnáveis e menos possíveis de críticar? Não seria Deus um instrumento útil, a endossar verdades convenientes a determinados grupos? Não vejo outro sentido nesta disposição das coisas que não a manutenção e o aprimoramento de estados vigentes.

Ora, os sistemas repousam sobre um sólido código de leis, que, no entanto, são frontalmente violadas, tão logo se coloque em risco a estabilidade dos mesmos. Punem-se os crimes, fazendo-se uso deles, porém , quando assim o convier. Não se hesita em torturar, queimar e até mesmo trancar em hospitais todo aquele que carregue consigo uma crítica que exceda a capacidade de assimilação da estrutura ameaçada."

Virei para trás e percebi que muito tempo devia ter se passado. Havia um espelho ali e pude ver meu cabelo longo, que já escondia por completo a cicatriz.

 

"Os sistemas não são senão uma falsa concepção de representação imaterial e impessoal do povo. Minorias detêm os instrumentos vitais de poder e deles fazem uso para consegui-lo e mantê-lo. Não são eles mais do que a simples representação dos interesses e privilégios destes grupos reduzidos; grupos estes que dominam, a um só tempo, os meios de comunicação, de repressão, de educação e até mesmo de ‘salvação’. Digo isto pois a igreja fez, e em muitos casos continua fazendo, o papel de uma unidade a mais nestes bloco de serviços e meios comprometidos com a desinformação das massas e com a manutenção de seus olhos vendados.

A perpetuação de um estado de privilégios, ou a ascensão para obtê-lo, constitui procedimentos quase que instintivo a todos; aquele que o consegue se encarrega de valorizar as idéias e crenças que justifiquem aquela disposição das estruturas e que as mantenham indefinidamente.

A exploração e a miséria são desculpadas pela promessa de um novo mundo reservado aos pobres. As críticas são eficientemente barradas e abortadas por um rígido sistema de censura, onde os meios de comunicação exercem função preponderante; assim, os mecanismos de vigilância permeiam apenas as concepções que sejam possíveis de assimilação dentro dos limites da ideologia em questão, e que não representem sério risco à pretensa essência de verdade que criticam.

A simples troca de um grupo de pessoas no poder é uma falsa ilusão de renovação, sendo constantemente invocada como reflexo da democracia e da liberdade de escolha. Na verdade, a mudança de personagem não implica, necessariamente, alteração de uma ideologia nem do papel que desempenha. Na medida em que haja risco de mudanças estruturais, através de um grupo ou de uma simples pessoa, aí então, mesmo no seio dos regimes ditos ‘livres’, aparecem a repressão e o arbítrio.

As leis morais e as jurídicas guardam profunda identificação com as estruturas que visam a preservar e, conseqüentemente, com as ideologias que as mantêm. As justificativas que, aparentemente, precedem sua existência, bem como a avaliação de sua legitimidade, nada mais são que explicações ‘a posteriori’, que tentam encobrir a real necessidade de sua existência.

A moral não deve ser um conjunto de disposições universais acerca do comportamento e sim uma concepção e constatação individual; ao se impor a ela um caráter globalizante e ao fazer com que constitua uma regra para todo um grupo, viola-se seu valor mais essencial, que é o de ser uma possibilidade pessoal e interior de concepção do ideal. Quando se tem uma moral pessoal, fruto da real comunhão com determinados valores, dispensa-se qualquer tipo de ação policiadora e punidora do grupo, pois a própria intuição de certo - ou de preferível - dirige a conduta, condenando interiormente suas violações. A moral assume, assim, um sentido de harmonia com as concepções e com os valores, não se revestindo de um caráter de imposição social. A existência de uma moral única, que abranja a todos, traz a ela uma vinculação necessária e profunda com o julgamento coletivo que observa sua execução; adquire então um caráter diverso de uma concepção do ideal, pois obriga o indivíduo à obediência e incute nele o medo das sanções, fazendo-o esquecer-se de sua real dimensão e importância; não é mais um atributo do homem nem uma qualidade inerente à sua essência mas apenas um conjunto de disposições exteriores, que pressupõem a vida coletiva para que existam; ora, isto faz com que se perca seu significado e se adquira um simples temor diante das punições relativas às transgressões. O absurdo desta redução e falsificação do sentido moral reside no fato de que ela perde seu significado, quando não há testemunho de sua violação. Ao se conceber uma moral que mais reflete punição que harmonia pessoal, confere-se também a ela um caráter parcial e ambíguo; o julgamento aparente passa a ser vital e a possibilidade de procedimentos hipócritas se exacerba, pois os atos guardam relações com seu julgamento externo e não mais com sua gênese essencial. A moral passa a ser um valor que só aparece na medida da vida em grupo e que só representa uma realidade quando expõe sua violação ao risco de punição; não me parece ser ela apenas uma regra que se esvai, à medida que se fica só! Penso ser, tal qual a constróem, apenas um veículo requintado de censura de idéias; não mais constitui o proncipal atributo do ser, expressão de sua capacidade de medir a existência e de procurar, através da experiência, encontrar um significado para as coisas.

O caráter de quantificação e relativização que assume faz com que perca toda a sua natureza absoluta. Não quero com isso confundir o relativismo de verdades impostas, com a plenitude que se pode alcançar através de verdades experimentadas; não é possível julgar-se, previamente, as circunstâncias, nem é possível pretender dogmatizar, sem antes provar; porém, uma vez intuido o significado da experiência,seu valor e sua dimensão, e uma vez experimentado, podem, então, estabelecer-se verdades pessoais absolutas, impossíveis de relativização. É preciso usar a intuição e as experiências passadas para tentar conceber as coisas mas as previsões devem guardar sempre a relatividade como qualidade e só o momento, e o seu conhecimento, podem finalmente iluminar sua verdade.

Não nos podemos iludir com experiências e ensinamentos alheios, pois se, aparentemente, situações se repetem, certamente os sujeitos não o fazem. É na complexidade individual de cada um que me baseio para afirmar da impossibilidade de existência de fórmulas universais de conduta ideal.

A natureza parcial das leis morais bem se manifesta nas diferenças que se impõem ao julgar os procedimentos: não vejo onde o ato de furtar e matar por estado de necessidade e miséria seja mais condenável que o de falsificar declarações de renda; a essência das atitudes é a mesma, se guardadas as diferenças e os imperativos que movem os sujeitos que as realizam; não existe maior ou menor violação do certo e a variação dos critérios de gravidade é bem o reflexo do quanto relativizamos a moral, usando-se de forma conveniente.

A punição em determinadas classes sociais praticamente se reduz ao nível de situações em que a aberração seja tão grande que ameace despertar a massa adormecida e hipnotizada por crenças incutidas e coloque, assim, em risco a própria estabilidade do sistema."

 

Escrevia com calma. Olhava pela janela e lá fora só via o homem de sempre; seu rosto denotava uma certa apreensão, como se sentisse o peso do que eu dizia. Ninguém me incomodou durante dias. Quando sentia fome, procurava ali por perto e sempre encontrava uma bandeja com algo para comer. Não dormi por várias noites; vi o sol raiar e se por novamente, um sem-número de vezes. As árvores me contemplavam todo o tempo; de vez em quando, largavam uma folha, que caía suavemente, obedecendo a alguma lei; sua trajetória, porém, era diferente da das outras, numa tentativa de imprimir um toque único e pessoal ao evento; era a impossibilidade, simples e objetiva, que aqueles vegetais encontravam para vencer a limitação imposta por suas raízes, conferindo movimento às suas partes.

 

"Não vejo diferenças profundas entre os sistemas: encontramos um corpo de doutrinas que os mantém ideologicamente e justificam sua existência; representam, no entanto, o compromisso de um grupo com o poder e nisto reside o denominador comum a todos eles.

Não acredito que se possa defini-los em função da liberdade que permitem ou não; a liberdade é, ou deveria ser, absoluta e assim a concebendo não a encontramos em lugar algum. Há regimes onde a possibilidade de existência de idéias contrárias é um pouco maior, ou seja, o limite de variação dentro de uma linha ideal é mais amplo e com isso se cria uma ‘ilusão de liberdade’. A simples possibilidade de expressão irrestrita não é o indicador absoluto de ausência de repressão, pois há que se considerar também a porção que recebe as informações e as assimila; assim, muitas vezes, detendo-se os meios de comunicação, pode-se afrouxar a vigilância sobre certas correntes, visto que jamais assumirão penetração suficiente a ponto de se tornarem perigosas. A concepção de liberdade envolve, basicamente, a igual oportunidade de veiculação dos conceitos e não somente sua manifestação.

Toda ideologia de oposição que atinja um grau severo de crítica, que denuncie eficazmente a desigualdade, a exploração e os próprios limites de liberdades aparentes, e que consiga certa penetração e adesão, esta sim, será reprimida e extinta.

Invocam-se princípios hipócritas de que a liberdade deve ter limites e que dela se deve fazer uso de forma moderada e contida; todos os meios justificam o fim de manutenção eterna das disposições e são usados no expurgo de concepções contrárias. Muitas vezes, antes que se façam necessários meios mais violentos para conter novas idéias, a própria moral mediana se encarrega de rejeitá-las, rotulando-as de subversivas e trocando suas evidências incontestáveis por uma ordem aparentemente estável das coisas.

Há quem defenda ser o melhor caminho para reformar as estruturas, o da integração, num primeiro instante, nestas, através dos meios convencionais; não concordo com isto, pois só é possível fazê-lo, aceitando inicialmente o conjunto de concessões e limitações dentro do qual funcionam; ora a possibilidade de mudanças existe somente na medida dos limites inerentes ao sistema e sempre a partir dos dogmas que lhe servem de alicerce; qualquer alteração nestes preceitos e nos limites de variação de suas verdades decorrentes não é possível, sem que antes se desintegre a constituição anterior; não se podem reformar internamente estruturas cujas bases se pretenda mudar; ao fazer parte delas, o indivíduo não mais as pode destruir, sem destruir-se igualmente. Quando a reformulação atinge os pontos de referência, os dogmas e as normas fundamentais de um sistema, aí então não há outro meio senão a destruição total seguida de uma nova reestruturação, agora fundada sobre novos postulados."

 

Às vezes, parava de escrever e me perguntava onde estava; aquele mundo que se apossara da minha realidade limitava-me o corpo mas, ao mesmo tempo, propiciava-me uma nova dimensão de experiência e assim me fazia capaz de entendê-la.

Talvez soubesse que não mais sairia dali e que o que escrevesse dificilmente passaria das mãos de meus revisores diários e desconhecidos; isto, porém, tinha pouca importância perto da sensação que experimentava ao voltar a poder expressar os estados de meu espírito e os juízos de valor que suscitavam.

Desde que voltara para o quarto não vira mais ninguém; o único vigia era meu eterno companheiro atrás da janela; chegava muito antes do dia, e, à noite, mesmo sem enxergá-lo, via sempre uma luz no lugar em que costumava ficar; não sei se era ele que permanecia ali ou se era apenas um marco deixado, que o guiasse no dia seguinte.

 

"A moral não pode ser estranha à nossa individualidade. A antiga idéia que aprendera, no sentido de que a consciência nasce a partir dos sentidos, tira-nos a capacidade de abstrair um mundo sensível e externo e de, ainda assim, conservar nossa essência interior, onde a moral possa se expressar como resultado do espírito, de nossa intuição e percepção da verdade.

Pouco importam a semântica e o critério rígido dos termos, se for possível entender que somos os únicos juízes de nossas verdades e também os principais atingidos pela renúncia a uma moral interior, atributo máximo de nossa humanidade.

A sociedade nos tira a possibilidade de formular nossas próprias leis; impede-nos de descobrir verdades individuais, pois não se pode manter coeso um grupo cujos achados e as concepções sejam distintas; não se podem aplicar as leis da experimentação nem obter resultados satisfatórios, se não se fixarem as variáveis. (A moral exterior e relativa molda nossa individualidade e vontade, roubando do espírito a possibilidade de criar e escolher). Não se pode arriscar e variar os elementos, pois se perde a possibilidade de expectativa quanto ao resultado; do aleatório das resposta possíveis e da anarquia que se há de estabelecer nas leis do comportamento poderá advir algo inconveniente e incontrolável, que coloque em risco a moral vigente e a própria estabilidade do sistema. É preciso destruir as variações, prever as respostas e manter assim o ciclo que se há de repetir sempre, perpetuando indefinidamente o massacre da liberdade."

 

Lembro-me de que já era jovem quando aprendi a palavra anarquia; acho que foi na mesma época em que me ensinaram o significado de utopia; era como se andassem sempre juntas. Não sei porque me lembrei das duas naquele instante. Parei de escrever o resto do dia.

A anarquia sempre me fascinou; via nela as imensas possibilidades de diversificação que me encantavam. Achava que os governos tinham interesse na castração dos espíritos e que todo e qualquer instrumento de repressão, ou de previsão das coisas, acabava por tolher nosso infinito poder criador. Revoltava-me constantemente contra minha educação; via na família um instrumento de primeira linha, um órgão de choque inicial, que haveria de dar início a este processo de censura e direcionamento da vontade. Sempre defendi essas idéias mas não resisti ao peso das críticas que acabaram por me fazer crer que, embora falha, a sociedade deveria permanecer assim e que seria utópico querer mudá-la.

Com o tempo me convenci que não apenas minhas concepções políticas e psíquicas acerca da liberdade eram impraticáveis, como também o eram qualquer tentativa de se estar em paz junto a uma estrutura cujos princípios se condenava.

Não havia felicidade nem harmonia no seio de minha família mas, tão somente, uma pretensa estabilidade que se confundia frequentemente com amor e ordem. As pessoas acabavam por se conformar frente à ordenação dos valores e eram capazes de sacrificar qualquer princípio em troca de uma segurança ilusória.

Jamais obtive respostas convincentes para minhas perguntas mais simples nem solução para certos problemas; encontrava, frequentemente, explicações conformistas e, por vezes, irritadas, quando perguntava o por quê de certas coisas; era assim e não se devia discutí-las; ninguém as compreendia mas desde que universalmente aceitas - por pessoas que igualmente desconheciam seu significado - passavam a constituir nomas para todos.

Muitas vezes me disseram havar coisas que a razão não podia entender, mas que eram fruto histórico da experiência e da tradição. Não me convenci: ora, se a experiência era capaz de nos trazer verdades que não eram passíveis de conhecimento lógico, era preciso antes experimentar, para então se poder afirmar algo; além do mais, quem me provava que as constatações eram as mesmas a que chegaria ao enfrentar o meu tempo; afinal, éramos sujeitos diversos, eu e os outros, e aceitar passivamente concepções alheias me parecia ser crer - e não constatar - que aquilo me haveria de servir; confesso que, em matéria de crenças, preferia acreditar em mim a depositar minha vida nas mãos de uma civilização corrompida e decadente. Nunca provei aquilo a ninguém; nem a mim mesmo! Na verdade, a construção da liberdade e o seu exercício passaram a ter mais significado que sua justificação teórica. Minha atividade política se fez no campo teórico e acho que foi por isso que acabei por me desencantar com os sistemas; foi tentando procurar alguma lógica que relacionasse as idéias, ou as explicasse, que acabei por conferir ‘à anarquia de meu espírito a utópica condição de iluminado e único senhor dos meus atos’.

Nunca mais procurei explicar muito as coisas nem tentei encontrar grande relação entre os fatos. Dediquei meus dias a subverter a ordem vigente, a fazer da vontade um limite e a tirar de minha experiência o ensinamento capaz de me guiar.

Acreditava que todos que me cercavam não passavam de vermes tremendo de medo do destino; sua angústia existencial tinha como principal motivo um medo terrível da morte mas não sei se era esta a única explicação para suas essências tão frágeis; viviam constantemente entre o drama da separação das coisas aparentemente tangíveis e materiais e a possibilidade de uma dimensão absolutamente desconhecida, que insistiam em justificar e alimentar. Este pavor do tempo, e do seu compromisso inexorável para com algum tipo de chegada, fazia multidões se prostarem aos pés de nulidades e acenderem velas, num ritual sagrado, que as manteria vivas graças a um punhado de limitações de conduta!

Não acreditava no pecado; cometi uma série deles e paguei por tantos outros em que nem sequer pensara. Via-o como uma forma requintada de vigilância de costumes; afinal, nada melhor para endossar nossas estúpidas crenças, e os interesses que contêm, que o aval de um ser supremo, ponte entre a nossa frágil condição e uma nova bastante superior. Ouvi pessoas se contradizendo, ao afirmar que algo era pecado e, depois de consultar livrinhos pretos mofados, voltar cabisbaixas. Houve uma que um dia retrucou e tirou do bolso da calça um pedaço de jornal velho, onde a nota afirmava ter sido promulgada pela Igreja determinada disposição a respeito da vida dos cristãos. Ria frente a tantas bobagens e houve quem me tivesse ameaçado de excomunhão; tantas vezes ardi no fogo do inferno que me acostumei ao calor de suas brasas; tantas foram as vezes em que ouvi dizer que haveria de ser consumido por ele, que acabei por perder o terror que a afirmação inicialmente suscitara.

Muitas foram as prédicas a que assisti com meus pais, sobre o adultério; eu era como que um mediador entre os dois, quando, interessados, miravam o padre cuspindo logo à frente; ficava ali a ser o juiz supremo da hipocrisia silenciosa de ambos. Sempre me obrigavam a estender a mão para o padre no final da missa e cumprimentá-lo "pelas verdades que tinha dito para muita gente presente". Fiz o que me mandavam até o dia em que - por causa de alguma que fiz ou disse - tive de me contentar com esperá-los do lado de fora da fila: o cura se recusava a dar a mão para o diabo!

E assim os anos se passavam. Qualquer nova idéia trazia consigo a dor de um parto, tais eram as críticas que recebia mas, a cada uma delas, acendia algo dentro de mim, que me animava a romper com o mofo dos costumes passados e impostos e a assumir uma tentativa de identidade própria.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

III

 

 

"Qual é portanto a relação do espírito com ele mesmo e com a sua condição? A relação é a angústia."

KIERKEGAARD

 

"... meu Cristo é a ressurreição e não a cruz."

GLAUBER ROCHA

 

 

Devo ter passado dias entre pensamentos e palavras escritas. Depois de muito tempo, caí esgotado na cama. Havia em mim um cansaço profundo porém gozava de uma paz inigualável; a comunhão com minhas experiências e lembranças trazia-me de novo a um mundo mais real, produto único de constatações vividas e sentidas. A perspectiva de que se tivessem apagado de mim todos os vínculos com o passado me havia feito experimentar uma terrível angústia; não fora senão para isso que tinha vivido: para construir um monumento de recordações onde me pudesse ver como senhor de meu tempo, como espectador de minha vontade e único a estar presente aonde me tivesse levado. Somente meu intelecto podia trazer das lembranças, e das previsões, o elo que ligasse o passado e o futuro e fosse, assim, capaz de ultrapassar os sentidos que só conheciam o presente; não, isso não podia ser roubado de mim - o frágil e solitário instante em que deixara de ser objeto da História e da ação dos que a dominavam, para ser o único sujeito de minha própria tragédia.

 

 

Dormi por horas, ou dias, não importa. De volta à paz de minhas próprias idéias, pude novamente reencontrar o colorido de meus sonhos; eram tão desconexos quanto as primeiras letras que escrevera; os símbolos eram pouco compreensíveis mas não zombavam de mim somente porque não os podia entender; pelo contrário, nós nos encontrávamos e nos amávamos, desprezando a frágil compreensão imediata dos mesmos; eu simplesmente os saudava como parte de uma experiência definitivamente gravada em mim e que jamais haveria de se apagar.

Comunguei com a santidade daqueles símbolos. Amaldiçoei as tentativas de se impor a eles uma lógica limitada e cheia de vícios e me alegrei pelo fato de haver uma lei que os haveria de arrumar segundo a sua vontade e de trazer a mim de forma inacabada, deixando que eu lhes desse a minha aprovação e também meu amor. Era preciso entender-se que as coisas inexplicáveis também haveriam de existir dentro de nós e que a própria incapacidade de soluções imediatas lhes conferiria ainda maior beleza; não reduziria o mundo a um conjunto de valores evidentes e, sobretudo, não permitiria que a rica simbologia do inconsciente fosse traduzida numa linguagem pobre e linear. A descoberta deveria caber a cada um, ao travar contato com a mais profunda essência do ser, onde o silêncio de certas dúvidas haveria de dizer mais que qualquer ordenação lógica das coisas.

Nessa noite sonhei com crianças que morriam de fome e de sede; vi muitas morrer, pois tinham as bocas seladas; vi monstros sem face vestindo batinas, uniformes e uma série de outros paramentos superficiais; vi prostitutas sendo açoitadas por mulheres horríveis, que as amaldiçoavam dizendo palavras de ódio; essas mulheres se agradavam e se lambiam em um gozo supremo, enquanto ouviam os berros das outras estendidas no chão; vi homens açoitando homossexuais e os condenando a viver no exílio de qualquer respeitabilidade; um raio iluminou as trevas e matou todos os julgadores; um Cristo homossexual desceu dos céus e curou as feridas de todos com um bálsamo bendito; vi a Virgem tratando das prostitutas e dizendo que também ela conhecera do mesmo pecado; vi fariseus ardendo no fogo eterno, enquanto os ladrões faziam do céu sua segunda morada.

Cristo veio a mim naquela noite e me perguntou o que fazia ali; respondi ser um simples espectador das misérias humanas; choramos juntos; nossos corpos se elevaram aos céus e pude ver, do alto, onde era o inferno. Os diabos estavam espalhados por toda parte: havia muito tinham adquirido o controle de tudo.

Houve um novo dilúvio mas tudo se ergueu igual a antes. Não havia esperanças para um mundo cujos valores básicos se haviam corrompido e que acabara por subjugar o próprio bem.

No fim, houve fogo e tempestade; houve terremotos e tudo quanto era vivo desapareceu. Acordei desesperado, ao ver uma mesa onde os apóstolos devoravam ferozmente o corpo de um Cristo crucificado e morto para salvá-los; senti o gosto de sua carne na boca e durante muito tempo não o perdi; sempre que vomitava vinha um pouco de seu sangue misturado, como que num cálice que transbordava e numa nova aliança, que o mataria todos os dias.

Saí da cama assustado. Um gosto amargo me enchia a boca; fui ao banheiro e cuspi mas de nada adiantou; era como se o fel de minha essência regurgitasse. Chovia bastante lá fora; olhei pela janela e vi meu único companheiro de todas as horas a me contemplar. Naquela manhã senti uma dor de cebeça brutal, como se me ressentisse por me haver embriagado com as idéias daqueles dias.

Uma forte tontura me obrigou a deitar na cama. O ambiente rodava numa velocidade vertiginosa; em vão, tentei me levantar mas não podia reconhecer nenhum ponto de referência, em que me pudesse apoiar; comecei a sentir enjôo; uma dor estranha invadiu minhas pernas e foi subindo lentamente: parecia penetrar nas entranhas de meu ser esgotado e inerte; fui açoitado por pontadas que faziam com que me retorcesse, temendo que me perfurassem; aos poucos, todo o corpo doía, num esforço uniforme para me dizer algo.

a dor da cicatriz me fez lembrar que existia; não se podia mais vê-la mas provocava um ardor como se alguém com uma brasa traçasse uma linha em minha cabeça. Sentia-me totalmente despedaçado como se me tivessem amputado várias partes.

Não podia abrir os olhos mas as lágrimas continuavam a escorrer por baixo deles. Os músculos das pálpebras começaram a tremer lentamente; depois foram os da face; aos poucos, tremiam todos juntos como se obedecessem a um mesmo sinal; meu corpo se agitava numa espécie de possessão maldita; os movimentos fugiam do ritmo inicial e íam se tornando bruscos; era golpeado por meu próprio braço, e minhas mãos me estapeavam, punindo-me implacavelmente por alguma transgressão de que não lembrava. Um sentimento de culpa horrível me invadiu e, por instantes, temi ser vítima de um Deus enfurecido, a me condenar pelo que dissera. Não acreditava nisso mais não conseguia descrever o por quê daquele horror a me afogar o corpo. De repente, uma série de imagens desfilavam à minha frente: vi uma moça que deflorara chorando e implorando que voltasse para restituir sua honra; havia uma fila de sacerdotes a espirrar substâncias abençoadas e a agitar cruzes à minha frente, como que num rito de expulsão demoníaca; vi bichos que matara, gritando e disputando pedaços de meu corpo; ratos imensos roçaram minha pele e começaram a comer minha carne ainda viva; senti seus dentes penetrarem e, em seguida, o sangue quente escorreu pelas feridas; tentei afugentá-los mas não consegui; não tinha o menor controle de meus movimentos.

Chegou um grupo de pessoas que jamais tivera visto; colocaram-me sobre uma mesa; ouvi o barulho de uma serra que, aos poucos, se aproximava de mim; senti sua presença entre minhas pernas e soltei um grito desesperado quando chegou ao pênis. Creio que desmaiado, tamanho foi o sofrimento, mas estranhamente continuei vendo tudo acontecer. Minhas vísceras foram sendo cortadas; defendiam-se, provocando cólicas desordenadas. Vi gente dançando e gritando de alegria em volta do meu ser agonizante; ouvi gritarem que estavam matando o próprio diabo. A serra me cortou o peito; meu coração pulsava loucamente, até que foi rompido pelos dentes da máquina; fiquei coberto de sangue; engoli um pouco e engasguei. Finalmente, meu pescoço foi retalhado e depois também minha cabeça. Tentava desviar mas parecia que aquilo acompanhava meus movimentos. Minha face foi sendo separada em duas metades. Já não havia mais formas nela, nem beleza e nem sentido. Meu cérebro foi o último. Urrei de pavor quando vi os ratos voltando para devorar o que restara; roeram durante horas mas, ainda assim, continuei aparentemente íntegro, como se fosse possível viver naquela situação. Na verdade, tudo parecia continuar a existir como antes. A dor cedeu, aos poucos, ao cansaço. Eu tinha consciência de tudo que se passava à minha volta mas não conseguia reagir. Não temia mais nada e o conformismo morno acabou por habitar em mim. Meu sacrifício haveria de ser aceito; estava purificado e já não podia ver que somos deus e o diabo, o bem e o mal, um e o outro. Fora preciso me partir ao meio e me fazer conhecer a morte, para que meu sangue me ensinasse esta dualidade eterna. Se queria ser salvo, era preciso que matasse minha metade perversa e a entregasse aos animais para que a destruíssem.

Senti uma pequena fisgada e, logo em seguida, aquela gélida criatura penetrou em mim e me fez novamente voltar às trevas.

 

 

 

 

 

 

 

IV

 

 

"A ciência, contudo, deve ser constantemente advertida de que seus objetivos não são os únicos, e que a ordem de causalidade uniforme de que ela se ocupa e que, portanto, está correta ao postular, pode estar envolta numa ordem mais ampla, à qual ela não tem absolutamente direitos."

WILLIAM JAMES

 

 

O diretor da clínica respondeu à indagação de um de seus assistentes:

_ Fomos obrigados a seccionar o corpo caloso: há quem afirme que a comunicação entre os hemisférios cerebrais, em casos rebeldes ao uso de drogas, é que veicula imagens opostas, impossibilitando uma síntese harmônica frente aos estímulos antagônicos. Não vejo outra forma de acalmar o estado catatônico em que se encontrava. Acreditávamos que a lobotomia poria fim ao seu estado de agitação profunda, mas não houve resposta satisfatória.

_ Não passam, porém, de hipóteses teóricas ainda não comprovadas. O senhor não deveria ter realizado uma outra cirurgia, sem antes ouvir o parecer da comissão encarregada. Eu, particularmente, duvido um pouco dos resultados que se possam obter. Não consigo ver em que possa a comunicação dos hemisférios cerebrais, através do corpo caloso, interferir com um cérebro alterado e hiperfuncionante. acredito que bloqueadores nervosos, associados à observação e à análise, teriam surtido efeitos semelhantes e menos mutilantes, se é que se vai obter resultado pelo caminho escolhido.

_ Gostaria de lembrar ao colega que ainda sou o chefe desta equipe, e que qualquer esforço para se resolver o problema de uma forma mais "psicológica" sempre teve em mim defensor árduo. Não pude fazer outra coisa. Nossa clínica não tem condições financeiras para manter pacientes nesse estado e seu caso já é exepcional, recebendo, constantemente, atenções especiais. Há alguns anos tentamos, em vão, estabelecer contato com ele. Não obtivemos, até aqui, nenhuma resposta inteligível: só ouço grunhidos e frases perdidas. Todas as tentativas de comunicação escrita foram sem resultados; não consegue nem escrever o próprio nome e mesmo os maiores especialistas não conseguiram ver o que seus rabiscos queriam dizer. Pobre coitado, passa horas debruçado sobre o papel a gemer e a rabiscar alucinadamente. Estou convencido que que apresenta um estado de regressão instintiva e que seus atos estão totalmente isentos de racionalidade. Diria que vive numa esfera arcaica de simbologia, tendo retrocedido a uma escala inferior do comportamento animal.

_ Não posso entender como o senhor consegue ficar tão tranqüilo com este caso. Temos um grande problema nas mãos: imagine que não temos suficiente respaldo experimental para a operação que fizemos. E se alguém nos indagar sobre nossos métodos? Creio que dificilmente escaparemos de prestar esclarecimentos à comissão que vigia este tipo de situação.

_ Não se preocupe quanto a isto; não haverá qualquer tipo de investigação. Quem tem a palavra final, em casos psiquiátricos, é o atual candidato à presidência da associação e, dificilmente, vai querer se indispor com a mais respeitada clínica do país. Além do mais, você sabe que há muita gente interessada nesse caso; nosso paciente tem envolvimento político com grupos de esquerda. Todas as semanas vem aqui um coronel médico, especialmente designado para acompanhar o caso. Acreditam que nosso paciente saiba algo sobre uma suposta organização clandestina, que vem operando desde o golpe militar; acham que pode dar informações quanto a um possível local de treinamento de guerrilheiros. Não, meu caro amigo, não se preocupe. Estou amparado por uma corrente que justifica a tentativa: experiências recentes em ratos mostraram que a dominância concomitante dos dois hemisférios cria, muitas vezes, situações de dualidade neurotizante; é como se cada um de nós fosse portador de um duplo comando, de um paradoxo essencial e estrutural. Nas pessoas normais acaba havendo uma adaptação de funções e a dominação de um hemisfério em relação ao outro. Quando cessa este domínio, por razões desconhecidas, ocorre uma desestruturação da personalidade e um descontrole das manifestações; há então um só corpo a obedecer ordens desconexas e geralmente contraditórias; este caos que se estabelece acaba por levar a um esfacelamento do "ego", que assume duas identidades em oposição.

_ E o senhor acredita que, cortando as comunicações, possa haver uma regressão da condição de duplo-vínculo e de aparente paradoxo da vontade? Não teme que as coisas possam agravar-se ainda mais? Veja: enquanto existir a comunicação, haverá sempre a possibilidade de interção e de síntese; ainda que o processo de elaboração e de veiculação da vontade esteja completamente desmantelado nestes pacientes, acredito que ainda resta alguma forma de interação entre o aparentemente oposto. Não creio que o "ego" se divida totalmente e que passe a representar entidades distintas e independentes. Acredito que se afrouxem os mecanismos de hierarquia das coisas e, assim, possam se manifestar comportamentos aparentemente desconexos; porém, o rompimento total das ligações entre o hemisfério direito e o esquerdo tira do indivíduo a possibilidade de reaprender que um é dominante e outro é dominado; passa então a ter duas entidades, absolutamente independentes, que hão de comandá-lo concomitantemente e, este sim, será o pior estado de dupla vinculação antagônica que tanto usamos para explicar a gênese de comportamentos anormais.

_ Você está confundindo coisas muito elementares, meu caro. Não é possível trazer explicações psicológicas à esfera física; nosso espírito e nossa filosofia nos servem até o momento em que não podem mais fazer nada por nós. Não se trata de uma discussão filosófica; este não é um reduto de investigadores da natureza do ser e, sim, um local onde se procura descobrir como funciona esta máquina que comanda nosso comportamento e quais são os meios, mutilantes ou não, de devolver indivíduos à esfera da normalidade. Muitas vezes, somos obrigados a violar o que você gosta de chamar de essência e de individualidade. Não importa, não podemos passar a vida toda esperando que um dia nosso ilustre convidado se digne voltar ao mundo que concebemos inteligível. A restituição à normalidade é nossa meta suprema; não me venha com discussões filosóficas sobre a natureza da mesma, pois nem eu poderei responder. Sei tanto quanto você que nossa ciência é limitada, não só pelo seu método, como também pelas próprias circunstâncias em que se desenvolve. Não podemos sair por aí dizendo que meia dúzia de nossos governantes apresentam nítido comportamento paranóide e que, provavelmente, esta ou aquela porção de seus cérebros está funcionando mal. Não posso chamá-los para uma sessão de análise. Dependemos de suas verbas e também de seu poder; a instituição que representam é que nos dá estabilidade e permite que realizemos nosso trabalho. Seus procedimentos não são ortodoxos. Nem os nossos! Usamos uma filosofia prática muito semelhante à deles, onde não importam muito os métodos empregados nem os princípios violados, desde que se obtenham os fins almejados. Não nos chocamos ao aplicar em seres humanos a sabedoria aprendida em ratos, pois há toda uma filosofia e uma análise estatística que nos permitem prever as diferenças entre ratos e homens e generalizar nossas verdades de laboratórios para todo e qualquer comportamento patológico! Não difere muito da concessão moral e do abuso dos probabilismos que usam nossos ditadores, ao extrapolar a experiência restrita dos quartéis para o âmbito de toda a sociedade; afinal, soldados são gente como as outras e o micro-cosmo de uma caserna muito se assemelha a todos os outros "fenômenos de massa". Claro que se devem guardar as devidas diferenças porém nada como a "nossa intuição", para que, da parte, possamos inferir o todo! Parou um pouco e finalizou:

_ Há uma carga de provas bastante convincentes que nos dão cobertura; há interesses, em todos os níveis, que justificam nossa atitude. Sossegue, rapaz: o tempo há de mostrar a você que não há filosofia nem ética mais fortes que um punhado de razões à mão. Claro que, se não as tivesse, seria o primeiro a impedir qualquer coisa. Afinal, guardo ainda muito claros meus princípios e limites de conduta e meu juramento perante a sociedade.

 

 

O jovem se retirou dali. Não estava absolutamente convencido pelos argumentos que lhe apresentara o diretor mas não podia prosseguir discordando, o que realmente poderia irritar o superior.

Não me vira muitas vezes. Havia um clima de mistério à minha volta: só ficava junto de mim quando eu estava sob o efeito de drogas ou então em fase de recuperação de alguma cirurgia. Nunca esteve presente às entrevistas em que, segundo lhe diziam, passava o tempo todo a gemer ou a chorar e jamais pôde ver os "símbolos ininteligíveis", que rabiscava diariamente em meu quarto!

 

Era moço ainda. Não estava há muito tempo na clínica. Graças a seu valor, era constantemente consultado sobre certas condutas porém jamais tomava parte nas decisões importantes.

Pouca gente tinha acesso à minha pasta. As informações que lhe chegavam às mãos diziam respeito somente às minhas reações vitais ou à minha resposta e determinada droga introduzida. Acompanhou-me durante minha recuperação das duas cirurgias porém, tão logo começasse a apresentar alguma forma de consciência, era transferido de ala e, novamente, era impedido de me seguir. A hierarquia e a divisão do trabalho segundo setores faziam com que minhas transferências não parecessem propositadas e, realmente, passou um bom tempo até que desconfiasse de algo. Jamais obteve explicação para os hematomas encontrados em mim nem para os nítidos sinais de tortura espalhados pelo meu corpo. Diziam sempre que eram lesões que eu mesmo provocara, ao me debater nas constantes crises que tinha. Não se convenceu mas, por via das dúvidas, "fechou os olhos" e não perguntou mais.

Não me lembro de tê-lo visto antes; aliás, não me lembro de praticamente nenhuma das pessoas que me acompanharam durante todo o tempo em que estive naquele lugar. Não sabia muito sobre ele, senão que sempre esteve imbuído dos mais sinceros ideais de aliviar a dor e de restituir à normalidade os pobres miseráveis que dela se diatanciassem; sei que perdera noites de sono diante da ambigüidade de seus conceitos, da ineficácia de seus bálsamos e da própria impossibilidade de se caracterizar qual era este estado ideal, que justificasse sua ciência e sua busca.

Seu espírito também voava livremente quando, liberto do ranço de uma pressuposta ordem das coisas, assumia linguagens e formas incompreensíveis.

Fez parte de alguns grupos exotéricos; sempre foi dentro deles um líder intelectual, formulando explicações cartesianas e construindo, assim, uma filosofia própria, que os justificasse. Não se convencia por muito tempo das coisas que defendia ardorosamente. Dizia-se deísta e relutava em aceitar qualquer tipo de denominação para seu pensamento místico; odiava que o enquadrassem em uma determinada linha de conduta, retrucando que rótulos eram para latas e não para homens.

Como tantos outros de sua época, foi seduzido pela alma e pela sua carga de mistérios. Não aceitava explicações meramente físicas para o comportamento e jamais deixou de defender que, se a existência de um componente meta-físico no comportamento não era realidade explicável, era, ao menos, passível de intuição.

Achava que não se podia explicar o homem em sua totalidade, desvendendo apenas as vias nervosas e suas conexões estruturais; não bastava encarar as emoções como mero fruto de alterações de campos elétricos: era preciso que se conferisse a elas um significado mais desvencilhado de leis físicas e de suas conseqüentes limitações, para que se pudesse começar a entendê-las.

Entrou para a clínica; logo vieram os primeiros desagrados diante de uma ortodoxia comprometida, e de uma inviolabilidade de idéias gravadas a fogo nas paredes daquele lugar. Jamais convenceu os outros a seguir rumos mais intuitivos, e menos convencionais, na abordagem dos distúrbios psíquicos. Chegou a afirmar um dia que pior era o tratamento que a própria doença e que não se podia roubar de cada um o direito de ser e agir de uma determinada forma, ainda que parecesse anormal. Usava constantemente a palavra utopia quando defendia alguma idéia; buscara no seu significado - "sem lugar" ou "lugar nenhum" - a própria essência de seu pensamento. Não acreditava que houvesse lugar para suas idéias e nem que nelas existisse uma possibilidade prática. Filosoficamente conservava-se um incrédulo quanto aos métodos e resultados advindos de sua ciência porém, na prática diária, continuava a sedar aqueles pobres seres descontrolados que se debatiam, tentando pôr fim à própria existência. Quando o fazia, lembrava das palavras que ouvira dizer: devemos deixar cada um escolher sua própria morte; não nos cabe interferir num processo que deve ter, como único sujeito de vontade, o próprio objeto da ação.

Os dias lhe ensinaram a lição máxima de não discordar frontalmente das coisas, até que pudesse ter condição de mudá-las. Ele mesmo considerava utópicas suas idéias quanto à não interferência nos comportamentos ditos patalógicos.

Cedeu aos costumes, aceitando - apesar de suas posições - que a normalidade não era senão "uma concepção estatística, que encontrava no comportamento médio das pessoas o conjunto provável de normas ideais de conduta". Passava seus dias restituindo pessoas ao seio destas "comunidades ideais" e, quanto mais aprendia como usar os recursos disponíveis para fazê-lo, menos se convencia de sua importância. Não fora este seu sonho, sua vocação? Estranhamente, isto o levou para muito longe da paz que a realização profissional haveria de trazer e não foi capaz de conquistar para si a harmonia com que ungia a cabeça dos deprimidos e dos aflitos!

 

Naquela noite, sentou-se à sua escrivaninha e se pôs a pensar em meu caso e em todo o mistério que havia nele. Procurou justificar para si mesmo a conduta escolhida e só conseguiu um sem-número de argumentos que mostravam ser aquilo, exatamente, o que não deveria ter sido feito.

Pensou ainda por algum tempo. Olhava pela janela que estava à sua frente e só via, na escuridão da noite, a sombra das árvores que pareciam contemplá-lo. Começou a escrever um pouco, tentando se distrair. Tinha sido incumbido de preparar um pequeno resumo de suas idéias, que seriam apresentadas a uma determinada comissão, encarregada de estudar sua inclusão no quadro de professores da clínica.

Aos poucos foi se observando na escrita, como se aquilo tivesse sobre ele algum tipo de poder hipnótico; sentia-se em paz absoluta à medida que tocava as teclas da máquina e via correrem as palavras sobre o papel branco. Contemplava admirando a beleza da criação de verdades que, a partir daquele instante, passariam a ser eternas; não era senão um momento em que, à certeza do esvair lento do tempo, se somava uma única e frágil sensação de se ter rompido um pouco com a inexorável aproximação do fim. Uns poucos símbolos, sobre uma folha inerte, tinham o poder de conferir uma outra certeza que não simplesmente a de morrer; tudo aquilo trazia ao tempo uma dimensão fugaz mas, concomitantemente, permitia que se gravasse um pouco dele em algo que não haveria de sofrer sua ação.

Ouvia música enquanto escrevia; era um dos concertos para o piano e violino de Beethoven. Parou, por alguns instantes, e se deixou absorver pelas notas que dançavam à sua frente; viu-as como parte integrante de um conjunto maravilhoso; procurou subtrí-las do todo mas não conseguiu; estavam ali, firmemente atadas pelas mãos de seu criador; significavam uma possibilidade individual que, reunida, trazia á imortalidade aquele instante bendito e perene; não se separavam do criador, compartilhando com ele aquele único tempo comum, em que o ideal e o idealizado se fundiam, extraindo das múltiplas possibilidades uma única só, que haveria de apagar daquele instante o pesado destino de se perder como tantos outros.

Ficou ali durante muito tempo a pensar; chorava com certos acordes, como se fosse o terceiro elemento de tudo aquilo; sonhava com o criador, vendo-o através desse elo único, que se estabelecia entre ambos, capaz de romper as próprias limitações físicas e temporais do ser e de fazer com que comumgassem de uma essência que se tornara eterna ao desafiar suas limitações cronológicas. Encontrava no espírito o parceiro ideal para que - transcendendo os limites humanos - se libertasse, num momento de anarquia, do tempo e do espaço.

Voltou a escrever e, tão logo tocou o papel, se sentiu libertado do peso das horas. Não era importante o que escrevia nem era necessário que fosse; nesse instante, pouco significavam os terceiros que o haveriam de julgar; a comunhão suprema era, e deveria ser, somente entre sujeito e o objeto; a censura não existiria , visto ser qualidade inerente aos outros; a obra jamais seria julgada boa ou má mas simplesmente deveria ser o fruto de um momento, onde o medo essencial, e sua conseqüente angústia, desse lugar a símbolos indeléveis, que haveriam de suavizar um pouco mais a fim.

Lá fora, as árvores o contemplavam em sua essência moforlógica diversa; quisera poder penetrar suas entranhas e conhecer suas leis mas também elas faziam do seu tempo um culto a deuses muito distantes do que poderia conceber nosso frágil conhecimento. Algumas vezes, uma folha se desprendia de um dos seus galhos e caia suavemente sobre o chão; ninguém podia explicar porque o fazia de uma forma diferente das outras, como se procurasse imprimir no tempo que lhe fora dado um significado único e pessoal.

 

Começou a redigir o resumo de suas idéias:

"Os nossos processos de veiculação com o mundo exterior e de compreensão do mesmo presumem a existência de códigos. Não é possível saber até que ponto há códigos inerentes ao próprio indivíduo ou se todos eles resultam de um processo de interação cultural entre os sentidos e a constituição do intelecto."

O jovem médico perdera toda a feição encantada e sonhadora de seus olhos; já não parava para olhar pela janela nem esboçava sentimento em suas feições; substituíra o ar de gozo por outro, sério e compenetrado. Haveria de ficar assim durante horas, a gravar seus símbolos numa tentativa isolada de recriar seu mundo de idéias, para que alguém as pudesse julgar. Não retrocedeu nenhuma vez, como se tudo aquilo lhe fosse profundamente certo e preciso. Escrevia com velocidade, e parecia fazê-lo automaticamente. Passou a noite toda imerso naquele mundo de afirmações e nem as primeiras luzes do dia foram suficientes para fazê-lo parar de observar o sol seguindo seu ritual, brindando a manhã com seus primeiros raios de luz.

"A concepção medieval - de que nosso intelecto se forma a partir do que percebem nossos sentidos - foi questionada posteriormente, quando se acrescentou à frase ‘nada está no intelecto sem que antes tenha estado nos sentidos’ a continiação ‘senão o próprio intelecto’.

Não podemos deixar que discussões puramente filosóficas consumam nossa tentativa de esboçar uma interpretação para a simbologia das coisas, mas a consideração se torna vital, na medida em que nos leva a admitir a possibilidade de um comportamento intrínseco ao homem ou, do contrário, estabelece sua experiência como condição ‘a priori’, para que se formem suas categorias básicas, a partir das quais irão se desenvolver suas seqüências de imagens e idéias.

O pensamento abstrato não é um elemento comum a todas as culturas e, quando não está presente, torna impossível qualquer tentativa de se conceber uma divindade superior ao sol, pois os valores se ordenam obedecendo basicamente às categorias da natureza. Mesmo quando há um conteúdo acentuado de abstração, os símbolos usados para as divindades apresentam uma discordância semântica e seu significado acaba por variar de acordo com o lugar e com os costumes; surgem associações de palavras com determinadas concepções, e isso acaba por constituir um hábito culturalmente determinado, porém, ainda assim, não vejo porque a palavra deus seja apenas um símbolo sociológico ou um mero costume de associação com um astro ou com um ser qualquer. Importa, realmente, ver que o termo vem preencher uma necessidade de esfera interior, que se serve da linguagem como mero instrumento de veiculação e exteriorização. Diversas formas de culto estão presentes em todas as culturas, e a divinização de algo, ou de alguém, constitui elemento comum a todas elas. Na verdade, as palavras ou os símbolos que se usam para isso vêm apenas criar um elo de ligação que traduza externamente categorias interiores.

Acredito que o grande problema da psicologia, e particularmente da psicanálise, seja o de compreender a simbologia transformada assumida por pessoas portadoras de distúrbios mentais. Não creio que qualquer processo de desintegração ou de desmembramento da unidade psíquica tenha a capacidade de apagar o moto interior que reclama por símbolos para que se possa expressar. Na verdade, não podemos inferir o complexo do psiquismo, senão através de suas exteriorizações, quando, então, a linguagem assume importância vital.

Creio ser cabível pensar que, em muitos casos de alteração de comportamento, a principal atingida seja justamente aquela carga de símbolos agrupados de acordo com uma determinada experiência cultural. Suponho que, em determinados processos de reação contra um passado traumatizante, se apaguem, além dos eventos, também os símbolos aprendidos ou, pelo menos, as fórmulas culturalmente aceitas de agrupá-los. Muitas vezes não vemos sentido nas coisas que uma dessas pessoas faz ou escreve. Tenho visto, muitas vezes, letras agrupadas de uma forma absolutamente estranha ao entendimento mas que, no entanto, não deixam de expressar individualmente entidades compreensíveis. Nestes casos, acreditamos que se tenha apagado apenas o modo de ordenação, restando a associação básica de se utilizar aqueles símbolos quando se quiser comunicar algo. Outras vezes, o próprio conjunto de caracteres individuais escapa à compreensão. Já não há mais nada que nos possa levar a identificar um esforço, concebido e veiculado, segundo bases culturalmente aceitas. Ainda assim, não posso acreditar que se tenham apagado as referências internas mas apenas o código que as torna comunicáveis.

Nosso pensamento segue uma formulação simbólica aprendida: pensamos como falamos e expressamos nossas sensações sob a forma de conjunto de letras que constituem as palavras. Não quero dizer que ‘loucos’ pensem como nós, e que apenas não consigam veicular ou coordenar seus esforços, de maneira a usar uma linguagem inteligível. De fato, talvez o intelecto - como atributo do consciente e por isso imbuído de toda a lógica que lhe é própria - esteja totalmente desmembrado nos desvios psíquicos; importante é não se conferir a ele o todo da esfera psíquica ou espiritual; é ele apenas uma porção consciente, veiculadora de uma série de outras entidades inconscientes e, portanto, mais essenciais.

Quando vejo todas as culturas, de que se tem conhecimento, fazendo uso de alguma divindade em sua vida cotidiana, não hesito em afirmar que não é somente o produto de sentidos estimuladores que há de gerar em nós o senso do divino e a necessidade de um deus; não são estes apenas símbolos culturais que em nada respondem pela necessidade interior de criá-los; o esforço simbólico, bem como sua veiculação, só pode nascer como resposta a algo inerente à própria essência e constituição do homem. Não quero, com isso, fazer afirmações que transcendam os limites da lógica, tocando assim o universo das crenças. Quando defendo estas posições, não quero afirmar que Deus exista ou não; quero apenas dizer que acredito que sua concepção, e conseqüente tradução neste ou naquele código, vem apenas responder à necessidade de se trazer ao mundo externo um princípio inerente ao próprio espírito, seja ele a tradução de um ente vivente ou a frágil tentativa de se vencerem as limitações e o próprio medo essencial.

Assim, não podemos deixar de buscar estes pontos de referência interiores e não devemos nos sujeitar à simplificação de somente interpretar aquilo que já esteja cifrado em códigos inteligíveis. O esforço é justamente para que possamos penetrar num mundo distante do nosso e procurar, no encontro dos princípios essenciais, reduzir a simbologia a mero caminho culturalmente aceito, simples meio mais imediato, de contato entre as essências.

Uma revisão dos diversos movimentos pictóricos nos permite encontrar um esforço inicial de se aprimorar a tradução linear e precisa; foi necessário que se dominassem todas as formas estéticas e que se atingisse a perfeição das pespectivas, para que então surgisse a necessidade de se usarem transposição menos claras, devolvendo à obra de arte o seu caráter de criação de acordo com um princípio inerente ao criador, e não simplesmente o de cópia de dimensões perfeitas, que guardasse relação com as formas do objeto e não com as sensações de quem as tivesse feito. Não, isto seria tirar da obra o seu conteúdo interior e fazer com que apenas a perfeição exterior de suas linhas e a habilidade de quem as fizesse fossem julgadas.

Foi preciso imprimir algo cujo sentido estivesse no criador; foi preciso que se deformasse a aparente organização das coisas para que, através de uma linguagem simbólica e de difícil compreensão momentânea, se expressassem todas as suas emoções e angústias.

Concordo com que a tinta sobre o papel continuou a ser a mesma mas as linhas, outrora facilmente interpretáveis, deram lugar à anarquia das formas como modo de expressão do inconsciente. O moto criador não mudou porém a carência de se expressarem estados essenciais mudou sua forma de exteriorização.

Acredito que se tenha acrescentado algo mais a esta mudança: à medida que dimiui a evidência da forma e que constatações momentâneas e vazias passam a ser mais difíceis, temos de nos valer de outros recursos para tentar entender o significado contido nas coisas; a intuição, a reflexão e o próprio silêncio assumem importância, auxiliando-nos a identificar valores dificilmente tangíveis instantânea e racionalmente; não somos consumidos por uma aparência limitada de verdade e de certeza e, deixando que outros sentidos nos guiem, acabamos por encontrar respostas pessoais e profundas.

A linguagem de pessoas que apresentam distúrbios psíquicos pode não nos dizer muita coisa, mas é preciso que usemos, além dos meios inteligíveis, também nossa intuição e nossa dúvida, para que possamos tentar penetrar em um espírito que absolutamente não deixou de existir e que, simplesmente, passa por um processo de reestruturação simbólica e cujas carências continuam presentes.

O sentido do psiquismo, e seu verdadeiro valor, está em princípios fundamentais que fazem deste ou daquele símbolo simples meio para sua expressão."

 

Depois de escrever a última linha, deitou-se sobre a máquina e lembrou das palavras do diretor, ao dizer que meus escritos não faziam sentido e que meus grunhidos nada expressavam. Colocou as mãos no rosto e chorou; tudo que escrevera não era suficiente para me ajudar e não passava de uma bela tradução, logicamente ordenada, de sua impotência frente à própria vida.

Passados alguns instante, levantou os olhos e olhou pela janela. Fazia um dia bastante feio. Tirou lentamente as folhas da máquina e as rasgou, uma a uma. Olhou novamente para fora. Havia um homem a observá-lo; notou apenas um sorriso satisfeito estampado em seus lábios.

Levantou-se e fechou as cortinas, apagou as luzes e se deitou. Não demorou a pegar no sono, que foi repleto de pesadelos.

 

Havia uma faca gigantesca e um altar; muita gente estava à sua volta e, de repente, começaram a dançar alucinadamente num ritual de sacrifício; viu gente se aproximando; uma lâmina cortou rapidamente sua carne e um líquido vermelho lavou-a, misturando-se ao seu suor; depois, trouxeram-me e repetiram a mesma sequência; nosso sangue se uniu, inundou a terra e lá não nasceram mais espinhos, nem pragas, nem pecado.

Tomaram nossos corpos e os retalharam, distribuindo-os, em seguida, em uma mesa, onde doze pessoas escolhidas esperavam para que pudessem dividir nossa carne; brindaram com nosso sangue e caíram pelo chão, embriagados. O sacrifício estava terminado; seu deus fora realimentado e tivera satisfeita sua sede de destruir o que criara; o sangue dos ímpios tinha lavado os pecados daquele tempo e a natureza haveria de se acalmar, temporariamente, até que novos sinais indicassem que mais sacrifícios eram necessários.

Nossos corpos iam aos poucos sendo digeridos: sentia minha carne, já mastigada, sofrer o ataque de ácidos que acabaram por corroê-la; vieram exércitos de carregadores e escolheram, dos produtos de tudo aquilo, o que haveria de servir; o que não foi escolhido seguiu seu trânsito e foi eliminado como excremento, indo repousar num rio distante. Poluimos as águas, até que lentamente nossas partículas se misturaram a milhares de outras e, então, diluídas e separadas, não mais puderam contar como fora o corpo que se decompusera para criá-las.

 

Dormiu por muito tempo. Foi acordado, subitamente, pelo barulho do telefone, que tocava insistentemente na sala ao lado. Correu para atendê-lo: era o diretor, preocupado com seu atraso para a reunião semanal. Desculpou-se, dizendo que trabalhara até há pouco e que havia dormido profundamente, não percebendo o toque do despertador.

-Escute, meu rapaz, sobre aquele trabalho para a comissão...

-Pois não, senhor, foi justamente nele que trabalhei a noite toda. Esquecera que os tinha rasgado e continuou:

-Já estou com tudo pronto. Logo mais entregarei pessoalmente ao senhor.

-Bem, não precisa se apressar. A vaga já foi preenchida por um médico estrangeiro. Eu sinto muito, mas foi um pedido de um importante membro do governo e não pudemos recusar. Mas não se preocupe, cuidarei para que a próxima vaga seja sua, está bem?

Respondeu entre dentes e desligou. Ficou ali parado, atônito, ainda entorpecido pela noite mal dormida e pela notícia inesperada. Um gosto amargo de decespção e de revolta encheu-lhe a boca. Voltou calmamente até sua escrivaninha e viu os papéis rasgados dentro do lixo.Olhou pela janela: a chuva caía docemente e molhava as árvores que continuavam ali, estáticas, contemplando as mudanças do tempo sem reagir e conservando sempre uma sábia indiferença em relação ao sol e à água, ao dia e à noite. Estava profundamente melancólico e resolveu revirar alguns papéis ajuntados numa das gavetas da escrivaninha. Esqueceu-se novamente da hora.

Foi abrindo pastas e cadernos e, num capricho da vontade, passou a reviver momentos de um tempo passado. Pôs-se a ler alguns exemplares de um jornal que editara na época da faculdade; viu seu diploma e, junto dele, a fotografia da cerimônia em que recebera o título de especialista; viu o recorte de jornal anunciando sua entrada para a mais importante clínica psiquiátrica do país. Durante algum tempo, ainda, ficou a olhar para todas aquelas coisas, como se quisesse sorver de tudo aquilo um pouco das emoções que tinham suscitado.

Lembrou-se da infância e de sua mãe lhe dizendo que o pecado o haveria de assolar todos os dias. Sempre contava a história de um homem que vendera sua alma ao diabo e por isso tivera que carregar como penitência o fato de não ter mais formas humanas; era uma massa disforme a caminhar e a viver; com o tempo, muitos acabaram cedendo à tentação de trocar seus princípios por ofertas imediatas e, assim, essas criaturas grotescas passaram a não causar medo a ninguém; pelo contrário, tornaram-se tão numerosas que dificilmente se via alguém com as formas primitivas e, quando apareciam, eram encarceradas e colocadas em exibição; não tardou que desaparecessem da face da terra e a última, segundo consta, foi crucificada num domingo de manhã sob os aplausos e risos dos presentes.

Sempre lhe vinha esta imagem à cabeça quando sofria alguma derrota; não pensava em mais nada, senão na expressão, já desgastada, de que ao menos se conservara fiel a si mesmo. Porém, naquele dia, as coisas foram diferentes; pensou muito na história que a mãe contava; não deixou que sua fantasia se dissipasse nem que o conformismo lhe aconselhasse a esperar uma outra oportunidade. Ficou durante algum tempo ali, sentado; depois se levantou e foi ao espelho: só viu linhas rudimentares que faziam da forma humana apenas uma presunção; passou a mão em sua face e não sentiu os contornos; quis apertar os seus olhos mas só encontrou dois buracos vazios e cheios de um líquido branco e viscoso; seus lábios não conseguiam falar e, até mesmo seu espírito, por alguns instantes, se calou, reclamando a velha afirmação de ainda lhe era fiel. Procurou desesperadamente recordar-se de algum fato passado que lhe pudesse indicar o exato instante em que perdera as formas. Não encontrou. Era como se sua lembrança não tivesse sofrido a ação daquilo que acometera seu físico ou como se existisse algo que idealizasse imagens passadas, numa tentativa de eliminar experiências desagradáveis ou traumatizantes, ajudando assim a encobrir as sucessivas concessões que fizera a seus princípios.

Lembrou-se de seus ideais e de como sonhara ser um revolucionário ou de, pelo menos, empreender alguma forma de revolução em sua vida. Sentiu correr algumas lágrimas que derramara nos primeiros dias de estudante, ao tomar contato com a trágica realidade de seu povo. Muitas foram suas idéias para minorar a dor e o sofrimento; sonhou, inicialmente, em descobrir alguma substância que pudesse aliviar as chagas da multidão mas percebeu que poucos haveriam de se beneficiar com ela. A doença não era senão a coroação de uma vida de desengano; melhor seria não curar, para que padecessem somente uma vez e não fossem obrigados a morrer um pouco todos os dias de sua vida.

Chorou várias vezes ao ver gente morrer por não ter o que comer; aos poucos foi se acostumando com a realidade de levar apenas um alívio temporário para um mal que sua ciência e sua arte não podiam sanar. Suas críticas eram lancinantes, tendo idealizado várias reformas para a sociedade; empreendeu verdadeiras batalhas confinadas a uma sala; denunciou a exploração em panfletos distribuidos aos colegas de escola. Sua guerra, porém, não foi muito além do tempo que gastou para entender que tudo aquilo era utópico e que não se podia fazer nada. Sua revolução morreu tão pobre e mirrada quanto começara.

Depois, veio a época das considerações a respeito da personalidade. Defendeu que a verdadeira necessidade era de se dar alimento para o espírito e só então dar pão para o corpo. Criticou todas as civilizações e a própria ordenação de valores que as pessoas julgavam certas; pregou que só o individualismo seria capaz de levar a um estado de harmonia com as coisas e com os outros:

"O homem - dizia - guarda uma possibilidade de interiorização, que lhe é oferecida na medida de sua unidade. Há nas pessoas um profundo medo de se separarem de um mundo tangível e de trocá-lo, momentaneamente, por outro desconhecido. Existe um pacto entre elas: insistem em afirmar suas falsas impressões de segurança e estabilidade e, repetindo-as, acabam por se convencer das próprias. É preciso trocar a cômoda e limitada paz de um mundo, que aparentemente nos proporciona certezas e realizações, pela difícil tarefa de buscar no interior de si a única resposta eficaz.

A família, como a constituem, não repousa sobre bases sólidas de entendimento e união, acabando por manter-se graças à aparente estabilidade que propicia; no fundo encontramos num pequeno grupo o apoio conjunto para nosso medos e inseguranças. A sensação de aceitação encobre a necessidade de afirmação interior, relegando ao inconsciente o pesado fardo de suportar uma paz construída de ilusões e enganos.

É preciso não perder, antes mesmo de empreender, a procura que justifica a existência. É preciso despir-se de todas as convenções e crenças e procurar, no inconsciente, respostas capazes de evitar que sejamos, mais tarde, assolados por carências que tenham permanecido encobertas sob um manto de encontro e de fé. É no mais profundo de nós que encontramos o sentido do que somos, tocando uma essência comum aos seres vivos. Lá repousam os valores que nos são capazes de unir verdadeiramente e, no instante em que desvendamos esse mistério, comungamos com outros que também o fizeram, fundindo nossos espíritos agora num só corpo. Este é o verdadeiro encontro do próximo e, paradoxalmente, é preciso que nos isolemos, inicialmente, para que possamos encontrá-lo e amá-lo"

 

Misturava psicologia com crença e, num ar quase profético, escrevia palavras que acreditava ser uma nova possibilidade de ordem e de valor para as coisas. Queria, com isso, mostrar o vínculo entre a família e o medo de duvidar das verdades, cedo aprendidas com a cultura, que acabam por se transformar nos frágeis dispositivos que nos mantêm vivos e em presumida paz de espírito.

Procurou convencer muita gente de suas idéias e da real necessidade de se empreender esta procura interior - única possibilidade de conquista de uma paz perene. Citou a Bíblia para explicar que também Jesus se retirara durante muito tempo para meditar em solidão; sofreu a tentação de assumir valores tangíveis e imediatos mas, resistindo, encontrou em si mesmo uma possibilidade divina e um sentido profundo para a vida; pôde ver então toda a hipocrisia das ordens vigentes e de um mundo que vendia a felicidade por um punhado de ouro e prata.

Procurava, incansavelmente, achar exemplos na História que justificassem suas teorias mas, novamente, fez uma revolução limitada a seus próprios sentidos. Admirava-se profundamente por intuir coisas que julgava ser novas e capazes de previnir a terrível angústia existencial. Suas idéias não mudaram senão a aparência de algumas folhas de papel e, lentamente, o conformismo e os interesses o levaram por outros rumos.

O paradoxo que descrevera acabou por se inserir em seu próprio mundo de idéias faladas e de realidades vividas. Conservou-se ideologicamente como um liberal porém o tempo acabou por semear em seus dias a oposição entre os atos e as concepções.

Continuou a ver gente cultivando valores menores e depois se esfacelando num encontro com realidades não previstas e aprendidas. As crianças continuaram a morrer de desnutrição nas enfermarias de seu hospital. Os regimes que condenara deram lugar a outros piores; calou-se em público e vociferou, em silêncio, contra a maldita ditadura. Como tantos outros, desaprovou as torturas e a violação dos direitos humanos porém nunca se pronunciou a repeito; muitos dos pacientes que tratava em seu onsultório particular - e que para isso pagavam a merecida soma que reclamava seu nome - tinham estreitas relações com o grupo que estava no poder: criticar, naquele instante, "de nada adiantaria" e poderia colocar em risco tudo que conquistara a tanto custo!

Suas idéias não encontraram no tempo um aliado para confirmá-las e acabaram por ser derrubadas pelas próprias falsas verdades que criticavam.

 

O egoísmo nos distancia e nos aproxima do semelhante; aproxima-nos na medida em que encontramos significados de conveniência material e, até mesmo, psíquica em sua presença; distancia-nos porque somos incapazes de deixá-lo, momentaneamente, para reencontrá-lo numa nova dimensão, mais real e menos comprometida.

Interessante ver que as pessoas contemplavam o fruto, sentiam seu gosto e, depois, em lugar de comê-lo, voltavam a um paraíso irreal que escondia fogo e angústia por trás de sua aparente ordem e harmonia.

 

 

Muito tempo se passou até que se recuperasse e deixasse de refletir. Levantou-se e foi vagarosamente até o espelho, quase totalmente conformado com encontrar um ser disforme; seu rosto, porém, "não estava mudado" e suas feições eram tais como tinham sido quando viera ao mundo!

Pegou o patetó e saiu, deixando ali todas as metáforas de seu espírito, que o haveriam de aguardar até a noite, para que mais uma vez - trouxessem a ele o peso de suas contradições e tentassem, através de uma linguagem simbólica, derrubar seus valores humanos e finitos.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

V

 

 

"Que é o infinito?

Por que te preocupas tanto?

Volta para dentro de ti mesmo

Mas se lá não te apraz achar

O infinito do ser e do sentir

É humanamente impossível

Ajudar-te"

GOETHE

 

 

Muito tempo depois voltei a mim. A princípio me veio a sensação de meu corpo e, aos poucos, fui tomando consciência de orientação de minhas partes num universo de sombras que se moviam ao meu redor; minhas pernas sentiam o peso dos lençóis sobre si porém não reconheciam o que era, senão que lhes produzia uma doce e suave pressão. Não lembrave meu nome nem tinha qualquer idéia quanto a fatos passados.

Meu aprendizado era lento e a luz só passou a impressionar meus olhos e a provocar neles a sensação de imagens, depois que aprendi que ficariam fechados e nas trevas, até que uma ordem mandasse que se abrissem. Não falava nada e nem sequer desconfiava que pudesse haver alguma forma de me comunicar com o que estava à minha volta. Não conseguia distinguir entre o que rea externo e o que era interno a mim; meus limites corporais funcionavam como um marco tênue e eneficaz a delimitar minha pessoa; minhas pernas e meus braços eram como que a continuação mais próxima de um universo limitado, que não me trazia muito mais que o que meus sentidos podiam detectar. Havia sons que dançavam à minha frente e, por vezes, vinham docemente beijar minhas membranas, para nelas provocar uma alteração proporcional a seu ritmo. Distinguia, aos poucos, as diferenças entre os diversos tipos de impressão que me chegavam mas não as conseguia caracterizar, salvo pelas diferenças físicas que apresentavam.

Não me emocionava com o barulho de uma porta batendo ou com a ordem de alguém para que me sedassem; eram apenas sons de intensidades variáveis, pertencentes a um mundo que se moldava segundo as respostas que suscitava em meus sentidos.

Lembro que me mexia vigorosamente ao sentir que algo penetrava minha carne; estranhava quando me tocavam e não conseguia compreender a grande diferença entre uma simples pressão e uma picada: ambas percorriam-me rapidamente e produziam uma sensação semelhante porém de intensidade diversa.

Não havia distinção entre dia e noite mas, tão-somente, uma dificuldade maior ou menor de se enxergarem e se divisarem as linhas que apareciam à minha frente; com certeza, só podia dizer que algo tinha o estranho poder de, subitamente, tornar as coisas claras e bem delineadas; depois, voltava a perceber apenas sombras: tentava, em vão, procurar as formas que vira havia tão pouco; de repente sons ganhavam o ar que passava a se movimentar mais rapidamente; uma porta se abria e, subitamente, alguém fazia com que todos os objetos ganhassem novamente seus contornos. Os barulhos se misturavam durante algum tempo, até que por fim tudo aquilo voltava a se apagar. Não entendia como podia tirar as coisas tão depressa dali, deixando apenas vagas impressões do que fora o ambiente! (Estava ainda longe de aprender que o simples apertar de um botão conferia forma às coisas.)

Demorei até pereceber que havia uma parte do tempo em que, quando as vozes partiam, não se seguia o apagar dos objetos que me circundavam; depois vinha o tempo em que, apenas por alguns instantes, se podia ver bem para em seguida mergulhar na noite e no seu mistério velado.

Aprendi que às diferentes vibrações correspondiam atitudes diversas; sempre que se proferiam determinadas palavras sentia em seguida aquela fria sensação e voltava às trevas, e estas, porém, não se assemelhavam àquelas que se seguiam ao barulho da porta e ao afastar-se de alguém, pois nelas não havia limites tênues, nem impressões, nem sombras, mas única e tão somente escuridão.

Assustei-me quando percebi que a luz que impressionava os olhos continuava ali por algum tempo, mesmo depois de fechadas as pálpebras, e ía então desaparecendo lentamente. Fiz por diversas vezes a experiência e acabei por perceber que a imagem não constituía privilégio das coisas, bastando olhar a luz para gravar em meus olhos sua dorma e depois, cerrando-os, esperar que fosse embora. Havia algo em mim capaz de fazer com que a visão aparecesse à minha frente, mesmo quando os olhos estivessem fechados; os objetos do quarto passaram a desfilar para mim, sem que para isso precisasse ter havido uma luz, um som ou uma ordem; bastava minha vontade de querer vê-los e lá estariam eles a atendê-la.

Percebi que as coisas não podiam ocupar simultaneamente o mesmo lugar em meus sentidos, ou mesmo em minha imaginação. Aprendi que os sons vinham agrupados e que, no fundo, havia uma série de elementos primários que, quando reunidos desta ou daquela forma, provocavam diferentes respostas. Aos sons seguia-se movimentos que acabavam por executar algo; percebi que o movimento era apenas uma sucessão de imagens estáticas, que se uniam em meu pensamento. Não era senão um atributo do espírito que coordenava o que percebiam os sentidos. Passava horas a me divertir, adivinhando seqüências: via o início de algum gesto e fechava os olhos, para logo em seguida abri-los, confirmando o que previra.

Não tenho a exata noção de quanto tempo se passou, até que pudesse novamente voltar a esboçar meus próprios desejos. Foi como se tivesse ficado anos a observar as coisas, colecionando modelos para que, posteriormente, os pudesse agrupar segundo a minha vontade.

Sussurrei alguns sons isolados e tentei repetir conjuntos deles que aprendera estar relacionados à deflagração de certos atos. Depois gozei de um prazer imenso ao ver que minhas expectativas se confirmavam e que obtivera o fim pretendido.

Percebi claramente que havia um tempo em que a natureza preparava tudo para que meus olhos se fechassem - tudo se acabava, para recomeçar logo adiante. Tentava estabelecer uma seqüência entre dia e noite, que no entanto se quebrava quando, imbuído de certa convicção de que agora eram trevas, via algum objeto assumir, por instantes que fossem, uma forma nítida e clara. Uma noite alguém se esqueceu de apagar as luzes de meu quarto; passei assim o mais longo de meus dias, a esperar pela escuridão que haveria de dispor os contornos de uma outra maneira, avisando meus sentidos que era hora de descansar.

Fechava os olhos e já não precisava me esforçar para ver as coisas, que agora se arranjavam de uma maneira que jamais vira. Nessas horas não ousava desconfiar de qual seria o fim de tudo nem de que destino haveriam de tomar; escapavam do que aprendera e não podia relacionar nem prever; ficava ali durante muito tempo a contemplar aquela sucessão de imagens e de sons até que se apagassem. Pessoas e situações se dispunham de uma forma inédita; engraçado, pois eram todas conhecidas e já as tinha visto ou pensado nelas antes. Outras vezes reconhecia a figura que queriam representar, e até o nome era de alguém conhecido porém o rosto nada tinha de familiar.

Uma noite vi uma agulha muito maior que a que costumavam usar; tive uma sensação estranha e procurei me desviar mas continuava vindo em minha direção; gritei quando vi que minha mãe a segurava; vieram duas pessoas ver o que estava acontecendo; senti suas mãos correr meu corpo e depois ouvi dizer que não devia ser nada mais que um simples pesadelo. Guardei a expressão e pensei nela muitas vezes, quando via ou sentia coisas que não vira ou cuja forma excedia de muito habituais.

Meus sonhos eram cada vez mais complexo; havia neles cada vez mais imagens a se relacionar de uma maneira incompreensível Muitas vezes pensei estar frente a uma seqüência que, embora absurda, já fosse conhecida de alguma outra noite qualquer; logo, porém, aparecia algo de novo e anulava minha expectativa. Não entendia o por quê mas percebi que era como se visse tudo de uma maneira oposta à que esperava. Passei noites a imaginar seqüências contrárias às que conhecera e, surpreendentemente, vi muitas vezes se desenrolarem tal qual previra. Era como se as coisas só se pudessem dispor de dois modos e que o único e grande esforço fosse apenas o de sentir, se daquela vez seriam como o original ou simplesmente o seu oposto.

A luz por vezes virou sombra e a música não foi então um barulho medonho; a fuga se tornou uma estranha procura e os carrascos que me subtraíram a vida no meu último dia, tiraram os capuzes e pude ver assim as faces dos que me a tinaham dado.

 

 

Havia algo especial à minha volta. Meus sentidos aprisionavam somente uma parte momentânea das coisas; era como se o tempo os limitasse na medida de suas leis essenciais. Não podia ver senão uma imagem depois da outra, e o resultado, eu o construía em meu pensamento. Minhas sensações me permitiam apenas uma visão estanque e seqüencial do mundo, enquanto algo dentro de mim acabava por lhes dar o sentido do todo.

Muitos anos depois ainda haveria de lembrar dos instantes iniciais daquele processo que se estendeu por muito tempo e, mesmo após ter morrido, ainda me encantaria com sua beleza.

Jamais tivera idéia de que tudo é movimento e de que nossos sentidos não apreendem senão parte do mesmo. Cabe então, ao nosso intelecto, construir e interpretar aquela sucessão de imagens e sons que se sucedem no tempo. A morte não é apenas um instante mas uma sucessão deles, que vão se gravando pouco a pouco, num processo que, somente quando findado, nos torna aptos a juntar a infinita coleção de segundos que o compõem e perceber que aquele é o último; não é apenas um momento e sim o resultado deste movimento que nasce com nossa percepção da vida e do tempo e que acaba quando já não mais os podemos sentir.

É incrível como podemos ser tão tolos e viver querendo achar apenas uma verdade que se possa comparar à certeza do fim. Não se pode enfrentar toda uma longa sucessão de achados senão com outra. Seria preciso outra vida, para que pudéssemos ousar tentar construir algo semelhante a ela e a seu fim. Nossa filosofia se limita às circunstâncias finais de algo que dura todo o tempo; nosso movimento nos leva àquele encontro, que nada mais é que o mágico momento onde todas as verdades colecionadas e duvidadas assumem realidade e existência. Não há apenas uma explicação mas uma infinidade delas, tão grande quanto as possibilidades que os segundos encerram e tão pessoal quanto nossa vontade que as concebe.

Muitas vezes, pensei que a própria felicidade residisse na coleção de momentos diversos e que somente a alcançaríamos quando desprezássemos soluções isoladas e leis capazes de sintetizar tudo o que existe.

 

aprendi novamente a comer e a controlar minhas necessidades essenciais. Usaram-se métodos de recompensa e castigo, para que o aprendizado se fizesse mais rápida e eficazmente. Colocaram-se símbolos à minha frente e insistiram, ante meus olhos incrédulos, que aqueles eram os sons que aprendera a ouvir e a repetir quando precisava de algo. Minha letra correu novamente insegura por sobre longas e intermináveis folhas de papel; muitos foram os erros de ortografia que cometi; não adiantava retrucar, dizendo que me fizera entender - era preciso que se seguissem as leis, para que meu pensamento tivesse valor e não se perdesse antes mesmo de existir!

Não tinha mais pecados, lavados de minha alma por um bisturi, que foi capaz de eliminar de minha experiência todo o seu aspecto humano e falível. Aos poucos, conheci novamente os encantos do mundo e provei do fruto proibido. Pequei em atos, em pensamentos e em omissões.

Foi-me ensinado o caminho do perdão e tive de trilhá-lo tantos minutos quantos vivi, até perceber que passava muito tempo fazendo as coisas e um tempo ainda maior me arrependendo por tê-las feito!

Naquela noite fui dormir sem pedir desculpas a Deus por ter vivido mais um dia e por ter descoberto nele um pouco de seus mistérios. Peguei logo no sono: comecei a ver figuras rodando à minha volta e gritando que era o pior dos pecados porque não queria reconhecer nem destruir minha natureza diabólica. A imagem de um padre negando a mão a um menino me veio à cabeça mas não dei muita confiança.

 

Aprendi novamente os grandes feitos do homem na História; li sobre guerras santas e contei as crianças pecadoras que mataram; vi arder no fogo os hereges, os sábios e os santos; conquistei todas as terras do mundo e levei junto com minha conquista toda a minha crença e meus valores morais; tirei a terra dos nativos e lá construí grandes fazendas e indústrias, para que pudesse usufruir ainda melhor da riqueza que meu Deus me preparara neste mundo; aos escravos dei minha religião e a salvação: o reino dos céus haveria de contentá-los, pois para mim bastava o reino deste mundo! Matei jovens idealistas, que morriam sorrindo e proclamando sua causa; vendi armas ao inimigo para que pudesse destruir meus próprios soldados. Presenciei grandes progressos e me enriqueci intelectualmente mas no fim sobrou a triste impressão de que tudo aquilo fora em vão e que o sentido das atitudes humanas havia desaparecido, acabando por transformar-se numa ética de oportunidades e interesses. A moral que presenciava era tão torpe quanto certas violações que pretendia coibir.

Muitos indios morreram por acreditar que folhas de coca eram na verdade uma bênção de Deus e que lhes haveriam de renovar as forças, para que assim pudessem buscá-lo incansavelmente. Padres levaram essa idéia ao seio das comunidades indígenas americanas e, justamente com a crença no Deus da igualdade, mantiveram o vício dos trabalhadores, impedindo que se revoltassem contra os patrões!

Inventaram-se máquinas e para impulsioná-las colocaram crianças, que cedo começariam a morrer pelas condições desumanas do trabalho. Os mineiros encheram as tumbas e caíram asfixiados pela carência de ar nas minas profundas.

Comprei o perdão e paguei caro por minha salvação. Outros os fizeram e, tamanha foi sua revolta, que fundaram uma nova Igreja, perdoando e salvando, assim, os interesses dos que financiaram o movimento.

Lia muito mas tinha que vasculhar durante horas à procura de livros que me contassem fatos honestos. Eram livros velhos e de capa suja, sempre colocados nas prateleiras mais baixas da imensa biblioteca da clínica. Continham idéias bastante diferentes das que aprendia em minhas lições diárias e, ainda assim, ficavam ali sem que ninguém os proibisse. Mais tarde descobri que não "seria direito" proibí-los e que a simples desinformação dirigida acabaria por deixá-los esquecidos.

As máquinas trouxeram o progresso e uma nova era de avanços mas também a exacerbação dos conflitos de classe; os servos mudaram de nome e os assalariados passaram a constituir a grande massa, para quem os céus haveriam agora de abrir suas portas. Aprendi o significado do capital mas meu intelecto não foi capaz de avaliar a real dimensão de seu mal, até que visse, numa revista velha jogada logo ali, a foto de uma criança morrendo de fome na porta de um grande armazém; atrás dele se fazia uma grande fogueira e se queimava o excedente da produção, evitando assim a queda nas cotações!

Não, havia em tudo aquilo de artificial; formulei toda uma concepção ideal das coisas e só vi hipocrisia estampada no rosto dos que justificavam a ordenação da sociedade segundo os modelos existentes. Tinha uma série de argumentos lógicos para criticar os valores cultuados e perpetuados.

Uma vez mais, porém, minha filosofia me consumiu num mundo de justificações e de críticas teóricas e, novamente, foi incapaz de sentir de perto o quão pobres eram suas asserções lógicas diante da exploração e do cultivo interessado dos paradoxos. Minhas idéias criticaram a ética de valores que nos regia mas minha cabeça voltou a se curvar frente ao poder dos mais fortes, e o conformismo encontrou em meu egoísmo a via final para se instalar, e para trazer novamente ao meu tempo uma revolução feita apenas de sonhos e de papel!

A busca de uma ética individual acabou por me levar ao estudo da ética dos grupos. Aos poucos, percebi que havia na natureza do comportamento destes algo mais que a simples soma de comportamentos individuais porém, nem assim, pude entender as matanças coletivas justificadas por uma suposta superioridade racial.

Ensinaram-me novamente a não matar e a não roubar mas não puderam evitar que presenciasse, naquele mesmo instante, um exemplo de matança e de roubo, posto em prática pelos grupos dominantes. Diante da minha indgnação, houve quem explicasse existir uma ética política, que nem sempre acompanhava os ditames da ética individual e que os governos, muitas vezes, se viam forçados a transcender a rigidez das leis e da moral, para que pudessem assim resguardar os próprios valores que representavam.

Passado algum tempo, meu aprendizado passou a ser dirigido pessoalmente pelo diretor da clínica, que, em visitas diárias, acompanhava com carinho meu caso. Tivemos longas conversas, em que se exploravam minha vida presente e minha vida passada, como que tentando encontrar pontos de intersecção entre minhas experiências antigas e atuais e,sobretudo, buscando achar denominadores comuns na forma como as julgara e delas tirara ensinamentos. As perguntas que me eram feitas pareciam querer encontrar um elo de concordância entre as respostas que se obtinham e aquilo que se pretendera ao me colocar frente a esta ou àquela situação.

Continuava com meu espaço bastante limitado e minha movimentação não era totalmente livre nem solitária; sempre havia alguém que me acompanhava e, prontamente, respondia às dúvidas que tivesse.

Por muito tempo não vi o médico moço que cuidou de mim nos primeiros dias em que fui para lá. Meu comportamento apresentava uma incrível recuperação: aprendia as coisas com prodigiosa rapidez e desenvoltura - afinal, era mais fácil trilhar um caminho já conhecido, onde tudo parecia operar num simples limite de reimpressão de referências já gravadas.

Muitas vezes vi irregularidades e também profundas contradições de base naquilo que me ensinavam mais isto não foi suficiente para despertar em mim uma reação externa; assim, aqueles dias lembraram muitos outros em que, ainda menino, travara contato com a imposição e a falsidade dos conceitos. Agora, porém, a revolta se processava apenas nos meus pensamentos e minha vontade já não me levava a querer destruir tudo aquilo. Teria sido a sabedoria que chegava? Duvido um pouco.

Via um sério paradoxo nas verdades dicotômicas que me eram transmitidas e entendia perfeitamente o que se queria dizer com bem e mal, embora não compreendesse nitidamente o limite que os separava. Meus atos eram exemplares e recebia elogios por eles; minha cabeça, no entanto, pensava de uma forma diametralmente oposta àquilo que fazia. Não importava, porém, que minhas atitudes se harmonizassem com meus pensamentos mas, pelo contrário, aceitava pacificamente a existência de duas verdades e a necessidade de se fazerem as coisas de uma maneira oposta às concepções, para obter assim a aceitação e o amor do grupo que me cercava.

Nunca me revoltei pelo longo tempo que tive de passar naquele lugar e, aos poucos, passei a encará-lo como meu próprio mundo. Conhecia as pessoas que tratavam de mim e me dava bem com o diretor, com quem conversava diariamente.

Certa vez, perguntou-me quais eram minhas impressões sobre a atual política do país. Respondi, sempre com base nas informações que me chegavam diariamente pelos jornais, que a exceções se tinham feito necessárias na medida de contingências sociais. Acreditava que muito do que se fazia, ou se fizera, tinha tido como único e superior objetivo o de proteger as "liberdades do povo" contra idéias subversivas e mentirosas que se haviam disseminado no seio de nossa sociedade! Ele não respondeu e aparentemente acreditou no que tinha dito. Meus pensamentos não compartilhavam das mesmas explicações mas algo me dizia que não seriam bem aceitas outras explicações para os fatos, que não aquelas constantemente divulgadas pelos meios oficiais.

Lentamente ia desaparecendo de mim o sentimento de obrigatoridade de se expressarem todas as idéias e acabava por me revoltar contra mim mesmo, ao ver as coisas se disporem sempre de uma maneira diversa da que concebia. Não era possível que somente eu pensasse de uma forma oposta e que apenas aqueles livros mofados e esquecidos me seguissem e me dessem razão. Aos poucos, ia sendo sutilmente coibido pela censura do grupo, que me confundia e me fazia duvidar de minhas razões, tal era a homogeneidade de suas idéias e de seus atos.

Minha vida se dividia entre duas realidades opostas e conflitantes e, entre elas, lá estava eu a julgar a possibilidade de compatibilizá-las. Quisera ter aprendido uma maneira de confrontá-las em igualdade de condições, mas não foi possível. Uma representava algo incontrolável que nascia dentro de mim, à medida que via as normas aceitas e proclamadas, bem como as explicações acerca da natureza das coisas; a outra fazia-lhe oposição e se fortalecia - apesar de suas contradições internas -, graças à coesão do grupo que a aclamava e defendia. Tentei por diversas vezes chegar a uma posição que conciliasse as coisas mas isso se tornava impossível, visto que não conseguia admitir sequer que fossem passíveis de confronto; eram como o dia e a noite e, embora versassem sobre mesmas situações, usando códigos de associação e implicação semelhantes, tinham em suas bases postulados e concepções de valor diferentes, o que tirava delas qualquer possibilidade de interação e de síntese.

Meu comportamento era bem mais adaptado e obediente que em minha juventude; mas isto se fazia graças à capacidade que desenvolvera de conviver com realidades conflitantes que não se enfrentavam nem se venciam. Havia muito, sentira que nossa natureza carregava a dupla possibilidade de encarar as coisas segundo diferentes preceitos de valor. O tempo realizou o inevitável confronto entre realidades que se opunham, fazendo por fim que uma delas apagasse a outra. Eu já não conseguia mais fazê-lo e convivia assim com entidades independentes, que dirigiam, simultaneamente, dois universos antagônicos: um de atos e outro de idéias.

Moldou-se assim em mim um presente ainda mais angustiante que o passado, quando pudera extrair dos paradoxos verdades pessoais e aparentes. As contradições também me atingiram em outros tempos mas tivera a possibilidade de conceber explicações e de retirar de meu mundo consciente a ambiguidade, que ficou, assim, relegada à essência das coisas. Se as concepções foram extraídas segundo princípios de liberdade ou, simplesmente, se foram fruto de conveniência e de pressões, isto não importava. Realmente, tivera então a possibilidade de compatibilizar ações e princípios e de adotar uma ética capaz de - ainda que aparentemente - relegar o paradoxo a uma condição "externa corporis". Talvez o tenha colocado apenas em categorias inconscientes mas, sem dúvida, este mecanismo nos fazia criaturas, momentaneamente, menos angustiadas e em pressuposta paz.

Eu agora trouxera a ambigüidade da esfera das realidades exteriores para o meu mundo diário; aquilo que deveria ser, e fora, privilégio de um inconsciente portador de nossas concessões, denunciando-as veladamente sob a forma de metáforas, era agora atributo de todos os meus instantes. A antiga ilusão de harmonia cedeu lugar a uma nova realidade, onde a síntese se tornava impossível diante do confronto permanente entre atos, que buscavam recompensa e aceitação, e princípios, que imploravam por um pouco de coerência e sinceridade; não havia condições para que se assimilassem nem para que se criasse um sistema de valores que os relativizasse e acabasse por subordinar um ao outro.

As contradições se tornam muito mais evidentes, quando se perde a capacidade de explicar o mundo sob uma ótica capaz de estabelecer apenas uma verdade como certa e como única possibilidade de conduta. É muito simples o processo de que fazemos uso ao retirar as contradições de nossos atos, relegando-as a realidades externas a nós. Na verdade, estamos apenas tornando-as mais profundas, ao gravar em nosso inconsciente toda a gama de razões contrárias ao nosso procedimento. Ficam assim camufladas pela censura que impomos às tentativas de exteriorização do inconsciente, quando este, em vão, procura nos colocar novamente perante a dupla natureza das coisas. Desprezamos e esquecemos sua existência, bem como das verdades que encerram seus símbolos, que nem sequer tentamos interpretar. Aos poucos, acabamos por apagar as verdades inconscientes de nossas vidas diárias e nos conformamos com soluções localizadas e restritas, como que devolvendo ao criador a responsabilidade de tornar o mundo menos paradoxal.

Não existe antagonismo entre verdades aparentemente dicotômicas; existe, sim, interesse em se delinearem os opostos e se instituirem veículos que os rotulem segundo valores abstratos de bem e de mal, de certo e de errado; pode-se assim direcionar os comportamentos, aclamando um mundo "normal" sem ambigüidades e portanto facilmente dominável. Relegando ao inconsciente as contradições e os vícios deste processo atingimos então um estágio de alienação total, onde somos facilmente manipuláveis e onde já não mais podemos descobrir o por que de uma paz interior, que continua a nos ser proibida, apesar da aparente harmonia em que vivemos.

Nossa insatisfação é o fruto da impossibilidade de se aprimorar, ainda mais, o mecanismo de realidades conscientes, linearmente adaptadas e coerente. Não podemos fazer frente à ameaça de outras realidades mais profundas, que representam constante risco de nos assolar, trazendo à nossa aparente estabilidade todas as concessões sobre as quais repousa e destruindo assim nossos frágeis alicerces de ilusões. Mas nossa natureza permite que - ao menos temporariamente - coloquemos nossas verdades ideais em confronto com nossas possibilidades de executá-las e, por fim, obedecendo às leis da conveniência, possamos construir um sistema moral que justifique nossos e tranqüilize nosso espírito sedento de uniformidade. O paradoxo retira-se de nossa realidade consciente e volta a repousar na essência das coisas, cessando com isso nosso dever de interpretá-lo e exingui-lo; neste instante, porém, e sem que percebamos, se inicia a lenta instalação de nossas neuroses.

 

Meus fantasmas tinham sido finalmente expulsos; já não havia mais alucinaões noturnas nem escapes de um inconsciente sedento por manifestar seu desagrado ante a conformação das coisas; não havia mais símbolos codificados; minhas metáforas tinham perdido sua razão de ser. Agora a luta era inteligível e traduzida numa linguagem fácil e de rápida assimilação consciente. Não se podia impor às coisas apenas uma solução, pois todas elas sempre admitiam razões opostas e igualmente justificáveis. Não era possível comparar a ética dos pensamentos e dos atos pois, se numa repousavam todas as considerações de uma lógica inabalável e rigorosa, na outra se assentavam os desejos de aceitação por parte de um meio que me envolvia e me recompensava com seu agrado e seu amor. Havia sentido em ambas e, embora antagônicas, não se podiam influenciar, visto estarem constituídas sobre bases diferentes; também não se podiam discutir estas bases, cujo conteúdo dogmático fugia à possibilidade crítica racional, invocando a fé e a crença como únicas condições para que se pudesse optar. Seria preciso conceber os resultados a que se queria chegar, para que se pudesse escolher; se um caminho seduzia pelo proveito que propiciava, o outro trazia o endosso silencioso de uma essência que reclamava por algo sincero, onde não se medissem os fins mas apenas se fosse coerente com a intuição pessoal da verdade.

Minha vida já não era um ciclo a alternar dúvidas e certezas; meus pesadelos já não eram privilégio da noite; agora tudo trazia consigo dois caminhos, igualmente justificáveis e dúbios.

Fui me tornando calado e pouco me movimentava. Ficava horas sentado, de olhos fechados, sem dizer nada. Era como se tentasse, com isso, compatibilizar as coisas e, renunciando a qualquer tipo de experiência, trazer uma só verdade aos meus olhos - aquela que era capaz de conceber em meu pensamento. Mas era triste porque nesses instantes não me vinha nada à cabeça; era preciso estimular meus sentidos e comungar com referências externas ao meu corpo, para que se suscitassem em mim as impressões e reações. Não havia em meu caso a possibilidade de se apagar um mundo, sem apagar o outro, pois as coisas funcionavam num esquema de reciprocidade e de indução dependentes. As contradições eram o preço pago por experimentar as sensações; não tinha nenhuma possibilidade de criar um sistema de concessões com as realidades e, com isso, relegar a dualidade a uma esfera consciente. Havia perdido a capacidade de confrontar os opostos e de construir assim uma só norma isenta de contradições. Meu inconsciente não existia mais e tudo deveria se processar de forma a gravar em cada momento duas verdades indiscutíveis e incomparáveis.

Minha vida se tornou um pêndulo a oscilar entre pontos respectivamente opostos mas que, no entanto, não se anulavam visto serem um para o outro condição essencial de vida. Tudo que existia pressupunha a existência do oposto e não haveria jamais um sem que houvesse consequëntemente o outro.

Com o tempo, aquela contradição essencial passou a fazer com que meus sentidos não fossem mais capazes de registrar apenas uma impressão, sem ao mesmo tempo suscitar a que lhe era oposta: sentia frio e calor, concomitantemente, e aquilo fazia com que uma profunda dor invadisse meu corpo; abria os olhos e via deus e o diabo de mãos dadas, unindo-se na complementação dos extremos que simbolizavam; sentia a mão dos que lavavam minhas feridas mas não conseguia subtrair daquilo também a sensação de que me haviam açoitado em outros dias. Fiz o bem tal qual me fora ensinado no meu longo aprendizado mas o sentimento de culpa, de quando fizera o mal, foi o mesmo; em seguida, violei todos os princípios aprendidos, para que pudesse sentir uma profunda sensação de prazer e bem estar.

Fui perdendo, aos poucos, o sentido de realidade e necessidade dos atos, e só os fazia para poder enxergar ao mesmo tempo o seu contrário. Meu comportamento passou a ser condenado e não obtive mais das pessoas os antigos elogios; alternavam-se carícias e recompensas com espancamentos e castigos. Mas isso não tinha mais importância pois a recompensa suscitava, ao mesmo tempo, a sensação de castigo e o castigo de recompensa, e assim as coisas perdiam a capacidade de ter um valor em si, visto que tudo carregava consigo o estigma de sua oposição inerente.

Fui novamente submetido a choques elétricos para tentar reverter o processo. Pouco se sabia acerca do que se passava pela minha cabeça, só se percebendo que algo voltara a escapar do controle. Voltei a tomar uma enorme quantidade de tranqüilizantes e a sentir, diariamente, aquele gélido rio a me invadir e a me apagar. Mudaram-me de quarto e me colocaram numa espécie de cubículo. As sessões diárias acabaram, sendo substituídas por uma simples inspeção, onde novamente um sem-número de mãos voltaram a me tocar. Passava o resto do dia sem receber qualquer tipo de estímulos e isto fez com que meu corpo se acalmasse.

Depois não houve mais necessidade de esperar que os estímulos me impressionassem, e assim desencadeassem suas imagens opostas; bastava abstrair um pouco tudo aquilo e minha imaginação construía, ao sabor da vontade, seu mundo de contradições.

Morri muitas vezes mas isto não foi suficiente para acabar comigo, pois vi novamente meu corpo renascer e voltar à sua frágil condição, como se houvesse um vínculo supremo entre a vida e a morte, sendo a última a única possibilidade de se conhecer a primeira em toda sua dimensão.

Minha condição foi, aos poucos, consumindo minha vontade de continuar vivendo por muito tempo. O prazer jamais vinha isolado, seguindo-o, constantemente, a sensação de dor. Não havia a menor possibilidade de experimentar um instante de paz pois a angústia a acompanhava: instalavam-se juntas em mim. Não era possível parar durante muito tempo, porque o movimento se fazia necessário e lá ficava eu a alternar segmentos de meu corpo que se moviam com outros que repousavam, formando no final um conjunto de oscilações desordenadas, que muito se assemelhavam às minhas antigas convulsões.

Meu medo me fez profundamente agressivo e comecei a querer atacar as pessoas que se apresentavam à minha volta. Tentei me matar batendo com a cabeça na parede e mordendo minha carne, até que senti o doce sabor de meu próprio sangue e parei.

Já não conseguia me comunicar e só era capaz de soltar gritos altíssimos de desespero, implorando pelo fim. Queria ouvir uma música que me pudesse tranqüilizar mas qualquer som, como o simples abrir de uma porta, provocava desconforto em meus ouvidos. Implorei que expulsassem daquele lugar todos os bichos que me faziam cócegas enquanto tentava dormir; lentamente, aumentaram de tamanho e foram assumindo formas grotescas; não mais os interpretava como uma simples construção de um espírito cansado e submetido a provações que não podia suportar: eu os temia e tinha certeza de que, cedo ou tarde, acabariam por me devorar.

Minhas alucinações voltaram de uma forma terrível: não havia mais nelas a beleza de um espírito que, em episódios de escape isolados, se insurgia contra as leis de um cosmo finito. Agora, uma profunda angústia me invadia junto com elas e já não me traziam as conotações de outrora, visto não serem apenas simbólicas; tinham vestido o terrível manto de uma realidade sem contrariedade lógica e a existência daqueles bichos horrendos não se deixava influenciar por qualquer julgamento que dissesse da impossibilidade de tudo aquilo.

Eu era escravo de duas verdades que, em seu antagonismo consciente, acabaram por semear em mim o desequilíbrio e a demência. Era uma presa fácil, pois já não queria reagir; apagara-se em mim a possibilidade de escolha e a convivência com mundos opostos criou um tal vínculo de duplicidade concomitante que finalmente enlouqueci.

Minhas verdades não gozavam de independência e carregavam consigo a constante oposição a elas. Eu já não era um campo fértil, onde brotavam evidências antagônicas. Não eram apenas deus e o diabo que habitavam em mim mas, mais do que isso, eu era, agora, o fruto de toda a carga de limitações que me haviam sido impostas durante o tratamento. A ingerência em meu espírito e em meu passado acabaram por fazer com que minha independência se exterminasse nas mãos de um médico qualquer. Já não podia escolher entre verdades e mentiras, pois não existiam, e eram para mim somente extremos de mesmo valor. Meus complexos se havia prostituído na medida da interferência que lhes havia sido imposta. Meu corpo tremulava e se ressentia da violação de suas formas, reclamada por premências circunstanciais. Não mais podia comparar as coisas porque se retirara de mim a capacidade de fazê-lo e, ao retalhar minha essência física, também se retalhara minha essência espiritual. Teorias tolas e despidas de um real desejo de cooperação acabaram por servir para minha total destruição: minha integridade estava irremediavelmente abalada e agora o bem e o mal haveriam de conviver juntos por todos os dias de minha vida, sem que se pudessem fundir e constituir uma só verdade.

 

Um dia vi algo que me lembrou o passado: entre tremores e espasmos, entre o medo e a angústia, pude ver os olhos de alguém que já vira, a me observar por detrás do vidro. Sua expressão era de horror, e me senti como um leproso, que lentamente perdia partes de um corpo que nascera para se íntegro. Seus olhos assustados e curiosos acompanhavam meus movimentos; lembrei de suas feições jovens, que contrastavam com as de outros, já velhos e desgastados pelo tempo.

Tinha sido, por essa época, transferido para uma outra ala do hospital; não havia mais as comodidades de antes e o pequeno cubículo em que me encerraram lembrava uma jaula. Havia um vidro bastante resistente que o separava do exterior; através dele pude ser admirado durante meses por uma multidão de homens, vestindo aventais brancos que me miravam atentamente e, sem dizer nada, passavam o tempo todo a escrever suas notas em cadernos de bolso.

Minhas reações foram informadas a todas as comunidades científicas internacionais que se apressaram em colher mais dados, para uma publicação sobre as seqüelas imprevisíveis daquele tipo de operação.

 

Não me contentava com ver as coisas apenas em sua aparência: era preciso mergulhar nelas, conhecer-lhes as leis mais essenciais, para que pudesse então conceber os opostos de uma forma tão complexa quanto as próprias. As análises deveriam ser cada vez mais minuciosas e a compreensão de cada objeto, de cada pessoa, de cada idéia, deveria atingir um tal nível que permitisse a construção integral de seus opostos em meu espírito. Acreditava que, encontrando a perfeição de detalhes complementares, poderia finalmente reunir os extremos e conceber assim algo total, que me devolvesse a paz de novamente enxergar a unidade sem contrariedades.

Perdera, com minha essência dividida, a capacidade de ver nas verdades apenas um aspecto e de tirar delas somente o conteúdo de verossimilhança que me conviesse, construindo assim um mundo sem paradoxos aparentes.

A ilusão nos rouba por algum tempo a necessidade de ver o todo e nos satisfazermos, plenamente, apenas com o conhecimento de suas partes. Para mim já não havia possibilidade de ilusão; os opostos representavam entidades absolutamente comprometidas entre si e qualquer tentativa de opção esbarrava concomitantemente com sua realidade inversa.

Deus me criou à sua imagem e semelhança, conferindo-me a capacidade de esconder as contradições de meus olhos. Eu não fui capaz de perceber que nada poderia representar o todo, sem que para isso admitisse a completa ausência de seu oposto: um era para o outro condição de existência.

O diabo nasceu junto com deus e foram assim o alfa e o ômega; nenhum poderia ser, sozinho, o início e o fim, pois sempre haveria o outro a reclamar por sua parte. O oposto também é parte da referência e assim responde por sua existência. Os extremos paradoxalmente se tocam, devido à eqüidistância de um ponto médio colocado entre ambos e isto faz com que sejam semelhantes, embora pareçam completamente diferentes.

Eu fui criado como parte do corpo divino e assim deveria trazer a mesma natureza do pai; ora, mas se Deus é alguma forma de realidade total e sem oposição, também eu o deveria ser. Mas ele é somente o bem e eu, depois de provar o fruto proibido, sou também o mal; já não posso ser seu filho nem posso pretender alcançá-lo para que nossos espíritos se confundam, pois nossas essências não são mais as mesmas. Como posso ser algo que, embora parte, seja qualitativamente possuidor de mais atributos que o todo? Talvez a explicação seja de que também ele é o fruto desta composição entre bem e mal e que, apenas, tenha feito com que o último desaparecesse de si. Não sei se isto é possível mas foi a resposta que me foi dada quando indaguei a respeito. Deveria extirpar o mal e, assim, poderia atingir novamente a composição do ente primitivo; mas isto só se faz pelo engano, pois é preciso se delinear arbitrariamente o bem e se fixar a maneira de atingi-lo, relegando ao inconsciente tudo que resta. A aparente conquista de uma só conduta, de uma só verdade, traz a esta estrutura o seu paradoxo, e o reencontro com Deus, nestas circunstâncias, é uma ilusão, pois o mal só foi "lavado" de nossa consciência!

esta farsa voltou em meus sonhos, mascarada de diabo, e me assolou todos os dias de minha juventude. Atribuí a ela uma aliança com o mal, que afastara de mim na medida de meus atos e a esqueci no mundo fantástico de meus pesadelos. Mergulhei então numa neurose profunda, pois minha censura não foi capaz de exercer vigilância eficaz sobre minhas verdades inconscientes, e minha sanidade aparente começou a pagar um pesado tributo às mentiras que a mantinham.

Agora, minha vida já não podia seguir o mesmo curso nem podia novamente conquistar minha própria loucura. A possibilidade de se esconder temporariamente da dicotomia das coisas e de adiar, ainda um pouco, o encontro com a insanidade, me tinha sido tirada. A comunicação entre os opostos, e sua interação, não me era mais possível e já não me escondia das contradições; não podia fazer com que os extremos se dividissem entre um consciente treinado e censor e um inconsciente, ainda mais vasto, que reclamava por se fazer ouvir; nunca mais os coloquei em categorias mentais diversas e, assim, habitaram para sempre o mesmo mundo.

De minha essência fora tirado o direito de restringir a verdade e de estabelecer para ela uma limitação tal que não se apresentasse senão sob um aspecto.

Não podia mais, graças ao homem que interferia em minha realidade, gozar a oportunidade de tentar me esconder das misérias humanas nem podia olhar o bem sem, ao mesmo tempo, ver o mal. Foi-me tirado o direito de ver a injustiça e de enxergar nela apenas o sacrifício em favor da manutenção de interesses localizados: isto acabou por abalar minha antiga moral e também os valores que conquistara.

Meus sofismas já não podiam existir livremente nem deles podia fazer o uso, para contornar a intuição de meu espírito acerca da justiça e dos princípios.

Não pude mais gozar a paz, nem sentir ao mesmo tempo o gosto amargo de hipocrisia que a acompanhava. Não pude morrer, pois vivi novamente, e qualquer tentativa de conhecer o silêncio e a escuridão foi em vão porque vieram também o ruído e as luzes e depois as trevas e o silêncio e, assim, sucessivamente, como se me tivesse colocado entre dois espelhos e ficasse então a admirar o múltiplo de imagens que se formavam a partir das anteriores.

Eu necessitava da luz para saber quando abrir os olhos e também das sombras para que os fechasse e descansasse, obedecendo à relação que aprendera nos primeiros dias em que voltara a mim após a operação. Mas não havia um sem o outro e, assim, meus olhos não mais se puderam abrir nem fechar, totalmente. Não comia porque junto sentia o gosto do produto que haveriam de formar.

Minha busca era insana, pois não se podiam reunir os opostos e, toda a tentativa de se apagar esta evidência de minha mente, tinha como resultado iluminá-la ainda mais.

Senti então que o dia e a noite talvez não passavam de ilusões de meus sentidos e que o conteúdo neurotizante da vida repousava, justamente, na possibilidade de oposições infinitas. A duplicidade dos caminhos, antes de exaltar minha liberdade, confundia minhas certezas e tentava me levar à destruição.

Nossas concepções se baseiam num frágil sistema de realidade contrárias e a verdade só existe, quando somos capazes de anular aquilo que lhe seja antagônico. Não conhecemos a essência das coisas e assim nos contentamos com uma visão dupla e simetricamente oposta de sua aparência.

Nossa filosofia não é capaz de descrever a verdade e, assim, se contenta com concebê-la como um sonho de pólos opostos, onde a certeza se baseia não na presença de algo mas sim na ausência daquilo que lhe faz oposição.

A essência das neuroses repousa, basicamente, nesta vinculação com realidades opostas e nós nos escondemos dela durante algum tempo, relegando ao inconsciente suas contradições.

 

A possibilidade da verdade e o gozo de uma sanidade temporária me foi tirada. Não tinha mais alucinações nem era são; mas, paradoxalmente, agora estava curado de minha antiga pretensão de conhecimento das coisas. A minha própria postura de juventude, ao contrariar as instituições e ao assumir posturas "autênticas", não tivera senão o poder de mantê-las e de fortalecê-las ainda mais.

Ao se acatar ou se refutar uma posição, estamos, concomitantemente, criando e reforçando sua oposta. Não era possível cultivar apenas um aspecto da realidade, sem que trouxesse juntamente o seu contrário.

Ao se assumir uma postura de aceitação harmoniosa diante de verdades tidas como certas, assume-se também a possibilidade de ver o inconsciente reclamar por um pouco de honestidade e de independência; pelo contrário, ao se romper com tudo aquilo que cultiva o grupo e ao se assumir uma postura essencialmente individual em relação à conduta pessoal, soma-se à recompensa consciente uma angústia silenciosa; esta angústia nasce da solidão que acompanha o rompimento com os outros. Alguém, cada vez, me dissera que, embora não concebesse racionalmente Deus como um ser implacável e pronto a punir, ainda assim o via em seus sonhos com o rosto de sua mãe, castigando pesadamente as mínimas faltas! Não, não é tão fácil se livrar da influência que exercem o grupo e as tradições sobre verdades pessoais - fruto de nossa opção!

Eu acabei por descobrir que minhas tentativas seriam vãs e que agora é que atingira o mais perfeito estágio de compreensão das coisas. A partir do momento em que não mais podia escolher, era então obrigado a conviver com os extremos e, se isto tornava impossível a vida "normal", pelo menos tirava dela o absurdo de se colocarem acepções contrárias, a cerca de uma mesma categoria de valor, em situações psíquicas diversas. Não mais podia escolher uma e relegar a outra aos confins do esquecimento: o convívio com ambas acabou por me trazer uma visão mais completa do mundo, onde deus e o diabo se fundiram no mesmo ser, onde o bem e o mal se sentaram à mesma mesa e se mesclaram numa realidade menos falsificada por artifícios e classificações.

Provei do pecado mas com ele veio o perdão; vi tudo terminar mas não me angustiei porque houve sempre um reinício; errei mas não insisti em afirmar o eero como indiscutível e pude assim corrigi-lo; senti medo mas também houve coragem para buscar o entendimento daquela nova disposição da vida; perguntei-me acerca de várias coisas e para muitas só obtive o silêncio como resposta - mas nele também houve outros sons e compreendi significados que estavam além das próprias perguntas; fechei os olhos para um mundo de verdades hipócritas, de concessões e de valores pervertidos e vi as trevas mas delas nasceu uma luz que me fez enxergar coisas que não vira antes. A luz - sem se mesclar com as sombras - sempre ofuscara minha visão e, na penumbra que resultou da coexistência de claro e escuro, pude ver formas e detalhes diferentes.

Perdi minha crença e readquiri a fé em alguma coisa. Cuspi no Deus que me haviam pregado, julgando-o finito e medonho, amaldiçoei tudo o que se construiu sob a égide de seu nome e todos os crimes cometidos sob a pretensa inspiração da sua palavra; praguejei contra toda a História, que não foi senão palco de massacres, cobiça e exploração. Mas de tudo isso me veio também a possibilidade de conquistar uma nova realidade, de conviver com o todo das coisas e de não mais me iludir apenas com parte delas. Pude ver a mim mesmo como realmente era: não havia mais deus nem diabo, e eu me encontrava agora num universo infinito, feito de verdades absolutas e que me abria a possibilidade de explorá-lo. Venci minha forma e meu medo, rompi com minhas limitações e compromissos e atingi assim o verdadeiro sentido da divindade e do mistério.

 

 

 

 

 

 

 

VI

 

 

"Surge o silêncio que não é abrigo do nada, mas onde a própria essência do homem encontra meios de falar-lhe através de seu eu mais íntimo, através de suas necessidades, da razão, do amor."

KARL JASPERS

 

 

Minha agitação e a dor que sentia deram lugar a um estado de profundo repouso. Ficava horas sem mudar de posição e, raramente, tocava a comida depositada a meus pés. As coisas já não me angustiavam e deixei de tentar agredir os outros. Sentia-me como se tivesse morrido e estivesse agora acordando aos poucos. A mais íntima parte de meu corpo fora devassada em busca de uma possibilidade de harmonia para o todo. Foi difícil compreender que não teria sido uma simples sucessão de imagens, respectivamente oposta, que me possibilitaria conhecer a real dimensão do encontro de uma verdade pessoal.

Minha imobilidade fez com que muitas vezes me acreditassem morto; senti novamente remexerem meu corpo à procura de vida; dela, porém, só encontraram alguns poucos sinais que não atestavam senão que algumas de minhas células continuavam a funcionar - e isto foi o máximo que se pode dizer de minha aparência.

Quando voltei a abrir os olhos, já não conseguia mais me comunicar com ninguém. Não entendia os sons que as pessoas emitiam nem a forma como os agrupavam. Meus olhos se moviam rapidamente e tentavam, em vão, traduzir as sensações que experimentava; meus lábios estavam fechados e não conseguia articu;á-los; minhas mãos não tinham mais coordenação e, segurando um pedeço de carvão que sempre encontrava por perto, rabiscavam linhas incompreensíveis sobre a parede branca.

Aos poucos foram me colocando em salas maiores, até que finalmente voltei ao antigo quarto. Lá estavam minha cama e também a escrivaninha com a máquina de escrever em cima. Ao ver tudo aquilo, vivi um instante de profunda emoção, evocando referências de um passado cujo conteúdo traumático acabara por relegá-lo ao esquecimento. Senti algo de familiar naqueles objetos e fui buscar, no mais fundo da memória, todo o significado afetivo que um dia tiveram.

A máquina não era simplesmente algo a mais mas, pelo contrário, funcionava como elo entre o presente e um tempo perdido; provocava em mim uma estranha sensação, como se fosse a presença mais importante da época a que se ligava. Uma noite sentei-me à sua frente e toquei levemente as mãos em suas teclas; apareceram, instantaneamente, pequenos sinais gravados na folha branca. Passei, então, a bater com maior rapidez e fui envolvido pelo barulho que produziam. Não houve uma seqüência sequer que expressasse algo conhecido ou racional. Depois de algum tempo, parei e me deitei na cama. Sempre em silêncio, pus-me a contemplar aquela enormidade de sinais impressos e fiquei alegre por ter algo nas mãos que me pudesse fazer lembrar daquele momento. Eram símbolos sem valor para quem os tentasse ler mas para mim estavam associados a algo especial e descobri que os podia arrumar de infinitos modos, de forma a traduzirem cada minuto e cada sensação.

Uma lágrima correu de meus olhos; imediatamente corri até a máquina e durante o resto daquele dia enchi folhas e folhas de papel, criando um arranjo novo e diferente, capaz de me recordar sempre que algo ali me fizera chorar.

Pintava telas enormes e me dedicava tanto ao trabalho que, mais tarde ao vê-las, pude me lembrar exatamente do que pensara ou sentira ao fazê-las.

Todos os dias havia folhas, telas e tinta para que pudesse trabalhar. As coisas que fazia desapareciam por algum tempo e depois voltavam. Enchi meu quarto com aqueles momentos evocados e, assim, apaguei dele o aspecto sombrio e triste de suas paredes.

 

A esse tempo havia um grupo que discordava frontalmente da maneira como se conduzira meu tratamento. Argumentavam que a operação escolhida ainda era uma possibilidade teórica e que não se podiam prever suas seqüelas.

Não entendi o por quê de ter passado do isolamento dos primeiros tempos a uma nova situação, em que era alvo constante da observação de muitos. Não os percebia, pois olhavam sempre através de um vidro especial que se instala no quarto dos doentes, e que permite apenas ser visto sem, no entanto, poder ver. (Era um artifício engenhoso e bem espelhava uma realidade que só podia ser entendida unilateralmente.)

Não sei se foram as discussões que o jovem médico teve com o diretor ou se foi meu silêncio, que deixou de representar o perigo das antigas idéias, mas agora já não havia um esquema tão rígido a selecionar quem me podia ver.

Minha aparência tinha mudado; havia rugas profundas no rosto e o cabelo, embora cobrisse as cicatrizes, já começava a rarear. Ficava todo o tempo no quarto, ora pintando, ora batendo a máquina, ora simplesmente observando os frutos daquele trabalho.

Não dizia nada e raramente um sussurro se esboçava em minha boca, rompendo aquele silêncio bendito e indo contar a um companheiro imaginário um pouco do prazer que gozava. Nunca pensei que meu mundo se tinha reduzido a um quarto nem me sentia como um preso; havia muito que perdera a concepção física da liberdade e que deixara de crer que o espaço pudesse conter o espírito. Minhas idéias ultrapassavam, a cada instante, os limites daquele lugar e não havia porque não considerá-lo minha casa.

Não sentia falta de companhia e o contato com as pessoas não me diziam muito mais que as funções que cumpriam diariamente em meu quarto. Não compreendia os sons que precediam seus atos nem o que queriam dizer em suas conversas mas confesso que nem tentava entender; pelo contrário, deixava que cumprissem seu ritual diário e, em silêncio, aguardava até que saíssem; depois, mergulhava novamente em minhas criações.

Freqüentemente vinham ver-me grupos de homens vestindo aventais branco. Ficavam horas a contemplar o que fazia, trocando entre si comentários que não ouvia. Não parava de trabalhar e, às vezes, percebia que queriam se comunicar comigo. Tentei, uma vez, mostrar-lhes o que sentia: sentei à máquina e fiquei ali a compor uma nova seqüência de símbolos que lhes servisse de resposta; não tive sucesso e acho que nunca entenderam meu desejo; ficaram apenas atônitos ao ver a persistência com que fazia coisas aparentemente desconexas. Meus códigos não tinham muito dos seus; não havia um grupo sequer de letras que se assemelhassem e, assim, a repetição se tornava praticamente impossível.

Não me deixei seduzir pela simplificação de grupos ordenados de letras nem reduzi a complexidade das emoções a aparentes denominadores comum. A semântica de meu espírito não trocaria, jamais, sua solidão pela inteligibilidade das reduções. afinal, como podia descrever igualmente sensações temporalmente dissociadas, se gozavam de independência no tempo e, portanto, condicionavam significados circunstanciais diferentes?

Havia uma limitação naquela linguagem que criara: apena eu a entendia, estabelecendo associação entre a lembrança e a organização geométrica dos símbolos; era o elo entre sensações passadas e gravadas e sua evocação posterior. Aquilo tudo, porém, valia a solidão que me impunha, pois a chave só a tinha o criador. Não seria este o único sentido das coisas? Por que haveria eu de reaprender uma linguagem, que não se perdera apenas na ambigüidade de seu sentido mas também em sua essência corrompida por que não permitir a real e profunda expressão do espírito?

Havia muito mais que uma série de concepções lógicas e de argumentos que me faziam recusar o contato com os outros e me mantinham em meu isolamento. Creio que simplesmente idéias não teriam resistido à tentação e teriam acabado por ceder mas a intuição me impediu de fazê-lo. Temia que não se entendesse exatamente o que queria dizer meu espírito e se empobrecessem meus momentos. A dificuldade de minha linguagem faria necessária uma profunda reflexão e, assim, se roubariam para estudo meus únicos filhos. Não podia viver sem eles nem queria que os copiassem, pois isto era impossível; também o papel em que se gravara a dança da vontade e dos tipos, também as tintas e as telas que usara eram parte essencial de meu passado e meras cópias jamais poderiam contar uma experiência que somente para mim tivera significado. Meu sistema não era simples; o único compromisso de sinceridade era entre as sensações e sua possibilidade de vivência eterna; não o simplifiquei, temendo que se tornasse pobre e insuficiente para retratar o tempo que consumira para nascer e tomar forma; não deixei que se simplificasse o complexo de minha experiência nem que se vendesse pelo preço de contar, sempre com os mesmos símbolos, circunstâncias presumidamente iguais.

A verdade só tem existência real para quem a presencia e traça, á sua maneira, um código de referências que a torne perene. As reproduções que procuram divulgá-la e generalizá-la são falsas e irreais. É importante que, embora aparentemente complexos, os sistemas de símbolos pressuponham uma profunda carga de afeição e assim se tornem inteligíveis ou, mais ainda, sensíveis! É importante não se repetirem as descrições, para que não se confira ao tempo um aspecto cíclico, traduzindo igualmente circunstâncias diferentes. Somente uma linguagem sem repetições torna possível seguir, passo a passo, o tempo e toda a diversidade de relações que propicia.

Minhas verdades não mais existiam, senão na medida da existência de idéias e sensações que as endossassem e por elas reclamassem. Eram minhas e a mais ninguém podiam interessar. Seria errado contá-las a alguém e roubar-lhe, assim, a oportunidade única que o tempo lhe reservara, como reservara também a mim.

Todas estas explicações me bastavam pra que não empreendesse nenhum esforço no sentido de decifrar os sons que me rodeavam; porém, mais forte do que elas, era meu medo, que me impedia de provar novamente do mistério. O pecado do mundo era dimensionável através de minhas idéias porém, somente isto teria sido insuficiente para me conter, e a simples curiosidade poderia me ter feito vacilar. A intuição do mal foi, assim, mais importante que sua simples concepção. Uma sensação indescritível, de alguma forma, traduzia sensivelmente minhas experiências passadas e por isso nunca mais provei do convívio com as mentiras nem fiz delas a resposta para minha busca.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

VII

 

 

"...buscai e achareis; batei e abrir-se-vos-á."

LUCAS XI - 9

Em todo o tempo que ainda me restou, somente uma pessoa foi capaz de se aproximar realmente de mim. Houve um dia em que aquele jovem médico - agora marcado pelo tempo e pelo peso de seus enganos - me seguiu até a máquina de escrever e ficou ali durante horas contemplando meu trabalho. Depois saiu, para retornar no dia seguinte. (Não me lembro de ter havido um dia sequer em que não tivesse estado ali, pacientemente, ao meu lado).

Debruçava-se sobre as folhas de papel e ficava ali, a mirá-las fixamente. Olhava, atentamente, meus movimentos e depois procurava estabelecer relação entre eles e seu fruto, como que tentando ver além do que os olhos pudessem mostrar, estabelecendo, assim, uma seqüência de associações que talvez o ajudassem a me entender.

Muitas vezes já era tarde da noite e ainda estávamos ali. Sorria e se despedia, batendo em minhas costas. Cedo estaria de volta.

Um dia trouxe pincel e uma tela. Pintamos juntos; primeiro me observou e procurou copiar o que fazia; como não saísse bom e não conseguisse descrever senão a aparência de minhas figuras, passou a fazê-lo sozinho. De início tocou suavemente o pincel sobre a tela, medindo e experimentando do que era capaz. Depois foi aumentando a velocidade, até atingir um estado de prossessão frenética e encantadoramente inspirada. Ficamos sós, a pintar, durante dias. Do lado de fora do vidro, muitas foram as explicações e as hipóteses acerca do método que usava para interpretar meu mundo! Vomitaram, ainda uma vez, sua ignorância vestida de erudição e jamais chegaram perto de tocar a verdade, que permaneceu ali dentro do quarto para sempre.

Não havia mais empecilhos para me ver e meu silêncio já não seria mais objeto de censura! Meus trabalhos foram expostos e muito se disse e se interpretou acerca de meus traços. Não houve mais operações. O que escrevera, até então, foi trancado nos arquivos de um escritório do serviço de segurança e informação. Não sei que fim tomaram.

 

 

 

 

 

Lá fora, não houve mais ninguém a nos observar, senão as árvores que presenciavam nosso trabalho em sua essência aparentemente diversa.

As vezes, parávamos para ver uma folha se desprender de um galho qualquer e cair docemente. Não o fazia, porém, como as outras e, num desafio às leis e às tentativas de previsão, descrevia uma trajetória nova e desconhecida. Era como se quisesse imprimir ao movimento um sentido pessoal e, contrariando as expectativas, usasse seu tempo de maneira a marcar individualmente sua ação sobre ele. Depois repousava suavemente na relva, deixando todas as outras atônitas a se indagar como fora capaz de subverter as leis da gravidade e mover-se como nenhuma outra o fizera.

 

 

 

 

Campos do Jordão, 27 de dezembro de 1981

São Paulo, 6 de janeiro de 1982